FORÇA DA NOVA (RELEMBRANÇAS),
Carmo Bernardes,1. Edição,1981, Secretaria de Educação do Estado de Goiás, 168
páginas, sem isbn.

FORÇA DA NOVA (RELEMBRANÇAS),
Carmo Bernardes,1. Edição,1981, Secretaria de Educação do Estado de Goiás, 168
páginas, sem isbn.
Um intelectual de projeção
mundial que lê o que escrevo (ai! ai! ai!), mandou-me, de presente, no começo
da semana, um pacote com quatro livros, entre os quais, três de Carmo
Bernardes, autor de Goiás, de quem nunca ouvira falar. Por que teria feito isso?
Vou me ater a um dos livros
(Força da Nova Relembranças) de Carmo Bernardes, pois ao abri-lo, grudou em mim
e nem tive tempo de arrumar uma sacola de viagem. “Dois Irmãos’, de Milton
Hatoum, que estava lendo, congelou na página 46, e talvez demore para voltar à
temperatura normal, se voltar.
A escrita desse Carmo (que nome
mais estranho!) é bruta, a linguagem falada do povo, com a imensa riqueza de
vocábulos in natura, de imagens que dispensam explicações e transporta o leitor
para o mundo descrito. Desde o primeiro momento, transporta e leitor,
como se dele o fosse desde que nasceu.
Aconteceu comigo.
Terra Vermelha de minha infância
é, sem tirar nem por, este brasilzão interiorano de Minas e de Goiás, começo do
século, aonde perambula e anota tudo o moleque doentio (como eu),Carmo
Bernardes:
“O gado Paranã, só gado arisco,
criado na largueza; maior parte não tinha custeio nenhum de curral, salitrava
nos barreiros. Na formação das boiadas, a bem dizer, tinha que pegar um a um no
laço, deixar dias e mais dias no curral, sem comer, esbrebejando. Boi quando é
assim, brabo demais como aqueles, depois de reunidos em manada não desapartam.
Quanto mais braba é a rês mais no meio dos outros ela quer ficar, de forma que
aquelas boiadas pareciam uma tacha de melado fervendo, o bolo andando em roda,
nenhum aceitando ficar de fora, e tinha que ser tocada assim, embolada... O
ponteiro ia adiante para maloca não encompridar, porque se encompridasse muito
aí era perigoso esfiapar, estourar, levar o diabo. Dava de acontecer isto
alguma vez: boiada esfarelar no mundo, voltar tudo para as suas querências, e
aí tinha que tornar a pegar no laço, reunir de novo os talhões. Só depois de
sair fora, com três ou quatro dias de marcha, é que os bichos iam se entregado,
caindo na realidade.”
Para entender o sentido dos
termos e dos ditos, só pelo ritmo da prosa, pelo contexto, pelo encaixe nas
imagens que a mente do leitor vai criando dinamicamente o entendimento.
Relaxe que as luzes irão se
acender, especialmente se você (o leitor) foi constituído pelo traçado genético
das três raças (africano, ameríndio e europeu). Eu sou isso e quase todos nós.
Em "Força Nova" a
leitura ressoou como uma melodia, que foi me envolvendo e, daí a pouco, eu
estava batendo compasso com o pé nervoso, cadenciado e constante. Seria
um hictus que extravasou as fronteiras das relutâncias e
dominou o meu mundo?
E comecei a perceber que eu não
lia somente, recitava (ora em voz alta, ora baixinho), como se estivesse em um
palco, cada poema que o mago goiano despejava à minha frente. A força das
palavras reveladas era tamanha que furava a barreira da leitura silenciosa na
qual apenas o pensamento participa, tomando conta de todos os sentidos,
contaminando o povo daqui de casa, da vizinhança, rompendo divisas.
Se precisei ir a sentina (todos
precisam), ia com o livro aberto na mão, abaixava as calças com a outra, no
maior cuidado para não mijar os cós ou fora no chão. Sentava a bunda na tampa
fria, que se transformava no trono pra leitura. Dali, só me levantava quando
minha esposa passava no corredor e perguntava se eu estava entupido, pois já
havia meia hora que entrara na casinha e, lá da sala, ela presta atenção a
tudo, não escutou nenhuma descarga dada. E prosseguia implicante, rascando (tá
ficando ousada), já retornando para não perder a meada da sua série na Tv. e
ordenando "que eu lavasse o pingolin (devido ao tamanhinho) e o fifó
(distante demais) para não ajuntar frieira.
Já quase meia-noite dessa
terça-feira, dia 07 de abril, após seis horas de leitura e êxtase, pois
iniciei “Força da Nova” à tardinha, meus olhos pinicaram dez vezes
mais do que uma hora antes, quando começaram a dar sinal de luz.
Agora, os termos e os ditos que
eu pegava no livro na maior secura vinham inteiros, até certo ponto, e se
desmanchavam antes de alcançar minha mente: as letras vazavam para um
lado e outro e eu precisava bater os olhos, cada vez mais, para reorganizá-las
de novo.
Talvez eu tivesse chegado além
do meu limite. Percebi que não havia jeito a dar a não ser largar o livro
no chão, marcar a página (era a 94), fechar os olhos que já estavam entregues,
tentar dormir um pouco.
E agarrei no sono e mergulhei em
um um sonho que me acompanhou até de manhãzinha, quando o sol, que já é costume
dele, me esquentou o couro, entrando pela janela sem cortinas.
E no sonho, eu me gabava para
mim mesmo, porque conseguia, logo depois de meia dúzia de páginas lidas,
entender a ciência da leitura desse Carmo infernal. Certo que venho também do
mato e boa parte dos termos e dos ditos eram parentes ou pareceres de minha
vida. E calcado nesse parentesco, os outros que nunca ouvira na vida, entravam
no meu sentido por conta da música que o escritor assobiava ao fundo, ou mesmo
pelo desenrolar da novela, que não há como escapar pois o cabra usa visgo de
jaca ou sei lá o quê. Mesmo se viesse o cão no lugar de um anjo, eu, afiado
como estava, entendia, na hora, que aquele cão era bonzinho. E, ainda no sonho,
eu saía da Terra Vermelha e das Flechas, e já estava na Fazenda Poção ou nos
alagados de Formosa, montado no cavalinho que meu avô me deu e que causou
aquela inveja danada em meu primo Zé Carlos de tio Chico.
Sonho é danado, se coliga com a
fantasia e nos leva para onde quer.
E o meu cavalinho, empolgado com
o cheiro do lugar, foi saltar uma poça, até pequena, que era uma lagoinha
disfarçada, e escorregou na beirada da banda de lá, me derrubando dentro da
água escura com ele por cima.
Saímos os dois como pintos
molhados. Já fora, senti um volume no bolso da bunda que não me lembrava que
houvesse antes...
Era um trairão, de quase três
quilos, como os que pegara de anzol em uma noite, na qual fui com uns amigos
doidos, pescar na lagoa Formosa, que fica no município de Planaltina, perto de
Brasília, onde então eu trabalhava.
Nem me lembro mais o que fiz com
aquela traíra, pois, logo eu estava andando nas terras baixas, moles e
malcheirosas, que chamam de Pântanos Mortos e que deram um tremendo sufoco em
Frodo e em sua comitiva, mal guiados pela safado Gollun, em busca do magma do
vulcão da Perdição, onde jogariam o anel do poder maldito. Era um descampado a
perder de vista, uma macega rala e atoladeira. Então me deu um começo de
colerina... Tive que correr pra detrás de um cupinzeiro meão, que só me cobriu
metade das popas. Mesmo assim, abaixei as calças e, quando ia me desafogar,
acordei.
Ainda consegui segurar o tiro
disparado que já esfumaçara. Por pouco, não desgraço a rede branca que fora
lavada nem havia uma semana.
Minha esposa seria capaz de
botar no grupo de wsap da família esse inominável vacilo de minhas pregas tidas
como respeitáveis.
xxx
Cuidei de fazer minhas
obrigações matinais, tomei café, enrolei aqui e ali e, manhoso, cheguei ao meu
canto de leitura.
Carmo Bernandes nem respondeu ao
meu cumprimento.
Mergulhei no livro e fui
misturado, de novo, com as terras do Goiás e seu povo bruto, com a doida
professora ensinadeira de bruguelo de papagaio a falar... Hei, peraí! Eu nunca
li, acho, esse Carmo, antes de ontem, mas a história da professora de papagaio
me parece familiar.
Peraí!Essas terras alagadas, com
lagoas escondidas que estavam em meu sonho da noite, agora aparecem vívidas nas
páginas agora leio, engolindo inteiros landis derrubados, botando pra
fora Brasília, que é minha terra também. Só se, no sonho, eu avancei na
leitura, e até pesquei aquele trairão que só agora o avô Pernagrossa pegou uma
enfieira. Talvez se explique pela embalagem na qual eu vinha o dia todo e até
meia noite. Assim, não há trem que consiga parar.
Xxx
É todo o livro desse jeito,
ângulo de sucupira, não há como desperdiçar nada. Se fosse para citar todas as
passagens geniais, o livro inteiro mudaria para essa resenha. Seria melhor
comprar um exemplar (tem na Estante Virtual) para cada leitor. E não adianta
você correr ao dicionário, pelo mesmo motivo. Os termos e os ditos brutos estão
espalhados à sua frente em profusão e nenhum dicionário do mundo mostrará dez
por cento. A leitura não andaria e o leitor teria que, talvez, dar um pulo no
sertão de Goiás, perguntar o sentido a algum tabaréu, pois o autor já faleceu
há mais de 20 anos (1996).
Outra coisa, para encerrar
finalmente (ai, meu deus, me encolha um pouco!), Carmo Bernardes é um artista
da palavra e senhor absoluto da ciência da escrita. Escreve essa língua oral,
cheia de símbolos e poderes misteriosos, como ele mesmo diz: "A (minha)
frase sai (só sai se for) quente da boca do povo e incorporando as sutilezas
das palavras e o valor das entonações e sotaques".
Isso me me lembra Juan
Rulfo (autor mexicano), "obcecado pelo corte, pelo polimento final, pelo
secar de um texto até reduzi-lo à mais rigorosa exatidão".
Pense no desatino de artista
pintar (Carmo Bernardes) uma obra dessa e ser ignorado (até menosprezado)
pelo mundo?
(Aracaju, 2010 abril 09, Antônio
Saracura)
ANEXO
Força da nova (Diário da
Leitura)
(Página 16) – crianças que se
arrastam torcendo o corpo com as popas no chão frio e outras que vão de quatro
com tupi ao vento.
(Página 19) – Quando a primeira
guerra findou veio mais miséria, a febre espanhola “dessa epidemia morreu tanta
gente que em alguns lugares, cidades e vilas, não ficou uma vivalma, que fosse,
para sepultar os mortos... a urubusama chegou a destelhar casas e houve casos
de comer mesmo os cadáveres”. O autor vai soltando sabedorias como fatos assim
e da ciência do povo. E dá a entender que sabe muito, a linguagem bruta é
porque é a única que lhe arranca da memória essa escrita mágica.
(Página 20) – Explica a medida
do Jacá que era usada nos sertões de Minas e que hoje ninguém mais sabe o que
é. Mesma coisa para medidas do milho (atilho, mão) que ainda se usa na feira de
Itabaiana.
(Página 21 e outras) – Menino
não entra na conversa de mais velhos. Se insiste, o adulto o espanta e pode até
mandar “acolá, atrás da horta, ver se estou lá”. Eu fui algumas vezes.
(Página 15 e outras) – os ditos
e os termos menosprezados pelos dicionaristas aparecem a cada momento com todo
seu poder: Mequetrefe, popas, tupi, alqueive (terra que se deixa descansar),
Chernoviz (livro com nomes de remédios para a doença), insofros, pinchos,
“tomara eu ver” (ameaça da mãe, que também era da minha), tribusânia,
mantiqueira (tocaia de matar gente), ganzepe, finiscote, mocorongo... esse aí
vai voar na seca (os urubus vão comer),
- E alguns termos eruditos até
demais, que o autor lança mão para explicar as ciências: farândola (grupo de
maltrapilhos), Azêmola (cavalo velho e estropiado), ridicar (negar, ser
avarento), colerina (forma benigna do cólera morbo, que mata), esfíncteres
(anéis de músculo que controlam a abertura orifícios no corpo da gente).
(Página 23) – Cada lugar tinha
sua parteira, o capador de porca, o benzedor de cobra, o rezador de terço, o
encanador de osso quebrado, e assim por diante.
(Página 27) – os quartos de
dormir nas casas dos sítios eram furnas escuras, fediam a mofo, os donos só
entravam lá na hora de dormir. Também nos povoados de Itabaiana, haja visto o
quarto de Madrinha Santinha, que a gente usou para criar preá da índia, quando
meu avô faleceu.
(Página 30) – as coisas grandes
do tempo de criança, quando a gente vira adulto elas ficam pequeninas. Como o
corredor lá de casa, onde eu corria com medo de Santa Luzia e nunca chegava ao
fim.
(Página 32) – Mais sabedorias:
cobra só ataca se houver espaço para ela dar o bote. A jararaca é a mais
mordedeira, porque consegue dar bote em qualquer cantinho. O boi que ganha a
briga fica dócil, amigável, e o que perde fica uma fera, bate até na sombra.
Roubar rês da estrada que sempre acompanha a boiada que passa, tangendo-a para
dentro. A arte de pegar passarinho com laço de pena de ema. Armação de arapucas
para pegar animais. O uso do pequi, do coco-xodó para fazer sabão. Ensinar boi
comer sal. A noite é feita para o desfruto dos pagãos. A onça e o gato têm medo
de fogo, porque as meninas dos olhos deles se abrem muito rápido e ofuscam.
Como capar uma porca. Todo gato com três cores é fêmea. Como caçar Emas (que
absurdo) para fazer espanador. Erva medicinal só nasce em terrenos fracos.
Quando menino aprende a dar em nó no cordão, pode meter a taca nele. Até o
bicho pagão repudia a caridade (vaca bater após ser desatolada). Se um pai não
bate o filho quando é preciso, quem vai bater depois é o mundo, que é
impiedoso. Vassourinhas amarradas no caminho (brincadeira de mau gosto que eu
fiz muito). Bacia de lavar pés é indispensável na casa de mineiro do mato.
(Página 93) – autor sai da
história e explica a função do historiador, E se explica, porque escreve como
escreve. A força das palavras brutas. “A prosa só sai de mim assim”. E revela
seu desconforto em participar da sociedade moderna, das festas, prefere o
isolamento (143).
(Página 163) - os encontros com
a coluna Prestes (João Alberto, barbudos de lenço vermelho amarrado ao
pescoço). Há sempre presentinhos de história e de ciência aqui e acolá,
provando que homem (povo) algum é uma ilha.
Ufa!
(Aracaju, 2010 abril 09, Antônio
Saracura)