domingo, 4 de março de 2018

A morte de um grande jornalista: Clarêncio Martins Fontes


A morte de um grande jornalista


Atrasei a cota que depositava todo mês para ajudar Clarêncio Martins Fontes no pagamento do aluguel da casa humilde onde morava. E ele não me ligou reclamando, como costumava e não atendeu meu telefonema, no qual pretendia me desculpar pelo atraso.

Clarêncio morava em uma casa deteriorada na rua Carlos Burlamarqui, no trecho ocupado por revendas de automóveis e que morre, mindinho, na avenida Coelho e Campos. Um local complicado para estacionar.

Aproveitei a terça-feira de carnaval e fui saber o porquê do silêncio do jornalista. Certamente não faltariam vagas para estacionar, já era comecinho da noite de um feriado.

A casa de Clarêncio estava fechada como de costume. Havia um  casal, na calçada da casa vizinha conversando. Cumprimentei-o e perguntei se o jornalista Clarêncio estaria em casa. É que a luz da sala da frente da casa dele não estava acesa, como de costume.

O senhor, que presumi ser o dono da casa vizinha, disse-me que o jornalista havia falecido mais ou menos às duas da tarde e o seu corpo acabara de sair ao IML. 

O casal,então, passou a narrar o sufoco por que passou naquela tarde, envolvido pela morte do vizinho:

“A esposa do jornalista, que parece ter problemas mentais, saiu à rua pedindo socorro, por volta da duas da tarde, queria uma ajuda para levantar o marido do leito. Nós estávamos à porta e nem pudemos escapar, ela postou-se à nossa frente. E trazia na mão um papel onde estava escrito um número de telefone de outro Estado. Mas incompleto, com apenas quatro dígitos. E queria que ligássemos... E alguém viria socorrer o marido.
Resolvemos ver o que acontecia dentro da casa misteriosa.
O jornalista e a esposa não se relacionavam nem conosco nem com os demais vizinhos. Sempre ele saía pela manhã e retornava depois de meio-dia com pacotes, jornais e livros. Sabíamos que era um intelectual de renome. Sempre apareciam crônicas com sua assinatura nos jornais. E a casa, víamos de relance ao passarmos em frente, era atulhada de livros e revistas. A esposa vivia presa, embaixo de chave, atendia às raras visitas através da grade do portão de ferro.

Desconfiávamos que ele poderia estar enfermo, não o víamos sair nos últimos quinze dias. Um senhor que mora mais adiante na rua, a dois trechos, um serviçal faz-tudo a todos, talvez o único com quem o jornalista se relacionava regularmente, vinha toda pela com uma penca de bananas e a fazia passar pelas grades do portão de ferro. O casal devia estar se alimentando, ultimamente, disso.
Entramos na casa entulhada de livros.

O jornalista jazia em um catre, morto.

A esposa entendia a gravidade da situação. Fora da realidade, não dizia nada com nada. Suas respostas não batiam com as perguntas que agoniados fazíamos.

O que fazer?

Nada conhecíamos parentes, pouco sabíamos até do casal que habitava na casa vizinha há mais de dois anos...

Encontramos uma agenda jogada sobre um monte de livros e ligamos para números, mas nenhum atendeu. 

Havia junto, um carnê da Osaf e, pelo que observamos, com prestações em atraso.

Resolvemos chamar o Samu, mesmo sabendo que o jornalista estava morto. Íamos ligar ao 190 da polícia, mas uma viatura passava na rua. Demos a mão, gritamos, corremos impedindo que fosse embora.

Ai então, lembramos do faz-tudo da rua, o que morava dois trechos à frente. Ainda bem! Ele sabia o número do telefone de uma sobrinha do jornalista. Ligamos, avisando do ocorrido. Daí a pouco, chegaram a sobrinha, chamada Helena, e uma irmã, chamada Mabel: surpresas, assustadas.

Nem o Samu tinha o que fazer, nem a polícia, mas esta ficou conosco até agora há pouco.

O comandante da patrulha policial definiu que o corpo do jornalista seria guardado no Iml por não haver outro local possível. A família iria, no dia seguinte, resgatar o corpo e cuidar das burocracias, do velório e do sepultamento.

E a esposa de juízo fraco?

Alguém teria que ficar com ela.
Todos olharam para a irmã, dona Mabel. Ela recuou e disse que não podia hospedá-la em sua casa nem um dia. Por fim, não houve alternativa e a viúva foi com a cunhada mesmo”.

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Eu escutei tudo e liguei a Cleiber Vieira, presidente da Associação Sergipana de Imprensa, ASI, para decidirmos o que melhor fazer em apoio à família. Ele atendeu ao telefonema, estava enfermo e não possuía contatos da família de Clarêncio. Iria localizar a secretária que estava no interior gozando a folga do carnaval.

O vizinho que me contou a história não reteve o contato e, na agonia do momento, nem me lembrei de procurar o faz-tudo do trecho...

Liguei a pessoas que eu sabia mais próximas do jornalista avisando da morte. Poucos atenderam, todos estavam viajando ou impedidos por algum motivo.

Postei mensagem nas redes sociais.

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No dia seguinte, Quarta-feira de Cinzas, por volta da dez horas, como ainda não localizáramos a família, fui ao Iml. O corpo estava lá, liberado, mas ninguém havia ido buscar. Apenas a família podia retirá-lo.

Fui então à Osaf, seguindo o carnê em atraso. Na secretaria, me informaram que alguém estava vendo o assunto Clarêncio no setor de Assistência Funeral. Ao correr ao setor, vi duas senhoras saindo, caminhavam em direção a um carro estacionado no outro lado da rua. Fui atrás e perguntei se eram gente de Clarêncio. Eram. A sobrinha, Helena, e a irmã, Mabel. Já haviam se acertado com a Osaf: o enterro seria à tarde no São João Batista. Estavam indo ao cartório registrar o óbito. Iriam ao IML, depois, retirar o corpo. Não precisavam de minha ajuda. Me ligariam informando a hora do enterro, para que eu avisasse aos amigos e colegas dele. 

Participei ao presidente da ASI e postei a informação nas redes sociais.

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Às três horas, a sobrinha, Helena, me informou que o enterro seria as 16 horas. Passei a informação em frente.

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As quatro horas, chegou o carro da Osaf ao São João Batista com o corpo de Clarêncio. O enterro foi feito sem delongas. Estavam presentes, cerca de oito pessoa da família e quatro jornalistas da ASI e da Academia Sergipana de Letras.

Na saída do cemitério, ao portão, fiquei próximo a Mabel, a irmã de Clarêncio que conheci pela manhã na OSAF. Perguntei pela viúva. Ela, com a voz trêmula, disse:

“Está lá em casa, mas eu não tenho condição nenhuma de hospedá-la. Telefonei para um parente dela em Salvador, pedindo que venha buscá-la logo. Estou com medo de não vir”.

Desatou a chorar.

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Na missa de sétimo dia, a igreja do Salesiano estava lotada. Eram várias intenções, mortos de numerosas famílias. O nome de Clarêncio foi lido pelo sacristão ao final de uma lista longa; pensei que nem seria mais. Mesmo assim, estavam presentes, membros da Academia Sergipana de Letras, da Associação Sergipana de Imprensa (ao todo, quatro pessoas) e uma quantidade significativa de parentes (irmãs, sobrinhos e amigos da família e do jornalista; calculei que doze pessoas).

Ao final da missa, fui ao banco onde estava o povo de Clarêncio, bem à frente, o primeiro banco do átrio. Mabel já me conhecia desde o dia do sepultamento e me apresentou à outra irmã, sentada ao lado, que eu ainda não vira. Ambas idosas, acredito acima dos setenta, maltratadas pela vida ingrata mas ainda deixando transparecer uma beleza ariana admirável. Mabel e a irmã falaram, ao mesmo tempo, talvez querendo conquistar minha admiração ou mostrarem-se valiosas:

“Nós duas somos poetisas também. Saímos ao nosso pai e ao nosso irmão!”.

Eu não soube o que dizer, não podia turvar o orgulho declarado. Fiquei, um momento, atônito, e, por fim, não achando nada a comentar, perguntei pela cunhada, a esposa de Clarêncio, à qual Mabel acolhera e me confessara, sete dias atrás, que não teria nenhuma condição de sequer hospedá-la. 

Mabel olhou-me com dois olhos claros, marejados de aflição:

“Está lá em casa ainda. Deus me ajude! A família dela não deu notícia. Não sei o que será de mim e nem da pobre coitada que se imagina uma rica princesa”.

Baixou a cabeça chorando.

(por Antônio FJ Saracura, admirador do jornalista Clarêncio M Fontes).

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Post Script:


CLARÊNCIO FAZIA PANEGÍRICOS A TANTOS E MORREU ABANDONADO
 (Jornalista Luiz Eduardo Costa, no blog, em 17/02/2018: 



Clarêncio Fontes era filho de poeta, o modernista acanhado José Maria Fontes. O pai, foi um homem descuidado com ele mesmo. Excêntrico e ensimesmado, passou anos e anos encafuado na sua casa humilde, quase nas areias do Carro Quebrado, onde acabava a Rua de Lagarto. Com mulher e filhos, abandonava-se à solidão, partilhada com as centenas de rãs que tinha soltas pela casa e também delas se alimentava. Clarêncio criou-se ali, vendo o pai acumulando livros, muitas vezes lendo-os à luz do poste, quando a energia era cortada. Mas Zé Maria tinha a segurança, pelo menos de um modesto emprego público. Clarêncio, seu filho, foi também poeta, herdou os livros do pai, (existiria melhor herança?) a eles acrescentou tantos outros e colecionava papéis, revistas, jornais, futucava arquivos, hemerotecas, bibliotecas. E escrevia bem. Embora preferisse o estilo barroco. Esse acervo, que era também estorvo, o acompanhou na sua decadência.
  Clarêncio nunca teve emprego certo. Foi algumas vezes redator em jornais e emissoras de rádio, mas o álcool o tornava inconstante e logo perdia os meios de sustento. Levou uma vida de sacrifícios e carências. Foi encontrado morto, já tardiamente, enquanto sua esposa doente ao lado nada podia fazer. Ao seu enterro compareceram 4 pessoas, entre elas o escritor Saracura. Morreu silenciosa e humildemente, como silenciosa e humilde foi a sua vida. Fez panegíricos a tantos e todos o deixaram abandonado.
  Registre-se aqui, ressalvadas possíveis omissões, que teve amigos como Kleiber Vieira, o procurador Givaldo Rosa, tantos outros na Academia de Letras, que por vezes o socorriam. Mas, a Clarêncio teria faltado alguma coisa, assim como, sei lá, quem sabe sobre a alma humana, sobre essa coisa chamada destino...
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Enéas 4 de março de 2018 17:23 email Para: Antônio Francisco de Jesus Saracura 
"Caro Saracura:

Que tristeza, meu caro! Que final triste para um jornalista e intelectual de tanto talento! Só falei com ele duas vezes mas o tinha como um amigo. Também trocamos algumas cartas. Lamentei muito, muito, muito. Ainda mais pela forma melancólica como faleceu e tudo que veio depois. Meus parabéns pela sua solidariedade! É por ela que se mede um homem. Pensarei nele, recordando-o, pois, como disse alguém, as pessoas não morrem enquanto são lembradas. Que descanse em paz o bom amigo! Grande abraço do ENÉAS ATHANÁZIO, escritor catarinense (Camboriu). 


4 comentários:

  1. Que narrativa emocionante, amigo! Quis pensar que seria uma ficção para poupar minhas lágrimas enquanto lia... No final, fiquei compadecida com a situação da viúva. Como é difícil a solidão! Mesmo para quem a lucidez promova a fuga nas letras... Elas não dão conta das ausências, da falta de abraços, da carência de uma vida cheia de adversidades... Dessa história ficam lições importantes para escolhas e decisões... Nada como aprender com a experiência alheia... (dói menos. Que a Luz Perpétua o ilumine na vida eterna!

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  2. Que história! Que é de nós? Por que viemos? O que e como vivemos? Para onde iremos? Que o bom Deus seja o conforto e a saída para nossas inquietações porque assim como chegamos, iremos. Emocionei-me.

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    1. Obrigado, Francisco, pelo retorno ao meu texto real. Ainda bem que temos nosso bom Deus.Para mim é somente bom.

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  3. Tereza Cristina, obrigado pelo retorno. É bom demais saber que fomos lidos e que as pessoas comungaram conosco a história contada. Então não preguei no deserto!

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