O ESTALEIRO, Juan Carlos Onetti, tradução Luis Reyes Gil,
2009,Editora Planeta, São Paulo, isbn 978-85-7665-451-3
Depois do livro “Junta-Cadáveres” sobre o qual fiz uma resenha aqui no blog (Antônio Saracura Sobre Livros Lidos) me encontro de novo com Juan Carlos Onetti, autor uruguaio recomendado por um amigo intelectual que tem gosto refinado.
Este romance “O Estaleiro” acontece no mesmo mundo de “Junta-Cadáveres”,
uma cidade chamada Santa Maria (e arrabaldes) criada pelo autor, às margens de
um grande rio, provavelmente, o da Prata, entre o Uruguai e a Argentina.
Alguns dos personagens do primeiro romance participam deste, que ocorre 05 anos após o último ato de “Junta Cadáveres” no qual o cafetão Larsen, humilhado, é expulso por ato do governador com seu séquito de funcionárias (velhas prostitutas).
Neste romance, Larsen chega à Santa
Maria no ponto de ônibus. Roda pra lá e pra cá, faz perguntas cuidadosas, hospeda-se
na pensão em cima do bar Berna, toma aperitivos no balcão, sobe ao quarto,
talvez o mesmo que ocupou no passado. No primeiro domingo vai à missa e cruza
na saída (acidental ou proposital?) com
Jeremias Petrus, empresário tido como rico, dono de um estaleiro falido, sucateado, já tomado pelo
mato e pela ferrugem, acompanhado da filha “louca”, chamada Inês Angélica, que
pareceu apreciar a presença de Larsen.
Após muitas voltas pela cidade e
cercanias, reconhecendo o campo, dias depois, decidiu ir à casa do dono do Estaleiro falido.
Talvez buscar uma maneira de alcançar seu objetivo íntimo deste retorno: impor-se
novamente ante a cidade odiada que o humilhou. Mas o industrial estava em Buenos Aires, (soube
pela governanta, que se tornou sua informante) que o patrão buscava “indenização
pelo prejuízo que teve com a falência, munido de escritos reivindicatórios, com
seu advogado, ou procurando provas para sua visão de pioneiro, percorrendo
piedoso e indignado, escritórios de ministérios, gerência de bancos”.
Não se sabe quando Jeremias retornou, mas sabe-se que teve
uma reunião com Larsen e o nomeou Gerente Geral do estaleiro. No estaleiro trabalhavam apenas Galvez e Kuntz (conhecidos de
Larsen do passado), que seriam seus subordinados. Ele também não teria carteira
assinada e os seus cinco mil pesos por mês seriam pagos contabilmente até que o
Estaleiro voltasse a funcionar ou o empresário recebesse a polpuda indenização
requerida ao governo Federal.
Galvez e Gunz se armam contra Larsen, como se estivessem a
perder benesses que não havia. E Larsen tenta se impor, definindo tarefas inúteis,
exigindo prazos. Os subordinados trazem problemas, explicam, insistem, encrencam
para verem o chefe aperreado. E Larsen deixa-os gastarem-se, talvez nem os escute,
fica em silêncio ou diz algo, ao final, sem nada a ver com a questão apresentada.
Há menosprezo, despeita, ironia entre as partes (chefe e subordinados), mas
estão juntos no Estaleiro, na miséria, na sina, com a absoluta consciência do
logro em que se meteram e vão buscando a convivência necessária.
A cidade é também decadente, com bar, hotel, médico, jornal,
caminhoneiros debochados, barcos passando ao lado; tenta não morrer de vez. E
nela, todos sabem que o Estaleiro está morto, inclusive o proprietário e sua
equipe de lunáticos. Mas estes vivem uma ilusão, que é melhor do que viver sem
ter nada.
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A visita ao doutor Diaz Grey (desafeto de Larsen desde a histórica
expulsão no romance anterior), após arrodeios, Larsen inquire se Petrus tem
alguma chance de sucesso de salvar o estaleiro, se a filha seria uma boa esposa,
pois pretende casar-se com ela. O médico responde: “Petrus é um farsante quando
lhe oferece a Gerência Geral e o senhor é outro quando aceita. Petrus necessita
de um gerente para provar que o funcionamento do estaleiro não foi
interrompido. E o senhor quer ir acumulando salários caso algum dia aconteça o
milagre, o assunto se ajeite e seja possível exigir o pagamento. Inês Angélica?
Nem pense em filhos, ela é louca também.”
O romance transcorre neste mundo de faz de conta, de absoluto
desconsolo, de andar em volta, de planos desencaminhados, pistas fechadas,
retornos em loop contínuos, de labor sem lucro, de energias gastas onde não se
requer. Tanto assim, que eu me transportei à labuta insana dos agricultores de
meu povoado: tanta lida para tão pouca comida.
Por fim, Larsen senta-se em um banco de praça em frente a
cadeia onde está preso Petrus, e acende um cigarro. E pensa, distraidamente, em
todas as cidades, em todas as casas, na luta de cada dia, nele mesmo... Em vez de
explodir, penetra em uma zona de sossego e penumbra, um sumidouro, onde se
refugiam essas lembranças que o ajudam a sobreviver aos eventos que a vida impõe:
uma zona de exclusão e cegueira, de insetos lentos e achatados, de colocações a
longo prazo, de desforras surpreendentes e nunca bem compreendidas, nunca
oportunas...
Com certeza é aquele lugar quente que todo homem possui e precisa
achar, conforme ensina Dom Juan na “Viagem
a Ixtlan” de Carlos Castanheda.
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Ao leitor cabe mais se deliciar com a destreza dos pinceis
que o autor (pintor imenso) manobra para narrar. Em Onetti, não cabe entender o
sentido de cada bloco (capitulo, unidade descritiva, um simples parágrafo, as palavras),
requer se perceber o clima que o bloco cria. As palavras e as frases postas podem,
por si, nada dizerem, mas o conjunto que
elas formam (mesmo confuso à primeira vista) é poderoso e revela o mundo
impossível de ser descrito por outro escritor.
Antônio FJ Saracura, Aracaju, 12 de janeiro de 2025).