quarta-feira, 17 de novembro de 2021

GOZO DO PADECER NO TINO DO MAR, Neusa Vieira Lima,

 

GOZO DO PADECER NO TINO DO MAR, Neusa Vieira Lima, Chiado, junho2021, ISBN 978-989-37-1003-6



“Só peço a Deus que o futuro não me seja indiferente. Desenganado está quem tem de caminhar para viver em cultura diferente (León Gieco)”. 

O livro começa assim, sabendo, e apesar de saber, nos leva do sertão ao mar. Sertão de riquezas e de carências. “Do mundão desses vazios dos tabuleiros”. O Homem/menino de Barro rompe o branco da terra seca e vai em busca do mar. Apenas saber que o mar existe (fímbria de esperança a que se agarra) e aquieta o ronco das tripas vazias. 

E nesse tino do mar (lida da vida), a autora dialoga com amigos feiticeiros, poetas, prosistas e profetas, que são meus também. Adélia Prado se esconde no galinheiro hipnotizando galinhas. Érico Veríssimo pelea outra batalha, sem bando algum. Rachel de Queiroz virada nos setenta revela ao mundo espantado uma seca 15 mil vezes maior e é de verdade. Manoel Bandeira, adormecido na festa de São João, viu o final sonhando pois é muito mais bonito ainda. Manoel de Barros, que jamais morrerá, faz tudo voar com as aves do céu, até a poesia que nem tem como se pegar, é apenas de sentir. Manoel Scorza, invisível, quer ser outra vez o cavalo Girassol, ir pro lugar dos papocos, chorar a dor imensa. João Cabral de Melo Neto... Graciliano Ramos... Gonçalves Dias brada ao mundo, “meu canto de morte, guerreiros ouvi”. 

Como aqui faço agora e Neusa fez, eixando sua viola de sotaques como o de Guimarães Rosa, que fala diferente sobre diferentes bandas.

Por fim, a imensidão de água salgada.

“Como acreditar que Deus, tão sabido, criador de tudo, ia fazer esse mundão de água e encher de sal”. Tanta água assim precisava haver no sertão para a gente adoçar com os umbus de lá. 

O cavalo falante Mandacaru, “nascido da flor vermelha do mandacaru num dia de vento forte, carregado de caracol e de borboleta amarela”, respira inquieto. Parece querer me levar de volta pro sertão, como se fosse possível. 

“Gozo e Padecer no tino do Mar” é livro assim cheio de dizeres que doem e que aliviam.

Em prosa poética de vasto sentido. Nascer, viver, morrer. Dizeres que lembram as duas obras publicadas “Cartas a minha mãe que não sabia ler” e “Não é hora de correr para a caverna”.

Neuza Vieira Lima Steimbach é a senhora das palavras que vivem como gente. 

Aracaju, 01 de novembro de 2021, por Antônio Saracura.

 


segunda-feira, 15 de novembro de 2021

PASSO A PASSO, dos caminhos que trilhei

 

PASSO A PASSO, dos caminhos que trilhei, Hélio de Souza Oliveira, Artner, 2021, 144p, il, isbn 978-65-88562-43-7

 


Mais uma história de vida, testemunho de luta para chegar ao sucesso e à glória que têm tamanhos próprios para cada um. Uma referência para a família (e descendência) e fonte de pesquisa para os historiadores de nosso povo e terra, no futuro (ou no presente).

Eu gosto de biografias escritas ao correr da pena, sem enfeites/maquiagens. Especialmente, das biografias de self-made-men, que em nosso meio são as que mais há. Somos um povo em construção e famílias humildes geram pessoas ilustres, que se orgulham da orígem.  

“Passo a Passo dos caminhos que trilhei” conta a vida do cidadão Hélio de Souza Oliveira, viúvo fresquinho, de 80 anos e que tem aura de 35. Ele é o esposo de Salete Nascimento, viúva de muito, madura, mas de coração adolescente. Foi como uma paixão jovem que os arrebatou há apenas três anos.

Que mulher abençoada, Salete! Sou seu amigo e me assustei quando soube que um gavião a sobrevoava. Então ele pousou perto de mim. E veio zambeiro andando na minha direção. Então fiquei esperto. Nada havia de predador, recendia simpatia contagiante. Um homem valoroso, ganhei um amigão. 

Salete é poetisa consagrada e carrega o título de Rainha do Cordel Sergipano. Hélio é filho de militar que lutou (quase lutou) na Segunda Guerra Mundial, salvou malafogados e nos deu conta de cada navio brasileiro afundado pelos alemães, o que me levou a querer brigar também. Hélio nasceu em Estância e morou pelos quarteis desse Brasil continental. Foi jogador de futebol, tecelão em Estância, desempregado, migrou (já casado na primeira união) para o Rio de Janeiro. Destino dos jovens na época. Trabalhou como montador de bicicleta, biqueiro em oficinas mecânicas, procurou incansável melhor colocação... Foi para Volta Redonda e entrou na CSN, após morgar nas empreiteiras. Fez carreira, destacou-se.

Até o primeiro sogro, que nunca aprovou o casamento, trouxe de Estância com a família para trabalhar na CSN. 

Convidado pela Usiba, Hélio  botou em ordem setores carentes.

Criou a família (há pastores e doutores), aposentou-se, mas  não parou a labuta. Foi dono de bar, teve escolas de cabeleleiros, geriu o salão de beleza (sócio com a primeira esposa )...

Ficou viúvo e a solidão o pegou em cheio. Os filhos independentes e ele se sentindo um acessório gasto. 

Descobriu Salete (Deus sabe como) no Sergipe longínquo, na sua Estância saudosa, em um passeio. Armadilha do destino. 

Como conquistar a escritora famosa?

Entraram os netos dela, os amigos alcoviteiros, o mundo inteiro se moveu a favor. 

Casaram de papel passado, em segredo, logo que puderam se encontrar sozinhos. 

***

Hélio encantou-se com atividade intensa da esposa, que cantava poesia no país inteiro.

Ele, que sempre fora cantor e descobriu, surpreso, que era poeta e cronista, para a alegria maior dos dois. Seguiu os passos da esposa nas festas literárias, acompanhou Domingos Pascoal (o semeador de academias) nas peregrinações.

Hoje Hélio pertence a academias de letras e publica seu primeiro livro. “Passo a Passo...” me emocionou em cada revelação. E me fez sorri satisfeito quando me vi na história um pouquinho, nesta fase atual. Como é fácil gerar simpatia! Não custa nada e ainda rende inestimáveis bônus. Hélio e Salete são mestres nesta arte. 

Aracaju, 15 de novembro de 2021, Antônio FJ Saracura (ainda no restinho da pandemia do Corona)


CÃO NA MOITA, Jackson da Silva Lima

 

CÃO NA MOITA, Jackson da Silva Lima, 1997, 2 edição, J. Andrade, 134 páginas



Assim como "Manobelo e Outras Narrativas",  "Cão na Moita" dificilmente será achado em sebo ou livraria. Talvez em alguma biblioteca pública, que hoje mais parecem cemitérios de indigentes, com tampas das carneiras abertas e defuntos sumidos. 

Com certeza, os dois livros estão no meu oratório literário na companhia de poderosos santos, como eles são. 

Chegaram a mim por milagre. Fui visitar, cheio de cerimônia, o grande Jackson da Silva Lima em seu centro de pesquisas. Após uma hora ou mais de boa conversa, já na saída, ele me mandou esperar um pouquinho e sumiu nas galerias de sua Epifânio imaginária. Retornou com alguns livrinhos do mesmo tamanho, sentou-se à mesa e escreveu dedicatórias. Em 27 de junho de 2013. Achou que eu seria bom guardião das joias e me deu mais três exemplares de "Monobelo..." e  de "Cão na Moita", que já passei também a outros  guardiões com gosto para sorver o raro mel silvestre.

Xxx

“Cão na Moita” é composto assim:

DE NOITE, NO OITÃO DA IGREJA (I – de quarta para quinta; II – no outro dia, às mesmas horas; III – Entre ambos os dois; IV – Conversa de Pé do Ouvido; V – Quatro dias depois; VI – Na semana seguinte).

UMA VELA A DEUS E OUTRA AO DIABO (I – As duas velas ac essas; II – Abrahão e os remorsos de Davi; III – O sentido no cão e o olho na trouxa).

ENQUANTO O CÃO ESFREGA O OLHO (I – Padre Simão e as artes de Zé de Nanã; II – Matos Além; III – O Bezerrinho santo).

Xxx

A xarope feito com pintinho pilado e que serve para curar sezão; a raiz misteriosa que era lombriga seca; o chá de barata nova para falta de ar; a galinha mal cozida com pena e tudo que espuma na boca querendo fugir;  os contadores de histórias absurdas rebatidos por outros ainda maiores; o cisco que caiu nos meus zóio; a bezerrinha alazã que se encantou; o gato preto que era Zé de Nanã... (mezinhas milagrosas, momentos antológicos, poderes do Cão tinhoso).  

Marieta, Janjão raizeiro, Zé de Nanã, Pepeu, Frei Inocêncio, Currupião, padre Simão safado, seu Chiquinho da Venda, dona Santinha, Coronel Zé Raimundo, Chico Lino, Sinhá Dinha.... (personagens inolvidáveis do passado glorioso e  da malandragem de hoje).

Frechas, pêga, presepada, bicanca, se avultar, loroteiro (é o que não falta), maçone... (adjetivos singulares, verbos poderosos  e substantivos cabeludos).

“Cão na Moita” é  um grande livro dentro de um vidrinho do tamanho de nada, próprio para venenos mortais ou perfumes fatais. São 133 páginas de saber literário, nas quais corre o sangue autêntico e tosco de nosso povo simples, com suas superstições, jeito de dizer, manias de ser, ditos, histórias de arrepiar.

E o sanfoneiro, velho Piruá, mesmo com risco de vida na mão de Lampião, teve sangue frio para cantar a glosa: “Com  vara, ferrão e tudo"

 

“Valha-me a Providência

Com o seu poder sublime

Que eu vou comentar um crime

Perante tanta inocência,

Mas a voz da consciência

Me revelou o estudo:

(...) 

Garote brabo e chifrudo

na solta livre criado 

só pode ser enfrentado

Com vara, ferrão e tudo" (1)


Olhando assim, parece ao autor (pela boca do narrador) e ao leitor abismado (que sempre é) que “a cabeça do cantador de repente é uma olaria fina cheia de fôrma desempenada. Todo verso tem sua forminha certa. Na hora da cantoria, o repentista pega uma palavra e vai juntando com outra, faz a mistura, passa na peneira do juízo, já o fogo da inspiração aceso, joga a massa apurada na fôrma e põe no forno do improviso para cozinhar obra. Num momento, a danada da rima tá no ponto. É só abrir a boca e o verso voa quente, aprumado. Sai prontinho da ideia e vai bater na plateia ansiosa”.

Xxx

Junto com Jackson da Silva Lima (que o faz na última página) agradecemos a Gilson Resende, de Itabaiana, e a Maria José Nascimento, de Ribeirópolis, eles deram ao livro, com seus depoimentos, a música do falar do povo da Terra Vermelha (minha referência guardada da infância).

Vou concluir pela voz do genial Luiz Antônio Barreto, registrada na orelha do livro.

“O Cão na Moita”, de Jackson da Silva Lima, é um livro de contos da nova literatura brasileira, um autor já galardoado como inventariante da arte literária sergipana, do folclore, e como intérprete de notáveis figuras. Os poetas José Sampaio e Santo Souza e os pensadores, Fausto Cardoso e Tobias Barreto”.

 

Aracaju, 15 de novembro de 2021 (ainda na Pandemia, no restinho), por Antônio Saracura.

(1) O quarteto  final  do repente de Piruá (que ele me perdoe) foi reescrito por mim para não conspurcar a  angelical pureza do ambiente acadêmico". 

domingo, 7 de novembro de 2021

RIMAS CALADAS, Lili Ferreir

 

RIMAS CALADAS, Lili Ferreira, (Eliliane Santos Ferreira), um livrinho de cordel com 12 páginas e 24 estrofes apenas, editado pela Datagraph, em março de 2020.

Depois do pico do Corona vírus pico (que me derrubou de jeito) tenho me acordado mais tarde. Algumas noites, só durmo nocauteado pelo pugilista mister Zolpidem, melhor o nocaute do que rolar a noite toda implorando um carocinho de sono. Melhor o dia seguinte irritado do que zonzo.

***

Corri ao computador, precisava aproveitar o dia, já eram sete da manhã. Avançar um pouco na leitura livro de Paulina Chiziane, escritora moçambicana que arrebatou o prêmio Camões de 2021,  consertar as crônicas que escrevera ao correr dos dedos trôpegos sobre a Feira do Livro de Itabaiana, inventada para não esquecermos da Bienal, que o Covid-19 impediu de acontecer. 

Entre a papelada mal arrumada na escrivaninha (agora também relaxei na organização de roças de lavoura ) bati-me com um livrinho de cordel. Como chegara a mm? E lembrei do lote de vinte e tantos livros que trouxe da Feira, fruto de permuta que faço (muitos aceitam) em todo evento literário com autores presentes. É um modo de ser lido; de fazer circular o sangue das letras antes que talhe de vez. “Rimas Caladas”, o título do livrinho, é de autoria de Lili Ferreira, Eliliane Santos Ferreira, nascida em 1994, em Campo do Brito e formada em letras pela Ufs Itabaiana e especialista em Clarice Lispector, que, agora, não me recordava da fisionomia. 

Folhei-o, achei simpático e mudei meu plano inicial. Mudar planos é também moda adquirida nessa fase triste de fuga inútil do vírus invisível e fatal. 

Comecei a ler o cordel de Eliliane...

Aqui e acolá, alguma destoava o tom e a métrica flutuava entre os sete e os oito tum-tum, mas trama escorria bem. Repreendi meu purismo besta, escondi o diapasão que me habita afinado com os padrões do cordel desde que me avô, na longínqua infância, cantava versos como quem bate malho na bigorna moldando foices. Então achei que todos os versos do mundo tinham sete sílabas, e toda rima, até da minha bruta prosa, deslizava macia. Meus filtros abriram as pernas e sentiam prazer. Trataram de ajustar os tons e sincopar ou suprimir as marcações do surdo para que o rio fosse de planície. Palavras nem precisam ser tão compridas ou pronunciadas inteiras. O contexto é quem melhor revela a trama.

Comi as doze páginas e compartilhei o sentimento  de angústia, dor, medo, sofrimento e horror... Entendi o aviso dos filmes de terror, de que os eram versos fortes que iriam me assombrar.

Concluo esta resenha, declamando, como meu avô Totonho fazia no bastieiro do sobrado de cedro cheiroso nas Flechas de minha infância:

Belas ou donas do lar / Acordem! Acabou o tempo / de domínio e submissão. / Agora o lugar de mulher / é onde ela quiser / pois tem determinação.

Somos sensíveis, ferozes... / depende da ocasião. / Graciosas como a pluma / ou bravas como o leão / expomos o sentimento... Queremos reconhecimento: / igualdade, liberdade e união”.

(Aracaju,07 de novembro de 2021, Antônio FJ Saracura.

Post Scriptum:

No mesmo ninho esfoliado, achei outro livrinho de LILI: “Por Baixo dos Panos”, que aborda a discriminação em geral e pede para se respeitar as diferenças e não as tratar como se fosse doença.