segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

O ESCRAVO DO DIABO, Odair Silva


O ESCRAVO DO DIABO, Odair Silva, 2017,73 páginas, Lumia escritório de design gráfico, isbn 9 788555123863




Aos treze ou quatorze anos de idade, li, ruborizado, Menino de Engenho, de José Lins do Rego. A seguir, Jorge Amado (não lembro qual livro) pela primeira vez. Fiquei escandalizado. Cenas tórridas, trincando princípios de jamais pecar, por pensamentos palavras e obras. Especialmente contra a carne (nem sei bem por que). Eu era seminarista casto e procedia de um lar rude de agricultores, onde um nome feio pronunciado obrigava-nos a lavar a boca com sabão de soda. Os olhos e os ouvidos eram a porta aos cochichos do diabo, ao fogo do inferno.

Quando li Trópico de Câncer e Trópico de Capricórnio, de Henry Miller, fiquei perplexo: coisas impublicáveis compunham um romance e o mundo curvava-se a ele como uma obra de arte literária. Eu já havia saído do seminário e não tinha mais medo do inferno, mas zelava pela boa convivência com uma sociedade das aparências puras.
E mais tarde, quando li Cinquenta Tons das várias cores, mesmo já batizado nas pias do mundo erótico e, sendo um pecador condenado, meu queixo dobrou, minhas orelhas queimaram. Não apenas pela cenas tórridas nas quais me envolvi. Especialmente, pelas filas de jovens (meninas e meninos ainda na adolescência) que se formavam nas livrarias e bienais, comprando os livros de E. L. James. E também pelos cinemas lotados para assistir os filmes.  Também porque todos comentavam, com naturalidade, as intimidades profundas da alcova de Christian Grey e Anastasia Steele.

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O Escravo do Diabo é um livro de 93 páginas, e saiu de uma pena rude, e veio ao mundo em uma pequena cidade religiosa e que tem o nome de Nossa Senhora da Glória. Mas é um livro tão pecador quanto os citados acima, os mais cabeludos.

Odair Silva, o autor, parece não girar bem. Tem o rosto grosseiro, voz sussurrada, olhos perdidos longe. É agricultor, peão de fazenda, ganha salário mínimo cuidando de um magote de vacas, de uma pocilga, de um rebanho de cabras e de outras miudezas. Acidentalmente, por conta das terapias artísticas que os médicos lhe receitaram, Odair envolveu-se com um grupo de artistas, chamado Palácio das Artes, coordenado por uma tal de Aparecida, que vem a ser uma Nossa Senhora pelos milagres que vem operando.  

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Há alguns anos, 2013 ou 2014, tive a oportunidade de encontrar Odair Silva num desses eventos culturais dos quais participo na companhia de Domingos Pascoal de Melo, o semeador de literárias. Fiquei junto a Odair, rapidamente, quando saí de uma reunião morna para cuspir na rua. Pensei que ele fosse o vigia do espaço, e o olhei com olhos de arrependimento pelo ato medieval cometido. Conversamos um pouquinho, e corri ao meu carro, que estava estacionado a vinte passos, e dei-lhe “Os Tabaréus do Sítio Saracura”, de minha autoria, o que muito duvido devido às surpresas que me causa a cada leitura que faço.

Aquele leão de chácara troncudo, cabeça de boi brigador, só faltou me abraçar.

A figura de Odair ficou gravada em minha mente, como um sonhador que publicaria um grande livro, o que me disse e fez-me acreditar, naquele fugar encontro acidental de cinco minutos.  

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Encontrei-o, agora, em 2018, em uma Feira Literária, em Nossa Senhora da Glória. Ele chegou no último dia e espalhou livrinhos avermelhados, envolvidos num plástico transparente, em uma mesa, lá no fundo do salão dos escritores. Eu estava de partida para Aracaju quando bati os olhos no dom quixote sertanejo. Atrasei a partida, ultrapassei outras mesinhas no caminho, e encostei no sitio de Odair. Nenhum comprador à vista. Peguei o livrinho, examinei-o. Capa bonita, título instigante. Proibido para menos de 16 anos.

Ele me reconheceu, arrodeou a mesinha como quem limpa uma cova de mandioca nova e apertou minha mão com força. Comprei um exemplar e fiquei observando-o garatujar o autografo, com palavras mal traçadas e em um dialeto basco, talvez. Pedi que me contasse a história do livro. Como conseguiu publicar, eu sabia que ele era paupérrimo. “Minha esposa, que é vice pastora da igreja, pagou 150 exemplares. Depois de me expulsar de casa, me amaldiçoar, voltou atrás e fez o que nunca esperei. Ela havia vendido um terreno e ia doar o dinheiro ao pastor da igreja. Tentei impedir, usei argumentos fortes, briguei. Não fizesse uma besteira dessas! Pelo nosso amor, pelos nossos filhos que, apesar de não serem meus, eu vinha criando como um pai zeloso. Deixasse, pelo menos, um pouquinho para fazer meu livro, que me faria famoso, talvez rico. Eu prometi (todo mundo promete coisas) comprar, como o lucro do livro, uma Hilux e, na qual, todo domingo, a levaria aos cultos, no luxo. Ela me expulsou de casa. Havia influências contra meu pleito. Mas eu abeirei, mandei recados, pedi de novo. Os filhos me ajudaram, surgiram influências favoráveis. Para minha surpresa, eu já estava desistindo, mandou me chamar e deu-me o dinheiro para fazer 300 livros. Eu recusei, não queria tanto assim. Ela me obrigou a receber, mas estabeleceu condições:  jamais trouxesse o livro para dentro de nossa casa (que era dela) e que seus filhos nunca na vida botassem os olhos nele.”

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Li o livro de Odair. Não entendo como a esposa (que estava certíssima) mudou de opinião e resolveu financiá-lo. Ou não acreditou no que as pessoas falavam do livro, ou preferiu fazer os gostos do marido (companheiro) para o bem dela, que amansou o cão perturbador,  e o nosso bem, que ganhamos um bom livro.

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A parteira olhou os colhões do bebê e falou que parecia um boi tourino. Recebeu uma mijada nos olhos. O pai de Martin, orgulhoso pelo filho macho, deu um tiro de bacamarte, matou dois porcos e ofereceu uma festa pros amigos. Pingou sete pingos de cachaça limpa da boca do anjinho e disse que estava batizado pra vida. Foi embora para Mata Grande, em Alagoas, levar a boa nova do nascimento e nunca mais retornou. A mãe esperou três anos, então se amigou com um traste pinguço, pé de balcão, espancador de mulher e de menino, chamado Zé Cacete, o diabo em pessoa. Depois que Zé se foi (tarde demais), arrumou outro traste igual, chamado João Grilo.

Com onze anos, Martin foi pra escola.  Recebeu empurrão e soltou o tapa. Pegou uma briga com a professora que demorou quase uma página inteira. Pegou castigo, pegou suspensão. João Grilo, o padrasto, desce o manguá no moleque, retalhando-o. Martin retornou a escola que o esperava vingativa. Socos, mordidas, pedradas. Briga com um ou com cem. Martin é uma metralhadora alemã. 

Ele não pode ter juízo,  todos dizem.   

Em 1991, com 16 anos, foi internado no Garcia Moreno (hospital de doido). Fugiu vestido de mulher ou morreria na mesa de suplícios.  Saiu pelo mundo e bateu-se com outros manicômios, na Bahia, em São Paulo. Rasgou o alvará que lhe concedia aposentadoria por insanidade, ameaçou de morte (e mataria mesmo) os familiares que queriam botar nele, de novo, uma camisa de força.

Ganha o mundo, vai ao inferno, vira lobisomem, faz um pacto com o diabo. Louvado seja o rei da escuridão! Queria fazer medo a gente ruim, ser rápido como o vento para escapar das malvadezas (talvez). É chamado de mestre Zé Pretinho das Encruzilhada. Deita com os mortos do cemitério para perder cheiro de gente. Vira lobisomem e sai, pela noite escura, aprontando terror. Invisível, dá tapa nas bundas de moçoilas e, como o vento, apaga os candeeiros acesos nas casas de família ou de diversão.  Forró, mulher, cachaça e assombração. Quem dorme com o diabo, apenas cochila.

Amigações, sexos acesos em devassa combustão. A história termina com a baiana, Isabel, cuja buc era uma torquesa e o ping, um martelo. A fama corria mundo. Zezé do Cavaquinho, o marido ocupado com os shows artísticos que fazia, deu a Martin (primo segundo ou terceiro), com 17 anos de perdição, a obrigação de cuidar da esposa. Isabel era uma urna de tesão prensada. Quarenta e cinco anos de solidão contida e de fantasias frustradas. Houve um estrondo no centro da terra, o vulcão explodiu. Lavas incandescentes cobriram cinco páginas de doce devassidão.

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O Escravo do Diabo é um livro surpreendente. O personagem principal, Martim que assume aqui e acolá a primeira pessoa, conta sua vida, suas alucinações, ou sei lá o que mais. Ora o narrador é um aluno de escola e tido como um estorvo. Ora, é o camelô Martin (vendia bijuterias e óculos ray-ban) que se encanta com os palácios de Simão Dias, sustentados nos ombros por negros esculpidos em pedra. Ora, é um devasso possuído pelo diabo, ou o próprio diabo em pessoa. Ora, um zeloso peão de fazenda.

Venha conhecer O Escravo do Diabo. Mas traga um crucifixo e um vidrinho de água benta. Todavia, deixe em casa, guardadas, as armas de defesa.

(Aracaju, 23 de dez de 2018, Antônio FJ Saracura).

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