PADE KIBA, Carlos Mendonça,
Infographics editora, Aracaju, 2015, 242 páginas, isbn 978-85-68368-46-6
Pode ser a narrativa da vida sacerdotal de Tolentino Kibaliano
(popularmente designado de Pade Kiba) ou apenas as travessuras de um par de proeminentes
Coleones (atente à origem latina). Em um ou outro, o herói é um sertanejo
vingativo, despachado, que mantém um harém de mulheres apaixonadas, um exército
de jagunços, um rifle de papo amarelo com uma fileira de balas na agulha e uma
língua afiada. Tenório Cavalcante com sua lourdinha e a batina preta. O
caboco Capiroba, comedor de gente, pai de meio mundo de novos brasileiros em
uma interpretação livre do que narra João Ubaldo Ribeiro (Viva o povo
brasileiro). Um novo João Grilo, ou Cancão de Fogo, ou seu Lunga? O quinquagéssimo
segundo cavaleiro da Távola Redonda da corte do rei Arthur. Ou mesmo um Lampião
criado na imaginação do surpreendente escritor itabaianense. Quem sabe, alguém
malandro, desavergonhado, invencível, que os cordelistas podem transformar em um
novo herói da nossa literatura brejeira.
O vidente e poeta popular, cego
mas não mudo, Zé Mulambo, personagem marcante na obra, toma minha voz e, com sua
cantoria, acompanha o Pade Kiba, passo a
passo, antecipando os acontecimentos, na galhofa, na ironia:
Agora a coisa
danou-se
A peste vai arrufar
O muleque de Pau Grande
Resolveu ir estudar
Pelo qui estou
preveno
Vai se tornar
revereno
Para vir nos
cunfessar.
(página 36, mudança de destino do menino peralta)
Agora a peste fedeu
A égua desimbestou
Mataro o pai do pade
Tudo disassossegou
Num sabe cum quem
mexeu
Os istupim sacendeu
E o diabo sacordou
(página 52, o
sacerdote abandona o apostolado e retorna ao sertão)
Tamem eu num vi aqui
Seu Domingo o coroné
Cum certeza tá haveno
Arguma coisa quarqué
Na minha primunição
Ta haveno uma armação
E vou lhe dizer qual
é.
(página 103, a trama
para o assassinato do desafeto)
Pelo que foi apurado
Logo no primeiro
plano
O pade vai padecer
Pois o bispo
diocesado
Vai lhe incaminhar
Pra ele se explicar
Diante do vaticano
(página 116,
perseguição da igreja corrupta ao padre heroi)
Uma égua bunita
Safada e donzela
Bem feita de corpo
no pelo e na sela
Cuma ventania
Quem não gostaria
De samontar nela
(página 117, as
trapalhadas entre o Pade e o bispo Dom Pedro Priquita)
Tu é home mas num é,
É home de faz de
conta
Só vive de gabulice
De qui faz e qui
apronta
Mas nessa vida
inteira
Toda sua cumpanheira
Vive lhe butano ponta
(página 148, Difamação
ao coronel Teodoro, desafeto do Pade Kiba)
Os fazendeiros ricos e
prepotentes armam o pano de fundo de um sertão feudal, com políticos corruptos,
votos de cabresto, eleição fraudada, trabalho escravo, pistolagem. Nem tão
feudal assim! Lampião e o cangaço vingativo, Antônio Conselheiro e o sonho de
uma comunidade igual, a igreja oportunista e interesseira também dão cores às
presepadas do padre esperto. E, por conta, Zé Mulambo sai-se com essa trova, que
nem chega a declamar:
Essa terra é um
problema
Difici de resolver
O homem trabalhadô
Nem arruma o dicumê
Inquanto qui o fazendero
Siafoga no dinheiro
E abusa do puder.
Eu acompanhei (à distância) a criação do livro e a sua anunciação. Por
um ano inteiro as redes sociais mostraram um homem de batina preta pulando
muros, homiziado atrás de pedras com espingarda apontada ao vazio, gretando fechaduras,
arrombando portas, exorcizando endemoniados, jogando baralho, subindo em pau de
sebo, confessando pecadoras... E pulando cercas... Quando o livro foi lançado, filas
se formaram, todos queriam saber a história anunciada do Pade Kiba. Entrevistado
por um “freelancer” do jornal Capital Serrana (que nem chegou a publicar a
matéria), o autor falou rateado: “Eu vendo livros porque escrevo o que as
pessoas querem ler. Se não queriam, passaram a querer com a propaganda cerrada
que fiz. Gastei um dinheirão, mas valeu a pena”. Carlos Mendonça dar-se ao luxo
de lançar dois livros no mesmo dia. Junto com O Pade Kiba, lançou “Evolução do
comércio de Itabaiana”. Público garantido, como em todos que lançou na curta
carreira, desde que fechou sua lojinha de picolés e mudou de profissão, virou
escritor. O livro Chico de Miguel possui uma reserva de mercado garantida nos
eleitores fieis do lendário político; Mons. Eraldo Barbosa e Padre Manoel
Araujo têm a comunidade católica que não vai arriscar o inferno, então compra
os livros, até para tê-los em casa, provando a fé. Tenente Gervásio, os
militares pagam pelo gosto de ter um herói, mesmo sem guerra nenhuma. E há
melhor presente, no dia das mães, do que um livro que as louve? Euclides e
Manoel Teles são figuras míticas na região e, como Lampião no Brasil, têm
mercado garantido. O caminhoneiro de Itabaiana... Em cada família há um ou dois
representantes no ramo e citados nos versos de Carlos, que não tem nada de tolo,
como diria Zé Mulambo, acompanhado de sua viola afinada:
O gaguinho iscritor
É bom em prosa e poesia
Cada livro iscrivido
Le aumenta a friquisia
No batido que ele vai
Eu acho que é capaz
Dintrá numa academia
Sobre a escrita simples, sem
rebuscamento, às vezes relaxada, com deslizes aqui e acolá, o porta voz, Zé
Mulambo, pinicou a viola, trauteou, mas, estranhamente, pegou o saco arreado
aos pés, e guardou o instrumento. Balançou a cabeça e foi saindo. Nem se
despediu de mim. Para não ficar falando sozinho... toquei no rumo de casa, fui
reler algumas passagens que me intrigaram no bom PADE KIBA.
Não me canso de "ouvir" sobre este PADE KIBA.
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