quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

DIARIO DE MARIA FUJONA, Ailezz

 DIARIO DE MARIA FUJONA, Ailezz,2024,Infographics,Isbn 978-65-5730-201-9

 


 Seriam narrativas da  trajetória de uma vida ou seriam fragmentos de um sonho relembrado? Prosa ou poesia escorreitas?

Não há datas envolvidas (que um diário exigiria e uma biografia também, em princípio). Aqui o tempo vai e vem. Os fatos são revelados amplos,  sem entrar em minúcias com é a praxe literária para biografia ou diário.


Os textos são mais poemas, que descobrimos, ao final, pela sensação de harmonia, pela perspectiva de profundidade, pelo perfume que exalam.

“Nas páginas coloridas

moram loucuras da juventude

que abracei sem medir”.  (Ela mesmo é quem diz na página 194).

O livro é bom de ser lido, capítulos de uma página  e meia  com letras generosas, boas de ler mesmo com vista cansada. Tem ritmo seguro, as pontas soltas vão se juntando naturalmente e revelando  imagens que mostram o suficiente de uma vida sofrida e gloriosa. Quase todas são assim, mas esta tem magias insondáveis que mudam o mundo com toques singelos.

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Minha aproximação com a escritora Aliezz aconteceu por  João Neto, um dos 14 filhos dela, que  me oferecia espaço em seu programa de entrevistas no começo da noite na rádio  Aperipê. E por Doroteu, o esposo que não mais está em nosso  meio. Um dia, na loja Escariz do Supermercado da Francisco Porto, apresentou-se, me surpreendendo. Havia  lido  um de meus livros (Os Tabaréus do Sítio Saracura) e, efusivo, apertou minha mão, que valeu um abraço demorado ou um prêmio literário.  

Depois, eu estava nos lançamentos que Aliezz promovia pela cidade, lendo seus livros (até os infantis pois sou ainda criança) e escrevendo resenhas, prestigiando-os dessa maneira rude que é a única eu tenho. Houve um dia em que fomos, eu e Cida, à sua casa, em algum condomínio da parte sul de Aracaju, seria a comemoração de seu aniversário, pelo  me lembro.  

Sem andar junto, sem declarações (somente esta, que nem ninguém mesmo lerá pois aqui em minha terra as pessoas só sabem falar), apenas por vê-la voar  como  um pássaro livre, e cantar, e me encantar com seus livros saindo em profusão, sinto-me  uma pessoa de sua casa.

Este  “Diário de Maria Fujona” está subdividido em seis partes, cada uma tratando do lhe está reservado,  mas se dar ao direito de  avançar e recuar sobre as outras, instigando, replicando, complementando.

Meninice - “Com saudade da mãe, que perdi na tristeza de um dia, mergulhava ou voava para encontrá-la.  Vivi, assim, a liberdade das crianças soltas na rua;  me  babava só com o cheiro do doce no fogo e pedia pra lamber o tacho. E, toda tarde, junto com outras crianças, sentava-me no  batente das calçadas, esperando o vendedor de pirulitos. Sempre soube  dividir meu tempo entre brincar e estudar, tanto que fugia pelas saias das freiras em busca de um amor que ainda nem existia. E como eu abominava os  purgantes de óleo de rícino...

Amores - “Maria adolescente fugiu com seu amor da  vida toda para se esconder da família cuidadosa. A felicidade estava até em ser fujona. Só o presente me bastava, mas soube esperar com meu amado para ficar  muito mais gostoso depois. Os anos se passaram e me transformaram em uma jovem cheia de sonhos, que alcançou seus desejos, junto às gestações contínuas nas quais acumulei tesouros: meus filhos, tantos!”

Pessoas - “Se alguma das pedras não se alinhava, na sua sabedoria de engenheiro, meu pai não a excluía. Depois, a acomodava com a maestria dos precavidos da boa construção. A vovó Sophia foi ludibriada por inescrupulosos que compraram suas terras de plantio de arroz por menos do que valiam.  A vovó França mandou os filhos brincarem  na rua com os amigos, pegou a trouxa com as roupas do marido louro da Escócia e o expulsou de casa: “De hoje em diante não tens mais uma família para envergonhá-lo.”

Lugares - “Você (mulher) serás  o que desejar, é só se permitir.  No meu primeiro amanhecer (em minha casa  própria), acordei banhada por estrelas de sol, projetadas pelas frestas do reboco mal feito das paredes de taipa.  E essa casa me serviu como exemplo de que o pouco, quando apreciado, tem gosto de lembranças  que nunca são esquecidas.

Maternidade – “Sou acompanhada por uma família de quatorze  filhos  aos quais se somam netos e bisnetos. Cada um está registrado no bordado que compus (nomes e data de nascimento) em uma camisola especial de cambraia francesa, que mantenho com desvelo. Aos 16 anos, fiz o simulado do vestibular, e fui aprovada com louvor na mais cobiçada matéria para adolescentes apaixonadas: casamento com amor.

  Reflexos - “Os meus sonhos são tão verdadeiros que, ao acordar, sinto as dores que sentia no sonho.  Às vezes, eles  são tão bons que fico triste ao acordar. E quando são dolorosos,  imploro para me acordar, e me acordo.”

Aos setenta e cinco anos, resolveu ser pintora de telas (consagrada até fora do Brasil)  e escritora, seus livros são adotados nas escolas do mundo.

E acreditando que tudo pode acontecer  quando queremos, Ailezz (Maria Fujona) canta seu hino: “Viver é não ter vergonha de ser feliz. Cantar, cantar e cantar a beleza de ser uma eterna aprendiz”.  

Desejamos a Aliezz muita saúde e muitos anos de vida produtiva e feliz, pois sabemos que virão novos livros  nos próximos meses, nos próximos  anos. Digo seguro, pois sigo o que escreve no Posfácio de Maria Fujona,  Paulo Rocha, o editor e um dos  quatorze filhos de  Zélia e Doroteu.

(Por  Antonio  FJ Saracura, em Aracaju, 07 de janeiro de 2025).    

sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

LINGUAGEM POPULAR SERGIPANA E OUTRAS PRECIOSIDADES

 LINGUAGEM POPULAR SERGIPANA E OUTRAS PRECIOSIDADES, Benvindo Salles de Campos Neto, Segrase/Edise, 2022,organizada por João Mário Ribeiro Lima Sales de Campos. isbn 978-65-86004-55-7

Após a solenidade de instalação da Academia de Letras de Arauá (14.12.2024), na qual fui agraciado com o título de membro correspondente, cruzei, no hall do salão onde pessoas batiam fotos e se abraçavam, com João Mário, que eu nunca vira. E iniciamos uma conversa espontânea, como se já fôssemos velhos conhecidos. Ele estivera na mesma solenidade, acompanhando a família de José Olino, filho do Arauá e homenageado como patrono-mor da academia.

- Você é o Saracura?

 

- Sou, e o senhor, quem é?

- Sou filho de Bemvindo Sales de Campos, que foi seu confrade da Sergipana. Meu nome é João Mário...

(Eu o interrompi):

- Logo o filho de Benvindo, de quem estou lendo “A linguagem popular sergipana”, que me encanta a cada verbete?

Neste momento, alguém me puxa pela camisa e chama: “Venha, Venha!” Com o rabo do olho, vejo que é Cris, a estrela essencial de toda festa literária e  entendo que me convida para entrar em uma foto, que seria antológica, o grupo de becados está postado, aguardando.

Mas não posso largar o filho de Benvindo, que alguém chama de um carro estacionado na rua, com a porta traseira aberta. E não devo ignorar Cris e nem o grupo que me espera, seria a deselegância que abomino. Mas não  vejo alternativa: seguro João pela camisa, pois já ia se indo e digo a Cris: “Estou ocupado, agora não posso de jeito nenhum.”

Cris  me solta e incha chateada, nem escutou o descabido porque, eu percebo o clima desconfortável e sujeito a represálias,  mas agora, sou somente ouvidos para o filho de Benvindo, que prossegue na fala sustada:

“É um livro póstumo, saiu agora em 2022, meu pai faleceu em 2010. O manuscrito ficou jogado em uma gaveta, no meio de folhas soltas com anotações feitas à mão. Botei tudo em ordem, mantive intato cada pensamento de meu pai. Deu trabalho, mas saiu editado pela Edise... Viva Deus! E  correu ao carro que lhe daria carona para retornar a Aracaju, desculpando-se.  

Quando me voltei em busca de Cris (demorou tão pouco, mas o tempo voa), não havia mais ninguém batendo fotos; ela e Pascoal me esperavam (impacientes) ao lado do carro, com a porta traseira aberta, para retornarmos.

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Viana de Assis, que escreveu a orelha do livro de Bemvindo e disse: “O livro revela a alma e o caráter do povo de Sergipe na forma mais expressiva que é a fala. (...) A dicionarização das palavras e expressões colecionadas por Bemvindo, é a preservação  do mundo cultural do nosso lugar, sem retoques e enfeites que lhe diminuam a autenticidade”.

O historiador José Anderson Nascimento andou na linha paralela e escreveu no prefácio  (preparando o espirito do leitor, talvez): o livro também reúne palavras de baixo calão, que se apresentam como impróprias, ofensivas, rudes, agressivas e imorais sob o ponto de vista de algumas pessoas eruditas, religiosas e castas.”

E me cabe então citar uma dúzia de verbetes ou expressões (sem o seu significado completo, que algumas vezes consiste em um rico tratado de linguística ou apresentação de gorda relação) e que, para mim, brilham como  burilados diamantes, tenham ou não conotação imoral:

Usurenta (sovina)

Trivilusco (desorientado)

Sibarita (macho duvidoso)

Sendeiro (cavalo chucro)

Puxá (falta de ar)

Matrosa (mal arrumada)

Grismela (magra)

Fute (diabo)

Cheba (bunda mucha)

Chanfrona (sapatona)

Bulir (deflorar) e

Roncoio (que tem um ovo só).

E, por fim, digo que João Mário está de parabéns e que comemore junto comigo bom e corajoso livro de seu pai. Sobre as palavras pesadas, elas me soam saborosas, tentadoras. O filósofo e escritor, Cleiber Vieira, responsável pela apresentação do livro, cita dois clássicos tratando do mesmo produto: “Dicionário do palavrão e termos afins ” de M. Souto Maior, uma reedição de 2010, e o “Dicionário Popular”, de Raimundo Magalhães (1911). E nada revela sobre represálias sofridas pelos autores.

 

(Por Antônio FJ Saracura, em Aracaju, 03/01/2025)

 


quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

AS CONCHAS NÃO FALAM, Taylane Cruz

 

AS CONCHAS NÃO FALAM, Taylane Cruz,Harper Collins,Rio de Janeiro, 2024, 160p, isbn 978-6506-005-022-8

 

Saramago afirma que “em literatura e arte, nenhuma obra tira o lugar da outra. Elas convivem lado a lado. Não é porque foi escrito “Dom Quixote” ou “Ulisses” que outras obras não precisam existir[1].



Arte sempre será benvinda, nunca há suficiente, eu que depreendo. Sempre haverá lugar garantido para Taylane e para todos nós. Devemos estar abertos para aplaudir “As Conchas não Falam” (como faço aqui agora) como o cordel do poeta de feira escrito na língua bruta da roça.

Taylane Cruz é escritora consagrada e hoje pertence ao time de uma das maiores editoras do mundo, a Harper-collins, que publica Tolkien. Ela está no palco desde 2015, apesar de parecer uma garotinha, com o lançamento de “Aula de dança e outros contos(2015)”, “A pele das coisas (2018)”, “O sol dos dias (2020)”, “Para hora do coração na mão (2022)”, “Menina de Fogo (2023)’ e este, "As conchas não falam (2024)”. 

Alguns eu li um pouquinho e outros, integralmente. E gostei de cada frase: bem tratada e bem urdida.

Na cerimônia de lançamento de "As conchas não falam", um fã, dramaticamente, leu o último conto do livro (Irmãs). Eu estava sentado na cadeira detrás. As páginas do livro se acabaram à minha vista, mas o fã levantava a mão arfante e trazia mais uma nova página. E eu comemorava, o conto se autocriava para me satisfazer.

Em casa (porque já ouvira no dia do lançamento) pensei em apenas beliscar as irmãs mas elas se grudaram em mim, dizendo sem dizer o que iria acontecer. Ao final, em vez de passar páginas que não haviam, fiquei, como sempre acontece quando sou atingido pelo inusitado, desdobrando a trama, percorrendo caminhos secretos, visitando mundos criados na hora.  

Por que diabos nenhuma das cartas foi lida (ou levada a sério) se foram enviadas até para Deus? A decisão tomada,  “deixei só nossa mãe e nossa avó nos flagrar, usei a mim mesmo como isca...”. me arrepiou e não seria o que eu faria (sou um personagem apenas e tenho medo do homem irracional). 

Taylane é boa bordadeira. Manuseia mil novelos coloridos, enfia agulha, pega-a no tato por baixo do badoque e a manda de volta. Repete e repete a função com segura calma. E dessa labuta, brotam: a avó cúmplice, a cachorrinha “roubada”, o tio vilão, o pai com seu avião de sonhos e outros inesquecíveis momentos.  Ora, as linhas se engrolam ou deixam um espaço maior. O leitor se preocupa à toa. A tecedeira cria uma elevação ou uma depressão na geografia de seu bordado. E nesta azáfama de furos e linhas trespassando, imagens ganham vida ou são incógnitas figuras a decifrar, como se a bordadeira fosse feiticeira: o amor que se regenera como o rabo das lagartixas e as memórias saem como cobras de dentro das rachaduras das paredes. Ele me roubou de casa como se eu fosse um chapéu e me puxou nossos cabelos com tanta força que parecia arrancar raízes da terra. Não é fácil ver seus olhos assim fechados como dois buracos onde guarda um segredo, mas me satisfaz sair gritando pela pracinha ao flagrar os meninos batendo punheta no fundo da igreja.

Não há como mostrar o que cada conto revela, o que um livro deste contém, a não ser que o replique inteiro e, mesmo assim, com minguada chance de sucesso. A literatura cria em cada célula, infinitas camadas a decifrar. 

E eu, aqui, sou somente o arauto que grita ao vento: chegou um novo rei para governar; chegou um bandoleiro para mexer com a gente.  

Está nas  livrarias de Aracaju (e do Brasil) o novo livro de Taylane Cruz para ser lido.  

 

(Por Antonio FJ Saracura, em Aracaju, 02 de janeiro de 2024).

 

 

 

 

 

 



[1] Do livro “Conversas inéditas: José e Pilar”, de Miguel Gonçalves Mendes, citado no artigo “Confissões” inserido no “Livro sobre Livros (Escritos  Diversos, volume 5)", de Enéas Athanázio.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

FOI ASSIM... TEMPOS SAUDOSOS, Jodoval Luiz dos Santos

 

FOI ASSIM... Jodoval Luiz dos Santos, Brasil Casual,2023,180 páginas, isbn 978-65-86316-66-7

 



Que Brasil é esse, que não há outro igual?

 Podemos falar mal dele para melhorar ainda mais, é um sagrado direito que temos e que ninguém hoje nos reprime por tê-lo.

Aqui, uma criança nascida em manjedoura pode crescer na sociedade, ocupar os píncaros inacessíveis em qualquer outro canto. Há exemplos em toda parte, haja vista eu, que não cresci tanto em relação aos meus contemporâneos (Mendonças, Peixotos, Barbosas de Jesus, Teixeiras, todos de minha família e de meu lugar), mas cresci até demais em relação aos exagerados  sonhos de um menino amarelo.

O Brasil não estabelece fronteiras aos filhos, todo rincão é de quem chegar e quiser ficar. A saúde é democrática, todos tem acesso sem barreira. O estudo é universal, desde o básico (há em toda esquina) e inclui a alimentação que faz a pessoa digna; ao superior, que garante espaço aos jovens que a história discriminou no passado. A comida básica, os programas de governo proveem. A moradia, o lazer, a segurança, que evoluem pouco a pouco.  Como há o advogado para defesa nas encrencas, como o sacerdote para confortar o espírito, como a estrada para levar ao melhor lugar de viver.

Nem tudo são flores (diriam os poetas), mas carecem espinhos para a flor cheirar mais (ninguém duvide).

O livro “Foi Assim... “ do empresário e intelectual Jodoval Luiz dos Santos, sergipano de Riachuelo, conta essa caminhada possível, disponível.   

“Meu pai se chamava Manué, era saveirista e, aos 21 anos, quando quis casar, possuía de seu, somente uma esteira, uma rede, uma chaleira de ferro, duas canecas de estanho de duas panelas de barro.  O casal (juntado apenas)  tocou a vida como pode. Nasceu o primeiro filho (Eu, Jodoval) e o bercinho era uma tipoia (redinha feita de pano de saco). Depois nasceram mais 14, um a um, em condição similar.

Meu primeiro trabalho  (com meus irmãos, ainda menores) foi de lançador de tijolos na olaria de seu Nilton. Eu era tão pequeno que não podia colocar o tijolo no chão: caía por cima. No final de semana, íamos ao riacho do Porto de Quina (morávamos em Roque Mendes, Riachuelo) catar pequenos caranguejos e caleixos (gorés) que meu pai usava como isca no monzuá para pegar moréia.”

A pobreza era geral, todos em volta eram assim.

Aos oito anos, comecei a trabalhar no comércio, no armazém de seu Ivo Souza, mas minha mãe não nos deixava largar a escola. Em busca de melhorias (1959), meu pai vendeu a casinha em Roque Mendes e migrou para Aracaju. Passamos a morar de favor na Olaria de Seu Nori, ele era de Roque Mendes, no atual Jardim Centenário. Eu e Deon botávamos barro e amassava. Nininha, Jairinho e Judei faziam tijolos. Papai batia, engradava em formas de parede para enxugar, depois queimava. Desenfornávamos, arrumávamos no pátio para o caminhão pegar.

Um dia, meu pai achou que já podia construir uma casinha na rua Rio Grande do Sul, onde comprara um terreno com o dinheiro da venda do rancho de  Roque Mendes.

Porque não tinha o dinheiro para lenha (única parte que lhe cabia na bondade de seu Nori) bateu adobos crus. Veio uma chuvarada e desmanchou todos, nossa casa virou um mar de lama, ainda na Olaria. Começamos então a bater tijolos de verdade. Quando os enfornamos, antes de cobrir, deu uma trovoada que inundou a Olaria e os desmanchou. Outra vez! Mas meu pai não desistiu.

Um amigo me arrumou um emprego na Jotagê, foi aí que me envolvi com a escrituração.  Aprendi com seu Josias Passos muitas lições: “Seu Santos, não seja velhaco, mas também não seja bom pagador demais. E não pague antes de conferir”.

O destino me ligou ao professor José Sebastião, que possuía um escritório móvel de contabilidade na mala de seu Gordini, ele atendia clientes importantes. Quando concluí o curso de Técnico de Contabilidade, em 1969, recebi de presente este escritório do professor Sebastião.

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Nós conhecemos o doutor Jodoval, dono da Serteco, um dos mais importantes escritórios Contábeis de Sergipe, tocado por alguns filhos. Ele fundou academias de Letras, comanda associações de classe aqui e no País todo, é doutor em Ciências Contábeis. É um dos grandes de Sergipe, autor de livros, entre os quais, este “Foi Assim” e “Tempos Saudosos”. O primeiro são fragmentos de suas memórias, dolorosas, entretanto, queridas, alguns revelados acima. O segundo compõe-se de crônicas e poemas:  textos saídos da alma, resgate de momentos jocosos, heroicos, desde a infância, como se estivesse passando a limpo a biografia revelada em  “Foi Assim”

Viva o Brasil!

(Por Antônio FJ Saracura, em 01/01/2025).

 

 

 

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quinta-feira, 28 de novembro de 2024

AINDA ESTOU AQUI, filme de Walter Salles,

 

AINDA ESTOU AQUI, filme de Walter Salles, 2024, em exibição comercial.

 



Em meados de 1972, eu trabalhava na Espal/Petrobras, no sétimo andar do edifício Anhanguera, na Barão de Itapetininga, 151, centro de São Paulo. Em uma manhã de um dia comum, na portaria, fui recebido por um pelotão de militares com metralhadoras e cães. O capitão examinou minha documentação e me trancou em uma sala, onde já estavam colegas, sob a mira de armas e sendo interorogados. 

No final da manhã, fomos liberados e subimos ao Escritório, mas um analista recém admitido não estava conosco. Foi levado para o DOI-Codi, as pessoas falaram. Depois, a família veio do Ceará e não o achou em canto nenhum.

 Nunca mais tivemos noticia dele.

 

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“Ainda Estou Aqui” é um filme brasileiro de 2024, do gênero drama biográfico, dirigido por Walter Salles, roteiro de Murilo Hauser e protagonizado por Fernanda Torres e Fernanda Montenegro e com Selton Mello no papel de Rubens Paiva. Baseia-se  na autobiografia homônima, de 2015, escrita por Marcelo Rubens Paiva (filho de Rubens).

Sua estreia no Festival de Veneza aconteceu em 1º de setembro de 2024, tendo sido aplaudido por dez minutos consecutivos pelo público. O filme foi premiado com a Osella de Ouro de Melhor Roteiro e foi escolhido pela Academia Brasileira de Cinema, como representante do Brasil na categoria de Melhor Filme Internacional no Oscar de 2025.

Foi lançado oficialmente nos cinemas brasileiros, em 7 de novembro de 2024 e imediatamente se tornou um sucesso de bilheteria. Já foi visto por mais de 1,8 milhão de espectadores

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“Ainda estou aqui” acontece no início da década de 1970. O Brasil enfrenta o endurecimento da ditadura militar.  No Rio de Janeiro, a família Paiva (Rubens, Eunice e seus cinco filhos) vive à beira da praia em uma casa de portas abertas para os amigos. Um dia, Rubens, que fora deputado cassado em 1964 pelo golpe militar e, anistiado, retornara ao Brasil, é levado por militares à paisana  e desaparece. A esposa e uma filha também são presas, mas liberadas.

O filme é o retrato violento deste período por que muitos de nós passamos. Traça um paralelo entre a vida normal e feliz de uma família e o terror da perseguição política truculenta e arbitrária.

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Eu o assisti esta semana aqui em Aracaju. Mesmo nas cenas aparentemente triviais, há o punhal do torturador generalizando o castigo injusto: O gerente do banco, com má vontade, exige a presença do cliente morto para liberar o saque que manterá a família dele. O amigo e sócio de Rubens vende o terreno filé mignon por uma bagatela, quando poderia aceitá-lo como garantia de sucessivos empréstimos. O cachorrinho da família  é atropelado e morto pelo milico, apenas porque  vigiava pacificamente sua agressiva e contínua  presença em frente à casa da família.

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Eu convivo hoje (60 anos depois da dita revolução) com pessoas que esperam pelo retorno da ditatura militar. Que prestam continência a coronéis golpistas, e os têm como heróis. Que, secretamente ou não, ouvem discursos inflamados gravados  pregando o genocídio dos mais fracos e dos mais livres,  e babam de prazer, como se ouvissem belas peças de Mozart ou Chopin.   

Um importante líder político muçulmano disse outro dia na Televisão que os campos de concentração do nazismo são ficção. Que as famílias judias, as ciganas, as de minorias raciais, as de não arianos, dizimadas, são inventadas, são personagens de romances apenas.

Um presidente do Brasil recente, até antes de ser presidente, homenageou publicamente como “herói nacional”, Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932-2015), major Tibiriçá de má fama, coronel do Exército, comandante do DOI-Codi entre setembro de 1970 e janeiro de 1974 e o primeiro torturador condenado pela Justiça.

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“Ainda estou aqui” lembra-nos dos que foram torturados pela ditatura militar  para que não permitamos que aconteça de novo, e não sermos torturados outra vez. Que tenhamos cuidados com os novos torturadores, que estão de prontidão, aguardando ordens, são os aplicados alunos da Escola das Américas (que ensina a submissão incondicional aos Estados Unidos) mesmo sem terem se sentado em seus bancos.

 Recomendo o filme, dou-lhe "bonequinho viu" aplaudindo em pé, critério de avaliação  do jornal O Globo de filmes exibidos desde 1938. 

E para quem  ainda gosta de ler livros, recomendo “A Casa dos Espíritos” da peruana Isabel Alende, que chora a mesma dor no Chile de Pinochet.. 

(Por Antonio FJ Saracura, em 28 de novembro de 2024).


 ANEXOS

https://documentosrevelados.com.br/tpos-de-tortura-usados-durante-a-ditadura-civil-militar/

https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/08/08/bolsonaro-chama-coronel-ustra-de-heroi-nacional.ghtml

https://cinemarcoblog.net/2020/12/17/o-bonequinho-vai-ao-cinema-em-o-globo/



 

 

 

domingo, 24 de novembro de 2024

JOSÉ AMADO DO NASCIMENTO, Paulo Amado de Oliveira

 JOSÉ AMADO DO NASCIMENTO, Paulo Amado de Oliveira (organização),2020, 264 pág, Isb 978-65-88652-04-08.

  "Nasci em dia de trevas

Não vi meu pai como era,

Há tanta treva no  mundo

rodando os berços dos pobres

Há tanta treva nas ruas

na hora dos enjeitados...”

(Primeira estrofe de O Poema do Menino Sem Pai, de José Amado Nascimento).

 

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Na segunda feira Literária  Estância (21/11/2024), no final da semana passada, bati-me, em uma mesa sem dono aparente,  a feira ainda se arrumava, com um livro que ronda à minha volta desde 2020 e nem o percebera.

Ninguém me falou dele dizendo que era bom,  ninguém leu uma resenha sobre ele aqui na academia de letras, ninguém postou qualquer texto sobre o livro “José Amado Nascimento” nas redes sociais que frequento... 

Que me lembre. 

E ali mesmo,  enquanto  a posse de Lúcio Prado Dias como imortal da Academia Estanciana de Letras corria à minha frente, passei os olhos nas 43 três peças (crônicas, ensaios  e poesia) escritos por  acadêmicos, jornalistas, professores, críticos de literatura e amigos apaixonados  pela obra e pelo ilustre sergipano, falecido  em 2017.

Vi seus versos chorarem a justa dor e estaquei em  uma pequena crônica, na página 57, denominada “Um Homem de Fé”, de minha autoria, que eu nem mais me lembrava dela.

E a li devagar, assim como farei agora.

“José Silvério, Cabral Machado, Carlos Leite, Luduvice, Arivaldo Montalvão, José Amado Nascimento...

Leigos, semi padres, que estavam sempre em volta (à sombra) do seminário, cuidando para que os seminaristas não sofressem maiores percalços. Havia outros que não cheguei a gravar os nomes e nem  me marcaram tanto.   Esses católicos dedicados... eu sabia onde morava cada um, fui algumas vezes às suas casas, a mando do reitor,  buscar mantimentos para nossa cozinha magra.

Corriam os anos de 1959 a 1963.

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A vida deu voltas, saí do seminário, briguei com minha fé, nunca mais passei em frente ao velho casarão da rua Dom José Thomás, 194. Do  Ateneu, onde fiz o científico noturno, pegava a Vila Cristina, a Praça Camerino, a rua Pacatuba, até a Dom Quirino, onde estava vila de quartos de seu Amado (outro ramo dos amados, talvez) onde me escondia do mundo.

Veio a Faculdade de Economia na Praça Camerino, na mesma chã de terra abençoada... José  Cruz, Thetis Nunes, Alberto Carvalho, Aloisio Campos, Gamaliel, José Amado Nascimento (este já conhecido). (Mestres que abriram bons caminhos).

José Amado não se lembrava do menino amarelo de cinco anos atrás (eram tantos à sua porta),  mas me tratou com distinção. Deu-me belas notas, que nem sei se as mereci. Fez-me apaixonar pelos balanços  contábeis, pela análise da vida das empresas, onde os números, assim como as febres na gente, acusam doenças. E mostrou-se um professor admirável, apagando completamente a imagem de carola bitolado como marquei os leigos semi padres  que me ajudaram a criar. Suas aulas, seu exemplo, sua aura católica, aproximaram-me, outra vez, da fé.

Veio a vida e corri mundos. Guerreiro incansável.

Um dia, muitos anos depois, estava sentado à frente do velho professor Carlos Leite, em sua casa à Praça Camerino, e entreguei os pontos de vez.  Viva o seminário que fez o homem que fui e que ainda sou!

Na igreja Sagrado Coração de Jesus, um dia depois,  assisti à missa que deixara pela metade 47 anos atrás.  Botei o rosto na toalha das mãos abertas e chorei. Perguntei ao Deus silencioso que me seguiu (e protegeu) a vida toda de perto,  se eu poderia, outra vez,  desfrutar a paz que nunca encontrei  em outro canto. Se me perdoaria?

Agora, recentemente, (corre o ano de 2016) tive a ventura de conviver mais um pouco com José Amado Nascimento. Daquele grupo inicial, que ajudava  a matar a fome dos seminaristas, apenas ele e Carlos Leite ainda viviam. Exatamente os dois que reacenderam minha fé. 

Fui à casa de José Amado pedir o voto para entrar na Academia Sergipana de Letras.  João Oliva e Murilo Melins foram comigo na primeira visita, recomendar-me. Nem precisava. José Amado, cego e surdo, via e ouvia muito mais do que todos nós, e me dizia: “Não relute. vá à casa de cada acadêmico, peça o voto”.

Valmir, sobrinho que cuidava dele, disse-me que lia os meus livros para José Amado e ele gostava muito: ria, vibrava, emocionava-se, comentava...

José Amado votou em mim nas duas eleições que disputei. Eu sabia que seu voto não contava mais, nem os coloquei na urna, mas fiz questão de buscá-lo como se fosse o voto decisivo.

José Amado faleceu no dia 22 de junho de 2017, com cem anos, faltavam dois meses para cento e um,  praticando um catolicismo exemplar. 

Peço a Deus que me ajude a seguir seus passos. Sou seu irmão, mereço, pois também...

Tenho diploma e quadro de formatura

mas ainda não sou doutor

porque os aduladores sabem que não tenho dinheiro”.

(Estrofe do poema ”Eu também já sou histórico”  página 37 do livro Obras Reunidas de José Amado Nascimento, 2016, Tse Sergipe).

Não se sinta satisfeito com minha resenha, busque o livro (há exemplares na Academia Sergipana de Letras) e leia cada uma das 43 imperdíveis peças. 

(Por Antônio FJ Saracura, Aracaju, 2024nov23).

terça-feira, 12 de novembro de 2024

MENINOS DO BENÉ RESISTÊNCIA

 

MENINOS DO BENÉ RESISTÊNCIA, Inez Resende de Jesus (organização), II Antologia de Jovens Escritores de Itabaiana, Infographics, 2024, 54 p Isbn 978-65-5730-204-0. Financiada pela Lei Paulo Gustavo do Governo Federal.   

Esta é uma antologia e compõe-se de textos recolhidos de estudantes pela professora Inez Resende de Jesus, antes de sua  aposentadoria na Escola Municipal Vice-governador Benedito Figueredo, no bairro  Cruzeiro do Século,  que hoje se chama São Cristóvão, em Itabaiana, um lugar que já foi da pesada. Cruzes de um cemitério, símbolos hoje, pois ninguém saiu incólume desta fase dura. A chegado do IFS, do Lar Cidade de Deus, do Seminário Arquidiocesano, os gritos dos Meninos do Bené e de suas famílias,  exigiram um cuidado especial do Poder Público.   

O livro de 54 páginas somente  é aberto com uma dedicatória dura aos  dezoito estudantes  que tombaram na mão do crime, no entorno da escola: Danille Chagas, Felipe Matos, Alessandra  Andrade, Valdervan Dias, Ana Paula Souza, Willian Souza Bacuri, Valdemir Barbosa, Clésia de Aquino Menezes, José Adilson Bispo, Marcos Bispo, Richardson, John Teixeira, Maycon Douglas, Luan Matheus, Daniel, Edenilson Oliveira, Eduardo Santana, Cleônio.

O doutor da Universidade Federal de Alagoas e imortal da  Academia Itabaianense de Letras, Anderson da Silva Almeida, outra testemunha ocular, pois atuou como professor do Bené, diz na apresentação: “Nossa pressão arterial sobe ao ouvir o garoto de 12 anos exclamar: sou o homem da família,  preciso trabalhar, ou, quando ficamos a par  da tortura sofrida em silêncio pela menina violentada aos nove anos de idade...”

Os textos são poemas  falando mais de amor do que de dor, mas lá no fundo  gemem sofredores. 

“Uma bala fria fez seu coração parar /E parou também todos os sonhos   / que minha estrelinha queria realizar” ( “Minha irmã virou uma estrelinha” de Jamily dos Santos Souza).

São dolorosas crônicas, nas quais piscam lâmpadas de esperança no breu. “Vinte horas, com o corpo dolorido pelo cansaço, faço minha última entrega. O dia foi bom, consegui juntar oitenta reais. Penso em meus irmãos famintos e corro para o supermercado antes que ele feche. Compro pão, mortadela, bolachas, manteiga, óleo, arroz e dois quilos de carne. Acomodo tudo no fundo da carroça e olho para aqueles mimos que vou levar para minha família. (...) Meus irmãos destroçam o pão, a mortadela e os biscoitos. Minha mãe deixa cair uma lágrima. Dou-lhe um beijo e a acalmo dizendo que quando as coisas melhorarem  eu voltarei  para a escola. Na manhã seguinte, bem cedinho, pego minha carroça e retorno ao  mercado. Que escola? Tenho doze anos... sou o homem da família.” ( “Infância Perdida”, de Alysson de Jesus).

Todos os textos seguem o mesmo batido e revelam um povo que luta, que apanha, que morre, que é discriminado, mas não abre mão do sonho de viver como gente.

Por fim, mais uma  estrofe de Silmara de Jesus no poema “Menino de Rua”, que dispensa qualquer comentário.

“Menino de rua...

de corpo magrinho e pé no chão

quem não te conhece, te julga

Cuidado, este moleque é ladrão!”

(Por Antônio FJ Saracura, Aracaju em 2024nov12)