QUEM É ESSE ACRÍSIO
TORRES ARAÚJO?
(homenagem a um
imortal falecido).
Por Antônio FJ
Saracura, escritor.
O cearense
ganhou fama de andarilho, está em todo mundo negociando redes, empreendendo
turismo, nas boas posições do serviço público, donos de grandes empresas ou de
oficinas em fundo de quintal, trabalhando duro. Construiu São Paulo, se bem
que, nessa empreitada, teve ajuda dos demais conterrâneos do Nordeste.
Eu poderia
falar de muitos desses nômades, a começar por José de Alencar, um dos mágicos
que encantaram minha juventude, escritor clássico e imortal da Academia
Brasileira de Letras. Mas ficarei com Acrísio Torres Araújo, que também
escreveu livros, foi imortal da Academia Sergipana de Letras e professor
catedrático da Universidade de Brasília. Um meio sergipano que aportou em
Aracaju sutilmente, na década de 60...
Acrísio não
está mais em nosso meio. Na sua ânsia de correr mundo, foi para o céu no final
de 2015. Nas três últimas décadas, nem morava em Aracaju, onde pouco aparecia:
uma vez, na célebre recepção a João Oliva Alves na Academia Sergipana, e depois,
em rápidas e esporádicas visitas sociais.
Eu o conheci na
época em que militei na imprensa, rádio “Cultura” e Jornal “A Cruzada”, 65 a
68. A idade tem me privado o acesso fácil aos arquivos que guardei com zelo à
vida toda. Ou nem é a idade! Talvez a chave às camadas mais profundas tenha se
perdido nos atropelos de uma vida intensa, ou a fechadura emperrou pelo excesso
de dados guardados estufando a porta. Hoje, pouco consigo recuperar sobre
Acrísio Torres...
Ele veio
visitar um irmão e ficou por aqui. Teria cansado na caminhada ao sul que todo
cearense tem que fazer na vida? Então, começou a fazer contatos, a criar
amigos, estabelecer território. Aproximou-se de mim na redação do jornal “A
Cruzada”, estabelecida na rua Propriá, num terreno que ainda hoje existe, entre mangueiras frondosas. Eu era o redator-chefe
e estava fechando uma edição conflituosa. Ele apareceu à minha frente e, vendo-me
assoberbado, estendeu-me a mão e, com um sorriso dócil (talvez doce mesmo),
disse que voltaria depois, queria conversar comigo sobre jornalismo. Entendeu
que eu não poderia ser interrompido naquele momento. Fiquei-lhe devendo
obrigação por isso. No dia seguinte, ou em outro qualquer, depois que a edição
do jornal foi para a rua, ele apareceu. Apertei sua mão como a de um amigo de
velha data.
Fizemos
camaradagem e passamos a andar juntos pela cidade, entrevistando pessoas,
documentando situações, debatendo temas polêmicos, tomando cerveja e quebrando caranguejo
nos quiosques da Atalaia. Aprendi com ele a ciência das patinhas do caranguejo.
Não mais importava se havia carne entranhada ou apenas felpas. O sabor, o
prazer estava agora no ritual: o martelinho de madeira batendo cadenciado; a
patinha reagindo, querendo escapar. Os sentidos imersos naquela cerimônia. O
mundo inteiro apagava-se. Não mais uma mesa de bar, não mais manchetes
ofensivas ou tipos empastelados, mas um altar de consagração.
Acrísio possuía
um automóvel. Quando eu estava disponível, ele aparecia. Fomos ao bispo, e o
levaria ao Papa se morasse em Aracaju. Talvez tenhamos ido, em alguma tarde morna,
ao sítio Saracura, na Terra Vermelha de Itabaiana... Sempre o destino
irreversível e inconsciente. Os meus amigos passaram a ser também os dele. E,
em troca, ele conseguiu para mim muitos novos amigos que conquistara com seu
jeito afável de cativar.
Fino, leve,
rosto afilado, andando sempre ligeiro, olhos à espreita. O biotipo dos
habitantes dos meus povoados rústicos. Poderia ser um professor do grupo escolar
nas Flechas, um plantador de amendoim no Pé do Veado, um negociante de farinha
no mercado de Aracaju. De avental branco seria um autêntico enfermeiro dos
arquivos mortos, que passou a ser com dedicação religiosa.
Quando entrei
na Petrobras, Acrísio comemorou. E, tal
qual um pai zeloso, ou um irmão mais velho, buscou-me ensinar a lidar com muito
dinheiro (como se fosse), e a investir para o futuro (como se eu não soubesse).
Terrenos é a
melhor opção, dizia agoniado. Aracaju vai explodir...
Varamos um
areal imenso, cruzamos riachos e nos batemos em um sítio de cajueiros que
estava sendo loteado, no meio do mundo. Acrísio comprara dois lotes e reservara
uma quadra para mim. Queria-me como vizinho. O idoso proprietário abaixou o
preço, dividiu o valor de acordo com meu salário. Relutei, perdi-me em dúvidas
e não comprei. O terreno ficava no coração do atual bairro Jardins.
Acrísio envolveu-se
com os velhos livros da Epiphânio Dória, com os arquivos empoeirados do Instituto
Histórico e do Acervo Público, de onde saiu sua obra literária, a começar com a
História de Sergipe, um opúsculo para subsidiar seus alunos. Ganhou fôlego. O
livro preencheu um vazio, transformou-se em um sucesso de vendas. E foi seguido
por outros, geografia, literatura...
Acrísio mergulhou
no colunismo da Gazeta de Sergipe, e eu abandonei o jornalismo. A Petrobras e a
faculdade de Economia me absorviam inteiro, e ainda era pouco. Daí a pouco,
como um cearense nômade, em São Paulo, Brasília e outras plagas, iniciei uma
vida de quarenta anos povoada de algoritmos, filas de espera, tempos de
resposta, bugs escorregadios,
aplicativos redondos e outros nem tanto assim. E sempre havia um romance socado
no list dos programas, como refrigério,
para arejar a cuca. Varei o mundo...
Um dia, em
Brasília, no Centro Comercial Gilberto Salomão, bati-me com o amigo cearense,
que desde a remota Aracaju, não via, nem soube mais. Trajava um avental branco,
e trazia sob o braço um amarrado de livros (três ou quatro) como se fosse uma
matalotagem de retirante. Imaginei-o espanando arquivos, aprisionando
desgarrados fantasmas. Juro que era ele. Abordei-o e levei o maior fora: “Quem
é esse Acrísio Torres Araújo?”.
(publicado no
jornal do dia 07/01/2015)
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