MOEDA VENCIDA, Francisco
J. C. Dantas, Alfaguara, 2022, Rio de Janeiro, 1.edição, ISBN 978-85-5652-146-0.
Ler
os livros de Francisco Dantas é como assistir a uma aula especial de
Literatura. Dantas foi professor dessa arte a vida inteira na Universidade
Federal de Sergipe e em outras no mundo, em todas é doutor e lenda.
Seus
livros são ágeis, thrillers azougados
assim como as aulas de História Econômica do professor Alberto de Carvalho, que
tive a glória de as assistir no curso de Economia da UFS nos idos de
antigamente. No meio do deserto de silêncios, só se ouvia a voz do professor
itabaianense, criando mundos espetaculares habitados por infernais magos. Os
gazeteiros inveterados davam um jeito de aparecer; as salas vizinhas corriam
para as janelas da nossa sala, mas eu nem dava fé, só as percebia no aplauso
que explodia quando a aula se acabava.
Infelizmente
não pude assistir às aulas de Francisco Dantas na faculdade; aconteceram quando
eu habitava outros mundos. Mas me sinto recompensado pois posso ler seus
livros. Assisto à aula particular, com privilégios: sou o único aluno na sala,
interrompo a leitura para apreciar melhor a paisagem e para entender mais bem a
trama; retrocedo e recupero íntegro aquele lance que passou rápido demais;
consulto o dicionário sempre solícito e as imagens assumem clareza
inquestionável. Babo e choro de prazer. Cida, minha esposa caminhadeira, ao
passar pela sala, me flagra enxugando com as costas das mãos meu rosto nu. E eu
nem me constranjo, porque sei que ela espera a vez de gozar também.
Se
“Moeda Vencida” se limitasse apenas ao poema/prosa que consta nas últimas 22
páginas (capítulo 19, 20 e 21) estava bom demais para mim. Aqui é a apoteose à
convivência de homens calcinados pelas guerras sem fim, entre si, com os
animais brutos e com o meio inóspito. Desfilam marcantes: o inconveniente
tangido pela pinga e o fazendeiro mal demais; o conciliador Desidério e o velho
Monteiro iludido; o vaqueiro Cipriano que advinha o que o patrão astucia...
Desidério
ponteia poderoso, desde a lida com o milho, nas primeiras páginas e confabula
em gestos silenciosos com o cavalo Suveni, que apareceu de uma cena de terror em
páginas, bem antes, e permanece após o livro acabado...
Scadufax
escuta o afago de Gandalf na tábua do pescoço (no caminho de Edoras) e entende:
“Corra amigo e mostre-nos o significado da pressa" [1].
“Suveni, de rédeas moles,
baixa a cabeça para cheirar onde anda o perigo, sonda e apalpa a lama da
beirada com as patas dianteiras, até apontar o ponto mais seguro da passagem.
Pressente os arredores cheios de vida... Apressa mais a andadura como se o coração
palpitasse alegrado... Desobrigado, avança num bonito troca-pés, com os cascos
chamegando na camada de areia solta, a esta hora de poeira apagada, devido ao
sereno neste quebrar da madrugada... O cavaleiro se apura pra que o cavalo
continue convencido de que é o dono do mundo. De que erra em benefício do
próprio deleite. E ambos, nessa pisada, vão ganhando terreno pouco a
pouco, até alcançarem o destino demarcado...”.
***
Você precisa fazer essa viagem. Estonteante! E
muito mais há...
Há
Sebastião que vem cuidar da vaca borboleta para que tenha uma morte digna, se
não pelas beberagens que não mais carecem, pelas práticas paliativas que até os
animais precisam ter. Tem o frade glutão que pesca as fontes das propriedades
alheias, chafurdando a água, fazendo o gado sedento recuar com nojo. Tem a
amizade entre Prego e o jegue Capitão, que tentou cruzar com uma égua no cio de
Duarte Pirão e se deu mal... Tem o poder do mal dominando silencioso as
vizinhanças, depilando passarinhos, matando cachorro na estrada e urubu no céu,
aprontando presepadas de arrepiar, impondo servidões.
E
há aquele Reitor ou vice cara-de-pau da Universidade Federal que premia seu
melhor comandante com medalha de sabão, pijama, e palmadinhas nas costas.
Também! O general demonstrava "recusa obstinada aos instrumentos digitais,
à parafernália didática moderna, recomendada sob pretexto de aliviar a
aprendizagem". Quantos mestres brilhantes foram,
precipitadamente, estocados nas prateleiras acadêmicas? Neste caso, quem
ganhou foi a soltura das Candeias e fomos nós, matriculados somente
na escola da vida.
Para
mim, um simples leitor de alma aberta, sem teorias ou preconceitos aos quais
deva continência, este gostoso e ligeiro (apenas 191 páginas), “Moeda Vencida”,
foi um dos grandes romances que tive o prazer de ler. E gostaria que você o
lesse também. Nunca me conformei em comer sozinho um banquete assim fausto e
supimpa.
(Por
Antônio FJ Saracura, em 07 de janeiro de 2023).
Nota: Lendo
a dedicatória que o autor escreveu no livro que enviou à minha casa, “Ao
grande Antônio Saracura, com um abraço, Francisco Dantas, em Lajes Velhas, 03
dez de 2022”, perguntei-lhe por que me chamou “grande”, se sou
baixotinho. Respondeu-me: “chamo assim todos meus grandes amigos”. Então, na
hora, já me senti grandão.
Publicada no jornal Zona Livre em 09/08/2024
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