O
SILMARILLION, J. R. R. Tolkien, organizado por Christopher Tolkien (filho do
autor),tradução de Valdêa Barcelos, 406 páginas, 5. Edição, 2011, São Paulo,
WFM Martins Fontes.
Eu precisava
ler Tolkien, que conhecia do filme O Senhor dos Anéis, mesmo mal assistindo. Na
época, eu não tinha noção do poder imensurável da prosa do autor e da aceitação
irrestrita de sua literatura. Assisti ao filme como a outro qualquer. Até
enjoei, em trechos.
Na Bienal de
São Paulo (2018) assisti a uma mesa de debates sobre Tolkien e Lewis.
Acidentalmente. Eu vinha, com minha esposa, andando pelo corredor imenso em
busca de um restaurante para fazer um lance. Moças de preto me seguraram e
convidaram para entrar no auditório aberto à minha direita, que nem percebera. Havia
uma plateia considerável, toda caracterizada: roupas escuras, chapéus de bicos
às cabeças e cruz queimada nos peitos.
Uma hora
arrebatado, quase sem respirar, sugando cada mensagem dos cinco palestrantes,
jovens, apaixonados, senhores absolutos da obra dos mestres, Tolkien e Lewis. Saí
com a determinação de ler Tolkien, furando fila, pulando outros grandes autores
que me esperavam. E dar uma olhada em C. S. Lewis, pelo menos, em
reconhecimento pela amizade que manteve a vida toda com Tolkien.
Após a Bienal,
já em Aracaju, escrevi algumas linhas nas considerações sobre a Bienal de São
Paulo, que transcrevo:
“Entramos, curiosos. J. J. Tolkien e C.
S. Lewis simplesmente desceram do céu e vieram apertar minha mão. Os cinco
especialistas na obra desses magos conseguiram este feito espetacular. Na vasta
linha do tempo sempre tem mais e mais. Amizade, Hobits, Elfos, Hurins, Anéis,
varas, profundidade e detalhamento, provérbios, valores... Fantasia que faz
pedras como eu pular no unicórnio e varar o mundo.”
Na livraria
Escariz, em Aracaju, logo que pude, bati-me com as obras de Tolkien. Inebriado,
hipnotizado. Ante uma constelação de reluzentes estrelas que ao mundo todo
encanta, precisava escolher uma estrela para pousar, com minha nave peregrina. Silmarilion
me pareceu a origem, a raiz mais profunda, a partir da qual, transitar na
constelação ficaria mais maneiro.
O livro não
foi publicado em vida do autor mas sempre esteve escrito desde o início. Serviu
de base aos livros que Tolkien produziu pelos anos. Há um pouco de Silmarillion
em toda obra, inclusive nos livros infantis. Foi organizado
pelo filho Christopher e contém mais de 400 páginas de textos intensos, mapas
das locações geográficas, glossário salvador, gramática sintética das línguas
utilizadas ou referenciadas. O glossário consistiu na minha salvação, pois, sem
ele, eu teria jogado o livro no mato logo.
Melkor
aparece do nada, com dons e conhecimentos invejáveis. Carrega na cabeça a coroa
de ferro do mal e causa estragos imensos por milhões de anos a fio, até ser dominado
e preso sem nenhuma chance de escapar. Mas foi perdoado e voltou a aprontar. O
pecador sempre desfruta de concessões que não compreendemos. E foi outra vez
derrotado, mas antes, criou e treinou Sauron, poderoso preceptor, repleto de
artimanhas, maldades e poderes, que causou dissidia e abusou da boa-fé dos bons.
Menos maligno do que seu senhor, mas, nos anos posteriores, especialmente com a
construção dos anéis do poder, causou estragos imensos a homens, elfos, anões e
aos próprios Ainur, aos Valar e aos Maiar, que eram os imortais habitantes do
mundo muito antigo. Estes morriam de morte matada apenas (kkk).
xxx
Deparei-me com
línguas estranhas, nomes de personagens que se confundem com raças, e raças (Elfs,
Orcs, homens, anões...) que, de acordo com a época e a região, ganharam diferentes
nomes que me confundiram até quase ao fim de livro. Guerras terríveis, primeiro
entre o bem e mal, depois entre segmentos do próprio bem envolvendo até os
abençoados de Ilúvatar (ou Eru), o Deus Pai. Cadeias de Montanhas, vales, rios,
fozes, florestas, todos com múltiplos nomes, a cada momento. De acordo com as
linguais faladas em cada região, em cada agrupamento. Aguente Saracura! Quem
mandou meter-se com Tolkien, doutor em línguas primitivas da Oxford University?
Diante de
tantas variáveis, a leitura corre devagar, com idas ao Glossário e ao Google, com
retrocessos para espiar outra vez: que luz era aquela pela qual passei batido
duas páginas atrás.
A cada frase,
o autor nos surpreende com situações e pensamentos que poderiam, de afogadilho,
ser tomadas por clichês, mas que se encaixam na drama, magnificamente. Toda escrita
de Tolkien é minada de links para mais e mais mundos, significados. Como se em
cada uma frase nascesse um novo romance. Não sei bem se para complicar ainda
mais esta confusa resenha, mas há um poder superior que me manda nomear algumas
dessas colocações. Que seja para o bem ou para o mal de meu conceito
insignificante com o leitor.
“E Melkor
disfarçou seus objetivos com astúcia, e nenhuma malignidade podia ser
vislumbrada no semblante que ele apresentava.” (página 74).
“Amargo foi
o preço pago pelos noldor (os elfos profundos), nos tempos que se seguiram,
pela tolice de manter os ouvidos abertos.” (página 74).
“Abateu-se, assim,
sobre Valinor (a terra dos valar (aqueles que tem poder) em Aman (o reino
abençoado dos Valar)) uma grande escuridão. A luz desapareceu; mas a escuridão
que se seguiu era mais do que a falta de luz.” (Página 85).
“Da bem aventurança
e da alegria há pouco a se falar enquanto durar. Somente quando correm perigo ou
são destruídas é que se transformam em poesia.” (página 110),
“Nesse momento, Gorlin (o infeliz, um dos doze
companheiros de Balahir (pai de Berem que arrancou uma Silmarillion da cora de
Morgoth) em Dorthonion (Terra dos Pinherios) teria recuado, mas, intimidado pelos
olhos de Sauron, contou tudo que ele queria saber.” (Página 204).
“Sauron
forjou anéis do poder, e guardou para si o Um, que lhe dava o poder de perceber
tudo o que era feito pelos anéis subalternos, e ler e controlar até mesmo os
pensamentos daqueles que os usavam. E os anéis subalternos foram entregues (Sauron
os obrigou receber) assim: sete aos anões que finalmente eram um grande povo;
aos homens deu nove. E o grande olho mau controlou o mundo?” (Página 388).
“Ao homens a
chegarem chocaram os elfos pelo jeito estranho do agir: se armavam e se matavam
uns aos outros por motivos insignificantes; Ficou fácil para Sauron ou para aqueles
que que ele recrutara para si. Percorriam a Terra, instigando um homem contra o
outro. Assim, o povo murmurava contra o Rei e contra os senhores ou contra
qualquer um que tivesse algo que eles não possuíssem. E os homens dotados de
poder se vingavam com crueldade.” (página 349).
“O rei
Felagund (o senhor das cavernas) soube dos homens de Beor (O velho, chefe dos
primeiros homens a entrar em Beleriand) e assim falou: homens derrubam árvores
e caçam animais. Portando não somos seus amigos. Se não quiserem partir, nós os
atormentaremos de todas as maneiras.” (página 176).
Os humanos viviam
apenas 400 anos, o que era um nada ante o que viviam os elfos, que eram
eternos. E os humanos sentiram que isso era uma injustiça. Iluvatar criou uma terra
de morte rápida e felicidade escassa para os homens, diziam. E eles foram reclamar
ao Rei, que os criticou:
"Vocês são felizes por isso. Podem viver intensamente,
aproveitar ao máximo o pouco que lhes sobra da vida. Não se acomodam na
eternidade que se transforma em monotonia. Se fossem imortais vocês murchariam,
se cansariam mais cedo, como mariposas numa luz muito forte e constante.” (Páginas
336 e 337).
Algumas vezes na vida, eu fiquei pensando em pessoas que conheci ou
ouvi falar que encantaram a todos pelo que fez em vida, achava que elas deveriam
ser eternas. Pelo menos, podiam ter uma vida longa. Uma pena terem morrido tão cedo,
como Luiz Antônio Barreto, Pedrinho dos Santos. Só para citar duas recentes perdas.
“Portanto,
em tempos posteriores, fossem com as viagens marítimas, fossem com as tradições
e conhecimentos dos astros, os reis dos homens souberam com efeito que o mundo
se arredondara (rota curva) e que, mesmo assim, aos elfos (criatura mística da mitologia nórdica e céltica, o povo das
estrelas ) era permitido
ir e retornar a Avalonè (porto da cidade dos eldar em Tol Eresseae, a Ilha
solitária) se quisessem... Uma rota plana deveria ainda existir para aqueles a
quem era permitido encontrá-la. Marinheiros perdidos entraram nessa rota plana (proibida
aos homens) por uma sina ou por concessão dos Valar, e viam a superfície do
mundo sumir abaixo deles. Antes de morrer, contemplaram a Montanha Branca, bela
e terrível.” (página 359).
xxx
Mesmo
narrando a vida em milhões de anos, o livro tem personagens que estão presentes
da primeira à última página, como Ilúvatar (O maior de todos), ou como Ulmo (o
senhor das águas, o rei do mar), Melkor (o mal maior), Sauron (o secretário das
ruindades)... E tantos outros que não me cabe aqui citar para não espantar um
provável leitor.
Apesar de
Simarillion ser cansativo em extensos trechos, gostei de ter lido O
Silmarillion, foi como ter convivida com os seres que não eram ainda nem gente
nem peixes nem nada, apenas uma gosma cósmica. Senti-o um pouco como o Gênesis,
do velho Testamento. Entretanto, bem mais estendido.
Nem mal acabei
Silmarillion, comecei Reverandom, uma fábula infantil, também de autoria de
Tolkien. Já que não posso passar um mês na praia em “Filey”, preciso de um
refrigério.
Você se lembram
dos bonequinhos do jornal O Globo (?) que avaliavam os filmes? O Silmarillion
recebe dois bonecos; um sentado cochilando e outro vibrando de pé.
Antônio
Saracura, Aracaju, 30 de novembro de 2018)