quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

ARAME FARPADO, Jorge Tenório

 

ARAME FARPADO, Jorge Tenório, Editora Gogó da Ema, Maceió, 132 páginas, 2022, ISBN 978-65-88270-25-7

 


Nos finais das feiras literárias, troco livros de minha autoria com livros de outros autores. Nas duas últimas bienais de Alagoas, trouxe livros de Jorge Tenório, da academia Alagoana de Letras. Em 2021, o romance “O Ouro do Coronel”, que dei uma sapeada e o levei (junto com outros) para a Geloteca que a academia Itabaianense de Letras mantem em parceria com a Infographics, no shopping Peixoto de Itabaiana.

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Levo para a Geloteca alguns livros que nem li, porque dificilmente os leria em vista da imensa fila que administro. Mas todos que levo, verifico se realmente merecem ir, dou uma sapeada, não vou soltar um cachorro azedo em Itabaiana.

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Esta semana, fui dar a sapeada em “Arame Farpado”, que trouxe da última Bienal de Alagoas, em 2023. As farpas do arame me seguraram. Pulei ao meio, depois ao final, e o livro não me largava, grudado em minhas luvas gastas e fofas. Tive que ler o romance inteiro, furar a fila.

E gostei.

Romance de sertão seco, de nordeste, de Alagoas, cheio de fazendeiros quebrados e povo mais ainda. O patrão não tinha como pagar um dia de serviço, e o trabalhador não conseguia comprar um quilo de tripa ou uma medida de farinha na feira do povoado para os filhos famintos.

O Brasil inteiro, muito mais a Alagoas de Jorge, vivia um momento horrível, como nunca acontecera, nem nas grandes secas de 32, 15 e 77. 

O novo presidente da República, um ente messiânico, com cara de Jesus e alma do cão, prendeu as Cadernetas de Poupança do povo, o cofre sagrado, que guardava até os trocados para a feira do próximo sábado das famílias. 

O radio, nos meses que antecederam o bloqueio, incitava o povo a guardar o dinheiro nas Cadernetas de Poupança, com propaganda enganosa, dizia que apenas nelas estaria protegido. E oferecia juros que nem os mais gananciosos agiotas ousavam cobrar.

E então aconteceu a prisão do dinheiro.

Saulo, o fazendeiro vizinho de Sertório, que vendera sua fazenda a fim de viver de juros na cidade enfiou uma bala na cabeça.

Sertório está no mesmo saco com seus empregados. Só falta estourar a cabeça com um tiro.

Aqui só escapa o agiota Lula do Arame; ele tem muito dinheiro no cofre de seu escritório, nunca depositou em banco, e empresta a quem tem posses. Toma como garantia, propriedades, gado, carros, tratores. Daqui a pouco, talvez vire o dono de todo o Brasil, junto com outros que agem assim de norte a sul, sem lei e piedade.

A lavoura plantada não prospera nas roças. O gado magro morre no pasto. Mais uma safra perdida. Sertório não tem como pagar o empréstimo do banco, tomado no ano passado, para o tratamento da esposa que findou morrendo. Foi ao agiota e pegou dinheiro para pagar o banco.

Não havia palma, nem capim de corte para alimentar o gado. O caroço de algodão na cidade custava os olhos da cara. Os moradores que o serviam na fazenda, desde os avós, choravam à sua porta um prato de comida, um adjutório para a viajarem ao sul. 

Sertório precisa de mais dinheiro... 

Agora Lula do Arame exige garantias bancárias formais. “Vamos assinar no cartório. Você perde a fazenda se não pagar a primeira prestação dos juros."

De que lhe serviria o gado morto, a terra desabitada?

Gerusa, rapariga de cabaré amigada com Sertório, viu quando ele chegou com o alforje de dinheiro. Cresceu os olhos, deu-lhe beijinhos, saliente foi buscar cachaça no armário, bebeu de biquinho, mais fazendo de conta, até o patrão cair desmaiado.

Então roubou todo o dinheiro, mal guardado na gaveta da cômoda. Sumiu no mundo.

Quando Lula do Arame, soube do roubo, mandou Nino, seu cobrador e pistoleiro, avisar que iria executar seu direito, ativar a papelada suspensa no cartório, que desocupasse a fazenda.

Sertório conhecia Nino dos bares, da raparigagem, eram camaradas. 

Os dois estão sentados à sombra da mangueira junto ao telheiro da fazenda, nem um passarinho por testemunha. Uma garrafa de cachaça, que Nino trouxera no embornal, aberta ao pé do banco. Dois copos de vidro azul, ainda meios, rolando entre os dedos de cada um deles, sustados pela conversa.

Nino cobiça a caminhoneta de Sertório e matará Lula por ela e pelo dinheiro preso quando o governo liberar. “Também quero morar aqui com o senhor, pois não terei mesmo para onde ir depois do serviço.”

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Sertório livra-se do agiota, mas se sente em débito com Deus. Vira carola, agora vive mais na igreja.  E fica mais carola ainda quando Geruza reaparece na cidade, atrás de uma amiga que a ajudaria aplicar bem a grana. 

Sertório recupera todo o dinheiro, mas teve que dar a metade a Nino, que descobriu a ladrona.

E acontece o maior milagre.

Nino foi assassinado, com três punhaladas no coração, por um vaqueiro da fazenda de quem ofendera a irmã de menor.

 Sertório recuperou a caminhoneta de volta,  a comissão cobrada do dinheiro de Gerusa, livrou-se da perigosa sombra que já falava ser o dono da fazenda. 

E pode ficar com toda a poupança, que o governo começou a liberar em setembro de 1991.

A viúva de Josa (trabalhador da fazenda, que morrera empurrado do paredão do açude por Nino), mãe da garota Ditinha (estuprada pelo pistoleiro) e de Severino (que matou Nino com três punhaladas), aceitou, sem adulação, dividir a cama de Sertório. 

Choveu no sertão de Alagoas. 

A igreja nunca mais viu Sertório, que já estava enjoando o vigário com tanta beatice.

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Peço desculpas a Jorge Tenório, imortal das academias: Alagoana de Letras, Maceioense de Letras e Palmeirense de Letras, por ter contado sua história sem nenhum compromisso com a geografia e a linha do tempo originais.

Por Antonio FJ Saracura, em Aracaju, 18 de janeiro de 2024.

 

sábado, 6 de janeiro de 2024

GALVEZ, O IMPERADOR DO ACRE, Márcio Souza

 

GALVEZ, O IMPERADOR DO ACRE, Márcio Souza, 21ª  edição, Record, 2021, Rio de Janeiro. Isbn 978-65-5587-473-0.


(A absurda comparação de um romance, em sua primeira edição, lida em 1976, e a vigésima primeira, que acabo de ler).  

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Ontem, 2023out26, domingo, à tardinha, na livraria Leitura, do shopping Riomar... O Escritor na Livraria vive como nunca.

O professor Jackson, que eu não me lembrava de ter visto antes, me dá um abraço de surpresa e compra “O Menino Amarelo”. 

Por que isso, professor? Inquiri em silêncio.

Ele respondeu, no mesmo tom,  que assistira documentários que o jornalista Jorge Carvalho vem publicando nas redes sociais, e agora quer ler todos os livros de  minha autoria.  

Fiquei boquiaberto...

Em seguida, Nininho do Bolo Bom de Lagarto, levou também “O Menino Amarelo” e prometeu dar-lhe um lanche reforçado quando chegasse em casa. E eu nem me lembrei de prevenir Nininho, que o amarelo iria pedir, após papar o lance,  uma colher de Biotônico Fontoura… viciou!

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E Márcio Souza, de quem sou fã desde 1976, quando li e me apaixonei pelo “Galvez, o imperador do Acre”, ao me ver só, gritou um psiu da prateleira da literatura nacional, me chamando. 

Caí de joelhos a seus pés. 

Ele me puxou pra cima e disse com a voz gabaritada pela 21ª edição de Galvez, que me apresentava com um olhar paralelo, disfarçado mas lascivo:  

“Quero ler este “Menino Amarelo” também! Mande para Manaus, o correio é por minha conta.”

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Quando acabei meu expediente na Leitura, fui ao caixa e comprei Galvez. Em casa, me dei conta de que não pedira o endereço de Márcio.

Como despachar então o meu "Menino Amarelo"?

E agora?

Apertei a criatura (meu herói nacional que venero há 47 anos), passei três dias, no começo com voracidade e, ao final, arrastando os pés dormentes no chão, procurando a beleza retida nítida em minha memória, a história heroica da guerra de libertação do Acre, que me arrebatou no passado,  mas nada dela o livro novo tinha. Era agora uma brincadeira boba.  Mas uma pista, nem cifrada, achei, de meu mito, Márcio Souza. 

Tentei conversar com o imperador, reclamar do desmantelo de sua nova história (nem estava mais querendo o endereço de seu criador, de Márcio, de tão indignado agora), mas ele, ou estava escornado bêbado babando sarjetas  ou escapando das casas de senhoras casadas, desde Belém a Manaus, com as calças na mão.

O séquito de parasitas devassos (o competente estado maior de antanho) cortejava-o como Imperador do Acre, e ele inflava como bexiga de aniversário. E o exército de seringueiros cearenses virados na gota serena, comandado por Joana, agora era não mais que trinta e dois pelocos lassos, alvos fáceis, como o foram. E minha heroína, que queria ser freira,  acabou morta com seis buracos de bala, abraçada a winchester fumegante,  de pernas abertas para o céu.

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Eu, que venho falando bem do livro há muitos anos, abaixei a cabeça desorientado. Aonde foi parar a epopeia nacional de leitura alucinante? Este exemplar (vigésima primeira edição) que acabo de ler (como diabos cheguei ao final?) nada tem a ver com o primeiro, que li (ou imaginei que li) em 1976, perdendo por um triz  com a Odisseia de Homero, a Eneida de Virgílio, os Lusíadas de Camões. 

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Preciso destruir a estátua em bronze de Galvez, que entronei na praça principal de Rio Branco. Preciso me desmentir aos que confiaram em minha palavra de conhecedor da literatura. Recomendei que lessem "Galvez, o Imperador do Acre!" e nem indiquei a edição. 

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Eitha! Ia me escapando a contracapa desta 21ª edição...

Nela, Jorge Amado diz que o livro é “vertiginoso, alucinante, no qual a Amazônia se revela em seus furores e perigos”;

Ignácio de Loyola Brandão garante que  “é divertido, fluente, satírico e provocador”;   

E os News Yorks se desmancham em elogios.

(Aracaju, 06 de novembro de 2024, por Antônio FJ Saracura).

Nota:

“Eu tinha nas estantes dezenas de livros muitos ruins que eu não jogava fora, caso algum dia precisasse de um exemplo de livro de má qualidade.” (Página 15, de Encaixotando Minha Biblioteca, de Alberto Manguel).

E eu os tenho também ocupando, no lugar de livros bons, que descarto morrendo de pena. E agora, tenho um, rara espécie, que já bom 47 anos atrás. Eu preciso entender o mistério. E terei como comprar as duas edições, se um dia me bater com a primeira divina.