CÃO NA MOITA, Jackson da Silva
Lima, 1997, 2 edição, J. Andrade, 134 páginas
Assim como "Manobelo e Outras Narrativas", "Cão na Moita" dificilmente será achado em sebo ou livraria. Talvez em alguma biblioteca pública, que hoje mais parecem cemitérios de indigentes, com tampas das carneiras abertas e defuntos sumidos.
Com certeza, os dois livros estão no meu oratório literário na companhia de poderosos santos, como eles são.
Chegaram a mim por milagre. Fui
visitar, cheio de cerimônia, o grande Jackson da Silva Lima em seu centro de pesquisas. Após
uma hora ou mais de boa conversa, já na saída, ele me mandou esperar um pouquinho e sumiu
nas galerias de sua Epifânio imaginária. Retornou com alguns livrinhos do mesmo
tamanho, sentou-se à mesa e escreveu dedicatórias. Em 27 de junho de 2013. Achou que eu seria bom guardião das joias e me deu mais três exemplares de "Monobelo..." e de "Cão na Moita", que já passei também a outros guardiões com gosto para sorver o raro mel silvestre.
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“Cão na Moita” é composto assim:
DE NOITE, NO OITÃO DA IGREJA (I –
de quarta para quinta; II – no outro dia, às mesmas horas; III – Entre ambos os
dois; IV – Conversa de Pé do Ouvido; V – Quatro dias depois; VI – Na semana
seguinte).
UMA VELA A DEUS E OUTRA AO DIABO
(I – As duas velas ac essas; II – Abrahão e os remorsos de Davi; III – O
sentido no cão e o olho na trouxa).
ENQUANTO O CÃO ESFREGA O OLHO (I
– Padre Simão e as artes de Zé de Nanã; II – Matos Além; III – O Bezerrinho
santo).
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A xarope feito com pintinho pilado e que serve para curar sezão; a raiz misteriosa que era lombriga seca; o chá de barata nova para
falta de ar; a galinha mal cozida com pena e tudo que espuma na boca querendo
fugir; os contadores de histórias absurdas rebatidos por outros ainda maiores; o
cisco que caiu nos meus zóio; a bezerrinha alazã que se encantou; o gato preto
que era Zé de Nanã... (mezinhas milagrosas, momentos antológicos, poderes do Cão tinhoso).
Marieta, Janjão raizeiro, Zé de Nanã, Pepeu, Frei Inocêncio, Currupião, padre Simão safado, seu Chiquinho da Venda, dona Santinha, Coronel Zé Raimundo, Chico Lino, Sinhá Dinha.... (personagens inolvidáveis do passado glorioso e da malandragem de hoje).
Frechas, pêga, presepada, bicanca, se avultar, loroteiro (é o que não falta), maçone... (adjetivos singulares, verbos poderosos e substantivos cabeludos).
“Cão na Moita” é um grande livro dentro de um vidrinho do
tamanho de nada, próprio para venenos mortais ou perfumes fatais. São 133
páginas de saber literário, nas quais corre o sangue autêntico e tosco de nosso
povo simples, com suas superstições, jeito de dizer, manias de ser, ditos, histórias
de arrepiar.
E o sanfoneiro, velho Piruá,
mesmo com risco de vida na mão de Lampião, teve sangue frio para cantar a glosa:
“Com vara, ferrão e tudo"
“Valha-me a Providência
Com o seu poder sublime
Que eu vou comentar um crime
Perante tanta inocência,
Mas a voz da consciência
Me revelou o estudo:
(...)
Garote brabo e chifrudo
na solta livre criado
só pode ser enfrentado
Com vara, ferrão e tudo" (1)
Olhando assim, parece ao autor (pela
boca do narrador) e ao leitor abismado (que sempre é) que “a cabeça do cantador
de repente é uma olaria fina cheia de fôrma desempenada. Todo verso tem sua
forminha certa. Na hora da cantoria, o repentista pega uma palavra e vai
juntando com outra, faz a mistura, passa na peneira do juízo, já o fogo da
inspiração aceso, joga a massa apurada na fôrma e põe no forno do improviso
para cozinhar obra. Num momento, a danada da rima tá no ponto. É só abrir a
boca e o verso voa quente, aprumado. Sai prontinho da ideia e vai bater na
plateia ansiosa”.
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Junto com Jackson da Silva Lima (que
o faz na última página) agradecemos a Gilson Resende, de Itabaiana, e a Maria José
Nascimento, de Ribeirópolis, eles deram ao livro, com seus depoimentos, a
música do falar do povo da Terra Vermelha (minha referência guardada da infância).
Vou concluir pela voz do genial
Luiz Antônio Barreto, registrada na orelha do livro.
“O Cão na Moita”, de Jackson da
Silva Lima, é um livro de contos da nova literatura brasileira, um autor já
galardoado como inventariante da arte literária sergipana, do folclore, e como
intérprete de notáveis figuras. Os poetas José Sampaio e Santo Souza e os pensadores,
Fausto Cardoso e Tobias Barreto”.
Aracaju, 15 de novembro de 2021
(ainda na Pandemia, no restinho), por Antônio Saracura.
(1) O quarteto final do repente de Piruá (que ele me perdoe) foi reescrito por mim para não conspurcar a angelical pureza do ambiente acadêmico".
Li na ASL em 13/12/2021
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