sábado, 11 de abril de 2020

ESSA TERRA, Antônio Torres


ESSA TERRA, Antônio Torres, Best Bolso, 2008, Isbn: 978-85-7799-104-4, Romance Brasileiro



Eu conheci Antônio Torres através do livro “Meu Querido Canibal” e me apaixonei pela sua prosa fácil, engraçada, épica. Era (e ainda sou) fã  de “Como Era Gostoso o meu Francês”, filme de Nelson Pereira dos Santos, e comecei a misturar os duas obras.  Trocar os nomes, já que ambos, mesmo tratando de histórias diferentes, falavam de nossos índios de uma maneira cativante. Ainda bem que o livro de Antônio Torres permaneceu em minha estante; então, eu corria lá e me esclarecia quem era quem.


Antônio Torres é membro da Academia Brasileira de Letras. Nasceu em Sátiro Dias, Bahia, que antes era chamada Junco. E esse Junco, cenário de “Essa Terra”, tem a ver com Sergipe, pelo que já li. Famílias sergipanas se mudaram para a região para trabalhar na cultura de sisal (?), a coqueluche (relâmpago) de uma época. A cultura fracassou e as famílias demoraram por lá um pouco mais e se integraram(*).  





Acabei de ler “Essa Terra”, escrito antes de “Meu Querido Canibal” e que a crítica diz ser a melhor obra de Antônio Torres, junto com outros dois (que não li), e os três formam uma trilogia muito badalada. "Essa Terra" foi traduzido em vários idiomas, e é sucesso na Alemanha, França Itália, Holanda e Inglaterra, para citar alguns apenas. É considerado um dos romances mais marcantes da literatura brasileira contemporânea.

Estive perdido entre as idas e vindas, entre pedaços bons e outros sem nexo nenhum para mim. Sofri com um povo derrotado, onde as rotas de fuga sempre são inviáveis. A má sorte viceja. Desgraça, pobreza cinematográfica, avareza, deslealdade, desamor à terra, suicídio, fundo do poço; fiquei prostrado! Totonhim fez em frangalhos a bandeira do sonhador que desfraldo.  

Li outro livro (este não pude concluir), tempo depois, chamado ‘Betume’, de autoria de Rogério Santos (?, não disponho mais do exemplar), que também me deixou prostrado. E é ovacionado por aí.

Não questiono a qualidade dos frascos (a arte da escrita, que em "Essa Terra" é irretocável), mas a maldade do veneno (o enredo, a mensagem, a aura que traz). Esse veneno não me faz bem nenhum. Por exclusiva culpa de meu imo complicado mesmo.

Eu sei que é ficção, mas não acredito e sofro. 

(Aracaju, 26 de novembro de 2011, Antônio FJ Saracura, atualizada para o blog em abril de 2020)

(*) A referência a Sergipe, de onde veio parte dos habitantes do Junco (sobrenomes Cruz), não transmite qualquer simpatia aos sergipanos, que é um povo lutador e vencedor (digo por mim).


MEU QUERIDO CANIBAL, Antônio Torres




MEU QUERIDO CANIBAL, Antônio Torres, Record, 2000, 187 páginas, isbn 978-850-10-583-24



Li Meu querido canibal em 2010 e nunca mais o esqueci. Continua aqui na minha estante e não sai por dinheiro nenhum. Cativou-me a escrita descompromissada, anticânone, antiacadêmica, com humor simpático e links com a nossa história (inclusive o presente) que lhe outorga, para mim, fé de real, mesmo vindo de um ficcionista.


E chegaram os franceses de Calvino, uma ameaça à fé católica e aos vergéis que os portugueses gananciosos se diziam donos, na bela baía da Guanabara e no resto do Brasil. Os povos tupinambás viviam sua vida e nem perceberam, de início, as correntes enlaçando seus direitos.

Torres dedica páginas densas à chegada da Europa devassa à América inocente. Os franceses desembarcaram com dois navios e 400 homens na ilha “Seregipe” e construíram um forte, sob o comando de Villegagnon, chefe puritano, um velho conhecido dos livros escolares, e trazendo André Thévet, frade que escreveu parte da história dessa época.

A confederação dos Tamoios nasceu e Cunhambebe foi seu chefe supremo. Guerreiros como Aimberê, Coaquira, Ubatuba, além de outros, comandaram as nações indígenas e poderiam ter mandado os portugueses embora (de volta pra casa ou para os formigueiros). Foram doze anos de lutas, até Estácio de Sá pedir arrego, e seu pai, Mem de Sá, governador do Brasil, vir da Bahia e apagar o povo de Cunhambebe do mapa (1567).

Senti em Meu Querido Canibal o espírito pátrio de O guarani (José de Alencar de minha juventude). O livro despertou meu sangue índio, o orgulho nativista e o Brasil autêntico que me habita: nas lendas e na história desses mitológicos guerreiros que precisamos conhecer melhor. 

Serigy, Baopeba, Japaratuba, guerreiros que a história de Sergipe registra levemente, retornaram à minha cabeça, cobrando o que merecem, uma novela digna, como essa de Cunhambebe(*) que Antônio Torres nos deu.

Meu Querido Canibal tem trama, visgo, especialmente na parte “O canibal e os cristãos”, que narra essa guerra impossível (imolação de um povo) deflagrada pelos nossos ingênuos índios contra os devassos portugueses bem armados.

Por causa de Meu Querido Canibal, guardei Antônio Torres no melhor canto do sacrário de meus ídolos. E quando eu ia publicar Tambores da Terra Vermelha (final de 2012), fui buscar neste sacrário a capa de Tambores, como uma homenagem silenciosa ao autor admirável.

(Antônio FJ Saracura, Aracaju, julho de 2011, atualizada e contemporizada (era um rascunho desconexo) em 11 de abril de 2020 para ser aceita neste blog).

 (*) Depois, eu li o romance Ibiradió, de Gizelda Moraes, que é um bom livro; entretanto, os nossos heróis sagrados merecem ainda mais.


sexta-feira, 10 de abril de 2020

FORÇA DA NOVA (RELEMBRANÇAS), Carmo Bernardes



FORÇA DA NOVA (RELEMBRANÇAS), Carmo Bernardes,1. Edição,1981, Secretaria de Educação do Estado de Goiás, 168 páginas, sem isbn.

(Estou corrigindo lapsos que só aparecem quando a resenha é publicada).  


Um intelectual de projeção mundial, que lê o que escrevo (ai! ai! ai!), mandou-me, de presente, no começo da semana, um pacote com quatro livros, entre os quais, três de Carmo Bernardes, autor de Goiás, de quem nunca ouvira falar. Por que teria?


Vou me ater a um dos livros (Força da Nova Relembranças) de Carmo Bernardes, pois ao abri-lo, grudou em mim e nem tive tempo de arrumar uma sacola de viagem.

“Dois Irmãos’, de Milton Hatoum, que estava lendo, congelou na página 46, e talvez demore para voltar à temperatura normal, se voltar.

A escrita desse Carmo (que nome mais estranho!) é bruta, na linguagem falada do povo, com a imensa riqueza de vocábulos in natura, de imagens que dispensam explicações e transporta o leitor para o mundo descrito e, desde o primeiro momento, o integra como se dele o fosse desde que nasceu. Aconteceu comigo. Terra Vermelha de minha infância é, sem tirar nem por, este brasilzão interiorano de Minas e de Goiás, começo do século, aonde perambula e anota tudo o moleque doentio (como eu),Carmo Bernardes:

“O gado Paranã, só gado arisco, criado na largueza; maior parte não tinha custeio nenhum de curral, salitrava nos barreiros. Na formação das boiadas, a bem dizer, tinha que pegar um a um no laço, deixar dias e mais dias no curral, sem comer, esbrebejando. Boi quando é assim, brabo demais como aqueles, depois de reunidos em manada não desapartam. Quanto mais braba é a rês mais no meio dos outros ela quer ficar, de forma que aquelas boiadas pareciam uma tacha de melado fervendo, o bolo andando em roda, nenhum aceitando ficar de fora, e tinha que ser tocada assim, embolada... O ponteiro ia adiante para maloca não encompridar, porque se encompridasse muito aí era perigoso esfiapar, estourar, levar o diabo. Dava de acontecer isto alguma vez: boiada esfarelar no mundo, voltar tudo para as suas querências, e aí tinha que tornar a pegar no laço, reunir de novo os talhões. Só depois de sair fora, com três ou quatro dias de marcha, é que os bichos iam se entregado, caindo na realidade.”

Para entender o sentido dos termos e dos ditos, só pelo ritmo da prosa, pelo contexto, pelo encaixe nas imagens que a mente do leitor vai criando dinamicamente. Relaxe que as luzes irão se acender, especialmente se você (o leitor) foi constituído pelo traçado genético das três raças (africano, ameríndio e europeu). Eu sou e quase todos nós.

A leitura ressoa como uma melodia, que foi me envolvendo e, daí a pouco, eu estava batendo compasso com o pé nervoso, cadenciado e constante. Seria um hictus que extravasou as fronteiros e dominou o mundo?

E comecei a perceber que eu não lia somente, recitava (ora em voz alta, ora baixinho), como se estivesse em um palco, cada poema que o mago goiano despejava à minha frente. A força das palavras reveladas era tamanho que furava a barreira da leitura silenciosa na qual apenas o pensamento participa, tomando conta de todos os sentidos, contaminando o povo daqui de casa, da vizinhança, rompendo divisas.

Se precisava ir a sentina (todos precisam), ia com o livro aberto na mão, abaixava as calças com a outra, no maior cuidado para não mijar os cós. Sentava a bunda na tampa fria, que se transformava no trono pra leitura. Dali, só me levantava quando minha esposa passava no corredor e perguntava se eu estava entupido, pois já havia meia hora que entrara na casinha e, lá da sala, ela presta atenção a tudo, não escutou nenhuma descarga dada. E, implicante, rasca (tá ficando ousada), já retornando para não perdera meada da sua série na Tv, que eu lavasse o pingolin (devido ao tamanhinho) e o fifó para não ajuntar frieira.

Então, já quase meia-noite dessa terça-feira, dia 07 de abril, após seis horas de êxtase, pois iniciei à tardinha a ler de “Força da Nova”, meus olhos pinicavam dez vezes mais do que uma hora antes, quando começaram a dar sinal de luz. Os termos e os ditos que eu pegava no livro, na maior secura, agora, vinham inteiros, até certo ponto, e se desmanchavam antes de alcançar minha mente; as letras vazavam para um lado e outro e eu precisava bater os olhos, cada vez mais, para reorganizá-las de novo. Vi que não havia jeito a dar a não ser largar o livro no chão, marcar a página (era a 94), fechar os olhos que já estavam entregues. E agarrar o sono.

E agarrei junto um sonho que me acompanhou até de manhãzinha, quando o sol, que já é costume dele, me esquentou o couro, entrando pela janela sem cortinas.

“E no sonho, eu me gabava para mim mesmo, porque conseguia, logo depois de meia dúzia de páginas lidas, entender a ciência da leitura desse Carmo infernal. Certo que venho também do mato e boa parte dos termos e dos ditos eram parentes ou pareceres de minha vida. E calcado nesse parentesco, os outros que nunca ouvira na vida, entravam no meu sentido por conta da música que o escritor assobiava ao fundo, ou mesmo pelo desenrolar da novela, que não há como escapar pois o cabra usa visgo de jaca ou sei lá o quê. Mesmo se viesse o cão no lugar de um anjo, eu, afiado como estava, entendia, na hora, que aquele cão era bonzinho. E, ainda no sonho, eu saía da Terra Vermelha e das Flechas, e já estava na Fazenda Poção ou nos alagados de Formosa, montado no cavalinho que meu avô me deu e que causou aquela inveja danada em meu primo Zé Carlos de tio Chico.
Sonho é danado, se coliga com a fantasia e nos leva para onde quer. E o meu cavalinho, empolgado com o cheiro do lugar, foi saltar uma poça, até pequena, que era uma lagoinha disfarçada, e escorregou na beirada da banda de lá, me derrubando dentro da água escura com ele por cima. Saímos os dois como pintos molhados e, fora, senti um volume no bolso da bunda que não me lembrava que houvesse antes; era um trairão, de quase três quilos, como os que pegara de anzol em uma noite, na qual fui com uns amigos doidos, pescar na lagoa Formosa, que fica no município de Planaltina, perto de Brasília, onde então eu trabalhava. Nem me lembro mais o que fiz com aquela traíra, pois, logo eu estava andando naquelas terras baixas, moles e malcheirosas, que chamam de Pântanos Mortos e que deram um tremendo sufoco em Frodo e em sua comitiva, mal guiados pela safado Gollun, em busca do magma do vulcão da Perdição, onde jogariam o anel do poder maldito. Era um descampado a perder de vista, uma macega rala atoladeira. E aí me deu um começo de colerina. Tive que correr pra detrás de um cupinzeiro meão, que só me cobriu metade das popas. Mesmo assim, abaixei as calças e, quando ia me desafogar, acordei. Ainda consegui segurar o tiro disparado que já esfumaçara. Por pouco, não desgraço a rede branca que fora lavada nem havia uma semana. Minha esposa seria capaz de botar no grupo de wsap da família esse inominável vacilo de minhas pregas tidas como respeitáveis.”

xxx

Cuidei de fazer minhas obrigações matinais, tomei café, enrolei aqui e ali e, manhoso, cheguei ao meu canto de leitura. Carmo Bernandes nem respondeu ao meu cumprimento. Mergulhei no livro e fui misturado, de novo, com as terras do Goiás e seu povo bruto, com a doida professora ensinadeira de bruguelo de papagaio a falar... Hei, peraí! Eu nunca li, acho, esse Carmo, antes de ontem, mas a história da professora de papagaio me parece familiar. E peraí, de novo! Essas terras alagadas, com lagoas escondidas que estavam em meu sonho da noite, agora aparecem vívidas nas páginas que eu ainda não havia lido, engolindo inteiros landis derrubados, botando pra fora Brasília, que é minha terra também. Só se, no sonho, eu avancei na leitura, e até pesquei aquele trairão que só agora o avô Pernagrossa pegou uma enfieira. Talvez se explique pela embalagem na qual eu vinha o dia todo e até meia noite. Assim, não há trem que consiga parar.

Xxx

É todo o livro desse jeito, ângulo de sucupira, não há como desperdiçar nada. Se fosse para citar todas as passagens geniais, o livro inteiro mudaria para essa resenha. Seria melhor comprar um exemplar (tem na Estante Virtual) para cada leitor. E não adianta você correr ao dicionário, pelo mesmo motivo. Os termos e os ditos brutos estão espalhados à sua frente em profusão e nenhum dicionário do mundo mostrará dez por cento. A leitura não andaria e o leitor teria que, talvez, dar um pulo no sertão de Goiás, perguntar o sentido a algum tabaréu, pois o autor já faleceu há mais de 20 anos (1996).
Outra coisa, para encerrar finalmente (ai, meu deus, me encolha um pouco!), Carmo Bernardes é um artista da palavra e senhor absoluto da ciência da escrita. Escreve essa língua oral, cheia de símbolos e poderes misteriosos, como ele mesmo diz: "A (minha) frase sai (só sai se for) quente da boca do povo e incorporando as sutilezas das palavras  e o valor das entonações e sotaques". 
Algo que me lembra Juan Rulfo (autor mexicano), "obcecado pelo corte, pelo polimento final, pelo secar de um texto até reduzi-lo à mais rigorosa exatidão".
Vale a pena o artista pintar uma obra dessa e ser ignorado (até menosprezado) pelo mundo?

(Aracaju, 2010 abril 09, Antônio Saracura)



ANEXO

Força da nova (Diário da Leitura)

(Página 16) – crianças que se arrastam torcendo o corpo com as popas no chão frio e outras que vão de quatro com tupi ao vento.
(Página 19) – Quando a primeira guerra findou veio mais miséria, a febre espanhola “dessa epidemia morreu tanta gente que em alguns lugares, cidades e vilas, não ficou uma vivalma, que fosse, para sepultar os mortos... a urubusama chegou a destelhar casas e houve casos de comer mesmo os cadáveres”. O autor vai soltando sabedorias como fatos assim e da ciência do povo. E dá a entender que sabe muito, a linguagem bruta é porque é a única que lhe arranca da memória essa escrita mágica.
(Página 20) – Explica a medida do Jacá que era usada nos sertões de Minas e que hoje ninguém mais sabe o que é. Mesma coisa para medidas do milho (atilho, mão) que ainda se usa na feira de Itabaiana.
(Página 21 e outras) – Menino não entra na conversa de mais velhos. Se insiste, o adulto o espanta e pode até mandar “acolá, atrás da horta, ver se estou lá”. Eu fui algumas vezes.
(Página 15 e outras) – os ditos e os termos menosprezados pelos dicionaristas aparecem a cada momento com todo seu poder: Mequetrefe, popas, tupi, alqueive (terra que se deixa descansar), Chernoviz (livro com nomes de remédios para a doença), insofros, pinchos, “tomara eu ver” (ameaça da mãe, que também era da minha), tribusânia, mantiqueira (tocaia de matar gente), ganzepe, finiscote, mocorongo... esse aí vai voar na seca (os urubus vão comer),
- E alguns termos eruditos até demais, que o autor lança mão para explicar as ciências: farândola (grupo de maltrapilhos), Azêmola (cavalo velho e estropiado), ridicar (negar, ser avarento), colerina (forma benigna do cólera morbo, que mata), esfíncteres (anéis de músculo que controlam a abertura orifícios no corpo da gente).

(Página 23) – Cada lugar tinha sua parteira, o capador de porca, o benzedor de cobra, o rezador de terço, o encanador de osso quebrado, e assim por diante.
(Página 27) – os quartos de dormir nas casas dos sítios eram furnas escuras, fediam a mofo, os donos só entravam lá na hora de dormir. Também nos povoados de Itabaiana, haja visto o quarto de Madrinha Santinha, que a gente usou para criar preá da índia, quando meu avô faleceu.
(Página 30) – as coisas grandes do tempo de criança, quando a gente vira adulto elas ficam pequeninas. Como o corredor lá de casa, onde eu corria com medo de Santa Luzia e nunca chegava ao fim.
(Página 32) – Mais sabedorias: cobra só ataca se houver espaço para ela dar o bote. A jararaca é a mais mordedeira, porque consegue dar bote em qualquer cantinho. O boi que ganha a briga fica dócil, amigável, e o que perde fica uma fera, bate até na sombra. Roubar rês da estrada que sempre acompanha a boiada que passa, tangendo-a para dentro. A arte de pegar passarinho com laço de pena de ema. Armação de arapucas para pegar animais. O uso do pequi, do coco-xodó para fazer sabão. Ensinar boi comer sal. A noite é feita para o desfruto dos pagãos. A onça e o gato têm medo de fogo, porque as meninas dos olhos deles se abrem muito rápido e ofuscam. Como capar uma porca. Todo gato com três cores é fêmea. Como caçar Emas (que absurdo) para fazer espanador. Erva medicinal só nasce em terrenos fracos. Quando menino aprende a dar em nó no cordão, pode meter a taca nele. Até o bicho pagão repudia a caridade (vaca bater após ser desatolada). Se um pai não bate o filho quando é preciso, quem vai bater depois é o mundo, que é impiedoso. Vassourinhas amarradas no caminho (brincadeira de mau gosto que eu fiz muito). Bacia de lavar pés é indispensável na casa de mineiro do mato.
(Página 93) – autor sai da história e explica a função do historiador, E se explica, porque escreve como escreve. A força das palavras brutas. “A prosa só sai de mim assim”. E revela seu desconforto em participar da sociedade moderna, das festas, prefere o isolamento (143).
(Página 163) - os encontros com a coluna Prestes (João Alberto, barbudos de lenço vermelho amarrado ao pescoço). Há sempre presentinhos de história e de ciência aqui e acolá, provando que homem (povo) algum é uma ilha.
Ufa!
(Aracaju, 2010 abril 09, Antônio Saracura)


terça-feira, 7 de abril de 2020

O CAPOTE (E O RETRATO), Nicolai Gogol


O CAPOTE (E O RETRATO), Nicolai Gogol, Edição LPM Pocket, 178 páginas , 17 cm, tradução de Roberto Gomes, Isbn 978- 852541032-2

Instigado por um leitor de meus livros (e de outros autores também), que é gerente da Casa Santa Rosa da avenida Canal em Aracaju (José Reginaldo Dias, um intelectual), voltei a Gogol, que há muito não fazia. Reginaldo me disse que estava lendo “Almas Mortas” e, entusiasmado, em dois ou três minutos, enquanto eu escolhia os produtos de minha lista, me contou as surpresas que teve e fez colocações que apenas um grande livro pode provocar no leitor, se esse, lê além da primeira vista.

Achei, na hora, que havia “Almas Mortas” em minha biblioteca, queria ler também. Chegando em casa, de Gogol, só achei “O Capote”, mofando na fila de espera para leituras.


 “Se só tem tu, vai tu mesmo.”

“O Capote” é um grande obra de apenas 60 páginas (na edição tamanho bolso), mas está vivo, mesmo após 170 da morte do autor. E, para minha surpresa, dento da edição, ao final, estava outra obra clássica de Gogol, “O retrato”, este um pouco mais volumoso, com 104 páginas. Ambos, “O Capote” e “O Retrato” são tidos como contos e, como tal, até parrudinhos.  

“Tracei os dois”.

Mas vou falar bem pouquinho (até me assustei agora (2020), na recuperação da resenha (escrita em 2014) com a exiguidade do texto, pois me acho um tanto prolixo, do que estou sempre tentando me corrigir. Ninguém hoje tem saco de ficar lendo extensas verborreias, mesmo que elas digam coisa com coisa. Quanto mais... as que nada dizem.

“O Capote”

Em época e lugar em que o baixo funcionário público vivia de penúrias (os romances russos tratam muito disso, talvez seus escritores o fossem) Akaki Akakiévitch vive seu drama malvado. Pois seu capote, em Petesburgo gelada, está se delindo. Aqui a roupa é a defesa do corpo e também da alma.

Sofremos ou desfrutamos momentos de pânico, de gratidão, de imensa ânsia, de desespero. O autor consegue palavras vivas para descrever esses sentimentos de modo a nos fazer senti-los integralmente. Teria que ser Nicolau Vassilievitch Gogol, considerado do realismo fantástico na literatura russa.

A perseguição do ladrão cria uma imagem indelével. Jamais se apagara da mente do leitor. Perigo! Se o leitor for escritor, este corre sérios riscos de plágio, mesmo inconsciente.

Vou concluir “O Capote”, citando um trecho da resenha publicada em (autor não citado): http://www.opoderosoresumao.com/livros/resenha-o-capote: “Gogol nos apresenta em 50 páginas uma Rússia burocrática, superficial e hipócrita. Tudo isso com um senso de humor ácido (meu preferido) e certeiro. A história dá reviravoltas interessantes e fantasiosas. É um conto rápido para apresentar um autor que muitos consideram o fundador da literatura russa moderna.”


“O Retrato”


Quando vejo telas/pinturas nas lixeiras (ou mesmo em sebos pobres) jogadas ou mal empilhados, viro o rosto e passo adiante. Evito bater meus olhos naquela pintura que me segure, domine, me tome para si. Não me interessam os prováveis (improváveis) tesouros escondidas sob capas da tela ou em reentrâncias na madeira. Dispenso! Deus me livre de que uma noite qualquer, estando o quadro na parede de minha casa, o retratado pisque um olho pra mim. Mesmo que seja para confidenciar o local do tesouro escondido, eu não quero nem saber. Saio correndo de casa e a coloco à venda com tela e tudo.

Há trechos, na segunda parte do conto, não sei se por conta de que, talvez da tradução, que me pareceram deslocados (estranhos enxertos).

Esse sentimento já tive em Dom Quixote de La Mancha. Ao final, acabada a história da Triste Figura, quando bastava um ponto final, estão outros escritos de Cervantes (entendi que fossem), tratando de temas alheios ao contexto (pelo meu ponto de vista). Então pensei: Os editores devem ter aproveitado que o Rei pagou a edição e botaram alguns parentes para viajar junto ao futuro.

Mas, retorno a “O Retrato”.

A imagem do retrato vivo hipnotizante permanecerá indelével na minha mente enquanto eu viver.

E, para equiparar as forças com "O Capote", citarei um pequeno trecho de resenha publicada na web (autoria de Aline Teodoro), https://www.skoob.com.br/livro/resenhas/96582/edicao:259751: “O pintor aqui inicialmente achava que a arte deveria estar em primeiro lugar. Mas sucumbiu ante à corrupção do quadro demoníaco. Isso nos faz refletir também sobre as nossas prioridades. Trabalhar para nos sentirmos realizados ou para ganhar dinheiro? A fama e o luxo são finalidades dos nossos esforços? O que realmente nos move? A satisfação do conhecimento ou o conforto que o dinheiro pode nos oferecer?”.

(Antônio Saracura, 17 de janeiro de 2014, revisão abril 2020).

domingo, 5 de abril de 2020

OS CAVALOS DA REPÚBLICA, Moacyr Scliar


OS CAVALOS DA REPÚBLICA, Moacyr Scliar, 2005, Ática,80 páginas, ilustrações, isbn 978-85-08-09759-3


Um livro juvenil, pequeno, bem ilustrado, de fácil leitura. Mostra a proclamação da República do Brasil em 15 de novembro de 1889 e a quase proclamação da República dos cavalos. E mais coisas agregadas ou não, de uma maneira bem leve, sem deixar de avaliar o Brasil profundo:

A liberdade da vida em uma estância de gado nos pampas gaúchos e a camisa de força na capital do império.
Uma viagem de navio dos confins do Rio Grande ao Rio de Janeiro, dava uma eternidade; eternidade.
O movimento migratório após a libertação dos escravos, quando alemães, italianos e outros povos vieram fazer Brasil.
A libertação dos escravos que a Inglaterra exigiu: os produtos brasileiros mais baratos (a China) estavam falindo os empreendimentos de suas colônias espalhadas no mundo.
O escravo liberto prossegue sob o comando do senhor, recebendo comida e, por bondade, de quando em quando, algumas moedas, como era o caso de dona Benta, a cozinheira do capitão, pai de Rafael (o narrador).
O clima político (ciúmes, rasteiras), disputa de poder entre os militares e os bacharéis.
Os militares perdendo a confiança do imperador, a ponto deste criar a Guarda Negra, formada por capoeiristas libertos, para se proteger.
A discriminação ao povão, como uma classe “inferior” (não pessoas de bem) formada por ambulantes, capoeiristas, carroceiros, pedintes, ladrões, prostitutas...
A educação escolar dos filhos de ilustres: professores avulsos exigentes se que sabiam de tudo um pouco (até Javanês, lembrei-me agora de Lima Barreto).
E a saúde do imperador que inspirava cuidados; o povo comentava que ele estava meio broco.

E livro acabou, nem dois horas de leitura.

Além da panorâmica mostrada acima, há os cavalos, que todo gaúcho (é o caso de Moacyr) tem na alma (eu também) e a quem muito devemos.  “Na trilha que levou o ser humano da barbárie à civilização, encontraremos sempre as marcas das patas doo cavalo”.  E a quase efetivada proclamação da República dos cavalos, que tomaram consciência da exploração que sofrem desde a origem dos tempos. E resolveram, em reunião na cocheira imperial, aproveitar a onda: os militares derrubarão o imperador e eles derrubarão (ao chão) Deodoro e os demais altas patente, proclamando a independência da raça.

Eu flagrei, bem atrás de Mariana onde estava protegido, o piscar brejeiro de olho que o cavalo de Deodoro deu para Rafael, talvez dizendo que preferia servir ao novo imperador do Brasil (Deodoro) do que a liberdade. E, assim, a boa cocheira garantida, como foi o caso de dona Rosa, que continuou na sua comodidade. 

Seria um piscar de olhos com sentido justo se o cavalo tivesse identificado o menino (que escondido ouviu o os detalhes do plano) na noite anterior, na cocheira imperial. . 

(Antônio Saracura, 2020abr05, Aracaju, na quarentena do Corona)

sábado, 4 de abril de 2020

CONTOS AMAZÔNICOS, Inglês de Souza


CONTOS AMAZÔNICOS, Inglês de Souza, Editora Martin Claret, 2005, 149 páginas, ISBN 979 – 85 – 7232 – 631 – 6



Inglês de Souza faleceu em 1918 e tem ligação com Sergipe, na época do império: foi presidente da província de Sergipe de 17 de maio de 1881 até 28 de janeiro de 1882. Ficou aqui menos de um ano. Era casado com uma sobrinha de José Bonifácio de Andrada e, logo em seguida, assumiu o governo do Espírito Santo.

Além de político, publicou livros, quase todos tratando da Amazônia e sua gente, como este “Contos Amazônicos”, de 1893.

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Eu encontrei essa pequena resenha em meus alfarrábios virtuais, escrita por volta de 2014. Poderia apagá-la simplesmente. Mas não pude. Há um conto no livro que nunca esqueci, “Voluntário”, pelos motivos que exporei abaixo.  

É provável que eu não tenha lido todos os contos e, agora, depois desses anos todos, não vou investigar e nem reler. Localizei o livro esta semana em uma biblioteca auxiliar que mantenho na Coroa do Meio, em um sótão, numa casa que nem me pertence mais. Tenho um prazo para sair de lá que eu mesmo me dei. Por isso, de quando em quando, vou buscar livros para as bibliotecas de escolas e para a Geloteca que a Academia Itabaianense de letras instalou no Shopping Peixoto de Itabaiana. Esta semana, fui lá e trouxe um braçado de livros, entre os quais estava “Contos Amazônicos”, que nem sabia que ainda estava comigo. Também por isso,  resolvi recuperar a resenha.

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“Cada história contada traz o jeito de ser do povo da região, suas crendices (feitiços), seus tabus e sua cultura nativa baseada em ervas e em fé. 

No conto “Amor de Maria” ... O narrador explica quão perniciosa é a crença de nosso povo em feitiços e feiticeiros. O tajá, que o povo chama Amor de Maria, “inculcado à pobre moça como infalível elixir amoroso, é um dos mais terríveis venenos vegetais do amazonas”.

E o “Voluntário” revela a face ingrata das guerras, no caso, a do Paraguai. Caboclos rudes eram pegos na marra (recrutados), arrancados de sua vida ingênua e levados para a frente de batalha nos chacos do estrangeiro. Tia Rosa possuía, de tudo na vida, um único filho (Pedro), tapuia como ela, que a mantinha, pois ela era doente. Seu guerreiro foi caçado e levado, junto com outros índios, à ferro, de navio, ao campo de batalha, servir de alvo fácil aos irmãos guaranis comandados por Solano Lopes. No caso específico de Pedro, um advogado se condoeu da mãe doente e tentou anular o recrutamento. O motivo era justo mas a autoridade local, para não manchar o prestígio do recrutador, autorizou o embarque. Nas guerras, a lei não vale nada. Um juiz se curva ante qualquer um que se diga preposto do mandatário (no caso o imperador Pedro II).

Como quase todos caboclos amazônicos, o tapuia Pedro jamais retornou.

“Ainda há bem pouco tempo vagava pela cidade de Santarém uma pobre tapuia doida (tia Rosa, mãe de Pedro). A maior parte do dia passava-o a percorrer a praia, com o olhar perdido no horizonte, cantando com a voz trêmula e desenxabida a quadrinha popular:

Meu anel de diamantes
Caio na água e foi fundo
Os peixinhos me disseram:
Viva Dom Pedro Segundo!”

xxx

E o conto me fez recordar de tio Omero, falecido há poucos anos, que foi recrutado para lutar na Segunda Mundial. Ele foi arrancado das Flechas (ele e mais outros) para uma guerra estranha no outro lado do mundo. As famílias protestaram e não houve jeito.  E os ferreiros rezaram tanto que, dois ou três meses depois, um rapaz alto e loiro bateu à porta do sobrado do sítio. Era tio Omero, fora dispensado, escapou de morrer na Itália, como morreram seus amigos agricultores que não tiveram a sorte de ter o coração virado para o lado direito.

xxx

Apenas para cumprir o cerimonial, são os seguintes os contos que compõem o livro:

Voluntário (citado acima)
A feiticeira
Amor de Maria (citado)
Acauã
O donativo do capitão Silvestre
O gado do Valha-me-Deus
O baile do Judeu
A quadrilha de Jacó Patacho
O rebelde (uma novela)”

Aracaju,11 de maio de 2014, revisão para o blog em 2020abr03)

Post scriptum:
O livrinho pertence a uma coleção que fica nas gôndolas de livros populares nas livrarias (inclusive Escariz Aracaju), lá atrás.


CASA-DE-FARINHA E OUTROS ESCRITOS, Cléa Maria Brandão


CASA-DE-FARINHA E OUTROS ESCRITOS, Cléa Maria Brandão, J. Andrade (2005), 180 páginas, sem isbn.


Peguei o livro emprestado com um amigo que faz editoração eletrônica (Walfredo). Ele guarda, à vista das visitas, algumas joias raras. Emprestou-me com relutância, temendo, talvez, que não o devolvesse.

Casa-de-Farinha é uma viagem interessante, ilustrativa e bucólica ao povoado Pedro Gonçalves, em General Maynard, uma cidadezinha de nada aqui da zona açucareira sergipana. O povoado parece ser o berço da autora ou de seus ancestrais, alguns ainda morando lá.
São vinte capítulos tratando de um Brasil singelo e bonito que funciona.

As chaminés fumacentas dos fogões de lenha lembraram-me os sítios de Terra Vermelha do meu tempo de menino, quando o fogão a gás ainda não chegara.

Há os quiabos, ainda tenros, quebradinhos no pé; há dona Rosa perdendo os dedos no rodete porque teimava em ficar ouvindo as conversas das raspadeiras de mandioca; há a faquinha marinheira afiada que descascava a mandioca e escalavrava os dedinhos inocentes; há o defunto que suspira (que me lembrou o conto “O Testemunho do Tropeiro Morto”); há a simpatia para mudar a direção da fumaça das castanhas assando; há a tapagem da casa no sopapo (em um dia nascia uma nova casa - por que não foge logo outra moça?); há o velório viaje Vasp; há a manipueira venenosa, se ingerida mata, a menos que que o envenenado tome um copo de mijo de Sancho preto... Que horror!

O livro, nesta parte que fala da Casa de Farinha, é adereçado com exclamações fechando os textos: que horror! Uma fera! Imaginem! Coitada! Piedade! Essa é incrível! A minha mãe que o diga! A cachacinha no estilo! Acepipes! Eu não ia ficar sozinha, claro! Fica a lição!..
Elas dão um sabor especial de intimidade. Como se o autor não se contivesse e deixasse escapar sua emoção, saindo do formal e caindo de vez no jeito do povo falar, no meu jeito de ler conversando com meus personagens: brigando, aplaudindo, considerando. Ora como o narrador formal, ora como autor mesmo, saindo de seu gabinete e entrando na história para dar palpite.

Casa-de-farinha me permitiu uma viagem agradável ao passado, que é meu também... Agora é! E saborear um estio despojado, coloquial, com o compromisso exclusivo de mostrar esse povo do povoado Pedro Gonçalves vivendo decentemente. E viver momentos mágicos que jamais esquecerei.

“Outros Escritos” é composto por segmentos estanques: Discursos; Crônicas; Ensaios; Poesias; Perfis, Tipos inesquecíveis e contribuições. Destaco as crônicas publicadas em jornais e que falam de pessoas e instituições e que me reavivaram a lembrança ou me ensinaram coisas de que não sabia.

Aracaju dez/2010, ajustes em 04 de abril de 2020)

CHÃO EM CHAMAS, Juan Rulfo


CHÃO EM CHAMAS, Juan Rulfo,Edibolso, 2015, tradução de Eric Nepomuceno,174 páginas, Isbn978-85-7799-461-8



Li “Chão e Chamas” um ano atrás e abandonei no terceiro ou quarto conto, achei cansativo, me fazia cochilar. Um mundo de pobreza imensa, de azar maior ainda (se é possível haver). Imbecis, aproveitadores, gente ruim, malvada... O livro não me fazia bem.

Para rever uma imagem que não me saía da cabeça, “um cara seco, chegando em uma vila fodida, onde não havia vivalma”, retomei emprestado o livro a Expedito (ele é o dono), porque “Pedro Páramo” (que era o que eu queria ler), onde imaginei que a imagem habitava, sumiu da minha pequena biblioteca, como sumiram misteriosamente outros dos quais tenho grande ciúme. 


Passei  os olhos no primeiro conto, ”E nos deram essa terra”. Um pedaço da imagem que eu buscava revelou-se: “quatro homens, a pé, atravessam o chapadão inóspito em busca de um povoado, que ficava além. Um lugar seco, pedregoso, sem vegetação e muito quente. Até um pingo de água avulso fazia sucesso. Nenhum dos quatro falava. “Aqui a gente fala, e as palavras ficam quentes dentro da boca por causa do calor que faz lá fora, e vão se ressecando na língua até a gente ficar sem fôlego.”.

Era a imagem que eu buscava, então, poderia para a leitura. 

Mas avancei. Pulei a “Colina das Comadres” e parei em “É que somos muito pobres”. Reconheci-o da primeira leitura mas fui até o final. Gostei demais! Quase que sou levado pela enchente do rio, embolado “no meio daquela água negra e dura feito terra corrediça.” E chorei com a menina Sacha, a perda da vaquinha, sua garantia de um futuro mais digno (dote de casamento);  pela minha “face correram (também) fiozinhos de água suja como se o rio tivesse entrado dentro de mim.” E fiquei de boca aberta, vendo “os dois peitinhos de Sacha se movendo para cima e para baixo, sem parar, como se de repente inchassem para começar a trabalhar pela sua perdição.”

O ”4. O Homem”, nem precisei reler todo, pois veio à minha mente cada segmento triste. O que não se esconde sob a bondade pode ser maldade pura!

Pulei páginas e parei em “12.Passo do Norte”. E encontrei aquele sonho que ponteia em "Pássaros do Entardecer": busca de um bom lugar pra viver, ou a fuga do lugar comum. Esse lugar aqui era após a fronteira com os EUA, onde o carrasco mata sem julgamento ou dó. Por que os filhos (alguns) acham que os pais devem protegê-los eternamente? Comi bredo cozido e fui buscar Tránsito, a esposa que não valia um tostão furado.
E na sequência, li “13.Lembre-se”. Pequeno e genial. No preâmbulo, a vida de uma família ou lugarejo (sempre trágica) com todos os seus ingredientes sujos e temperos ácidos.

“14. Você não escuta os cães latir” é econômico, profundo... uma escrita agradável mas cheia de mágoas. Tonaya que ficava logos após o monte (como  Alvide (de Cabo Josino) tomou chá de sumiço. O pobre pai tenta salvar o filho indigno e este, carregado na cacunda do velho, não consegue ouvir o latido do dos cães. Isso era muito mais fácil do que subir e descer serra com aquele peso nas costas. 

Parei a leitura de “15 O dia do desmoronamento”, quando o narrador (seria Meliton) começou a recordar o longo discurso do governador. O conto tem uma engenharia interessante mas precisava ser mais ágil.

“16.A herança de Matilde Arcángel” como os demais, há capricho na escrita. Aqui, um pai gordo menospreza um filho magrinho e quem conta a história é o padrinho do magrinho, que foi apaixonado pela mãe (atual esposa do gordo) no tempo de solteiro. Quando menina, a mãe “se infiltrava como água no meio de todos nós”. E, de uma hora para outra, virou moça e assumiu “um olhar de semissonho que cavoucava pregando-se dentro da gente como um prego que dá muito trabalho para desapregar”. O autor é um fissurado polidor de palavras e de imagens.

O "17. Anacleto Marones" se arrasta mas não solta o leitor, que quer saber o que essas dez mulheres foram buscar com Lucas Lucatero, um vaso torto que mora em um fim do mundo. E Lucas vai postergando com tramoias porque não se interessa em atendê-las. Cada uma vai sendo “expulsa” e, já noite, fica Francisca, que tem um bigode de Pancho Vila. Ele é pilantra mas nem chega aos pés do Santo Menino (Anacleto Marones), um João de Deus das Minas Gerais, papador de devotas e de crianças.

São 17 contos com frases bem formadas e encadeamento do enredo elogiável. Mas um tanto monótonos, como se o autor os alisou tanto que nublou a espontaneidade. Há um mistério na escrita de Juan... Até os diálogos alegres parecem com tristes monólogos; vitórias têm sabor de derrota; em cada curva há um morto. A escrita soa como voz tenebrosa em caverna escura socada em selva e habitada por morcegos e aranhas antropófagas. Dá medo, mas são bons!

(Aracaju, 03 de abril de 2020, Antônio FJ Saracura).

quinta-feira, 2 de abril de 2020

AS CRÔNICAS DE NÁRNIA, C. S. Lewis


AS CRÔNICAS DE NÁRNIA, C. S. Lewis, volume único, 2009, Martins Fontes, 2 edição, 751 pag, isbn 978-85-7827-069-8


Eu comprei o exemplar que custava na véspera 99,00. A Saraiva botou em oferta por 39,00. Uma oferta relâmpago, para premiar retardatários que só saem do shopping tangidos pelos vigilantes. Na verdade, comprei, mais por causa dos livros de JRR Tolkien (Hobit e Senhor dos Anéis) que me encantaram. J.S Lewis e Tolkien cultivaram na vida uma bonita amizade, e a isso eu dou valor sem tamanho.

Tanto um como o outro foram professores de Oxford, de matérias ligadas ao inglês arcaico e a às raízes do povo, e participavam de um empreitada mútua e singular: escreverem livros de fantasia que mostrassem o passado do povo anglo saxão,  como os vikings possuíam, cheios de mitos e lendas. Teriam que inventar. O trato era que Lewis (natural da Escócia) escrevesse sobre a exploração do espaço sideral e Tolkien, inglês, da terra antiga. Eu achava difícil se obedecer à essa de definição de fronteiras, pois, na fantasia, as fronteiras se diluem na imaginação do autor. Tanto é que, Roverandom, de Tolkien, é a história de certo cachorro mandado ao espaço por um mago irritadiço. Então, os dois autores andaram aqui e acolá invadindo a seara do amigo, mas riam, apenas das tentações.


“As Crônicas de Nárnia” é um clássico da literatura mundial. São sete livros encapsulados, daí a quantidade avultada de páginas. A obra pertence à literatura fantástica (quando os bichos avoam e falam como gente) e foi composta entre os anos de 1949 e 1954. E é o sétimo livro mais vendido no mundo, com 110 milhões de exemplares, atrás apenas de O Senhor dos Anéis, Peter Rabit, O Corão, Livro Vermelho de Mao Tse Tung, Harry Poter e a Bíblia Sagrada. Há vários filmes tratando de cada uma das crônicas ou de partes delas que são sucesso entre a garotada e os madurões.

O primeiro livro do conjunto, “O Sobrinho do Mago” tem 97 páginas apenas e acabo de o ler. Conta das aventuras de um garoto e uma garota que caem numa armadilha de um velho mago (tio André) e, por meio de anéis, viajam no tempo ou espaço até mundos encantados. E veem coisas de arrepiar as penas do papo das saracuras. E eles assistem a criação do reino de Nárnia, que é o palco de todos os sete livrinhos, pelo que sei por outras fontes. Há o leão Aslan, há a maga má Jadis (que me lembrou Melkor de Tolkien), há um rei Franco (cocheiro importado das ruas de Londres) e sua esposa, a rainha Helena, antes uma dona de casa comum. Há passagens belas e empolgam até um coroa de mais de setenta como eu. Histórias das carochinhas, encantamentos, fadas más, princesas lindas. Ainda há as mesmas árvores que habitam os tempos gloriosos dos reis elfos de Silmarilion (Tolkien).
E ha mil imagens que preciso anotar (algumas) : “Era uma dessas casas que ficam muito quietinhas e aborrecidas durante a tarde e que sempre cheiram a carne de carneiro”. “Era um silêncio morto, gelado e vazio.” “Tinha-se a impressão de ouvir as árvores bebendo água com suas raízes.” ... São batidas? Até podem ser, mas bom contexto, me fizeram sorrir contente.

Mas vou parar a leitura. Ficarei devendo seis obras primas (resto do livro). Que me perdoem o autor e a imensidade de leitores. Porque? Como o primeiro, o enredo de todos, de certa forma, já me são conhecidas devido às fontes variadas que a vida me deu. E, por outro lado, há livros outros que serão surpresas da primeira à última página esperando por mim, impacientes, na fila.

Eu não quero morrer sem os ler.

(Aracaju, 02/04/2020, Antônio Saracura)