O PODER LOCAL E RELAÇÃO DE
DOMINAÇÃO (Itabaiana 1945-1963), Antônio Carlos dos Santos, Redes Editora,
2015,144p,isbn 978-85-61638-82-5
É algo que me intriga
e incomoda: esses preâmbulos que não acabam mais, essas fugas do tema, esses
volteios nas imediações. Também a persistente busca em clássicos o que talvez
nem exista, nem precisaria existir, de conceitos que fundamentem o trabalho
acadêmico desenvolvido e objeto de um livro. Em livros produzidos na academia das
Universidades; talvez não todos, mas os que caíram até hoje em minhas mãos.
Não nego a necessidade do
embasamento teórico. Pelo contrário. É que esses embasamentos expostos, quase
sempre me parecem enganação, encheção de linguiça, cumprimento de protocolo
inútil. E poderiam muito bem estar implícitos no corpo do tema desenvolvido, sutilmente,
com citações parcimoniosas, consistentes, atinentes. Especialmente atinentes. Nada
vago, nada que deixe o leitor inseguro ainda mais do que se ele não existisse. Imagino
que essa burocracia acadêmica, pro forma, perderá força e será um dia letra
morta.
Senti isso ao concluir as dezesseis
páginas do capítulo 1 do livro “O Poder Local...”. Muitas
referências a estudiosos para provar nada, pois nenhum chegou ao âmago da
questão. Bastava uma página, e eu agradeceria,
sobraria tempo para ler com mais vagar e carinho o capítulo 2, que merece muito
mais, é onde está o ouro, certamente, a meu ver.
Que importância tem de Euclides e
Manuel Teles serem coronéis ou não? Por
que teríamos que incluí-los nesse teórico departamento virtual? Um povo não
vive pela cartilha dos teóricos mas pela multiplicidade dinâmica da própria
vida.
E já que a academia faz questão
de enquadrar, que sejam mesmo chamados de “cononéis”. O fato de morarem na
cidade e viverem dela não invalida a titulação, no meu ponto de vista, à
revelia dos teóricos. Itabaiana era uma cidade (e ainda é) intimamente rural.
Com vínculos profundos com o campo. E os próprios personagens políticos, além
de comerciantes, eram fazendeiros, possuíam terras, o próprio autor inventaria
ao final do livro. E ambos nasceram e começaram suas vidas em pequenas
propriedades rurais, tinham dentro de si a alma do campo. Mesmo que não
possuíssem uma tarefa de terra sequer, seus dominados e eleitores de cabresto,
seus fuxiqueiros e puxa sacos, a maioria deles era da zona rural (ou veio dela)
e todos os seguiam como se fossem vassalos de um “feudo”. Sei por ter vivido o
momento ou sobras dele.
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Para mim, o livro começou na
página a 55 e, mesmo curto, tem um rico conteúdo. O autor não gasta palavra
vãs, tudo que diz precisava ser dito. Não encomprida a reza para enrolar santo,
ganhar a graça pelo cansaço. Argumenta, embasa, fundamenta, exatamente onde
cabe fazer isso. Não provoca tédio, mesmo ao leitor universal. Até ao
doméstico, enriquece a informação, fixa o conceito. O livro ficou devendo uma
análise mais detalhada do período em que Manuel Teles reinou em Itabaiana (até
1950). Limitou-se as dispersas e esparsas informações. Por isso, transformou-se
em uma ode à Euclides Paes Mendonça. Quem falou que ode é louvação? Mas, ao
final, fica a impressão de que o “coronel” Euclides (que estranho soa!) modernizou
a cidade, inflou o ego dos “serracenos” pois fez o que quase todos gostariam de
fazer: desafiou o poder maior e impôs-se a ele, não pagou impostos, disse o que
quis, fez o que pensou fazer. E todos se curvaram à sua imagem. Um herói
subliminar.
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O tema desenvolvido é polêmico e
recente. Trata de dois adversários políticos. Há testemunhas vivas e ainda
apaixonadas por Euclides ou Manuel. A verdade ainda nada em paixão. Não
assentou e vai demorar ainda. E a paixão
é um privilégio de todos. Ninguém escapa.
Nem o velado autor dessas considerações.
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Arrisco caminhar um pouco, a
partir daqui, pela linha seguida por Antônio Carlos dos Santos, o autor, que é
doutor reconhecido no mundo todo. Possui um curriculum que faz Itabaiana
universal, “Potestas Montis”: a verdadeira riqueza que provem da Serra, a
riqueza que conta.
Em Itabaiana como na maioria das
pequenas cidades, o homem da cidade é rural; e o homem do campo, “os sitiantes recebem
forte influência ou dependência do centro urbano, tanto em virtude de fins
comerciais, quanto para fins de entretenimento. O centro urbano funciona como
lócus aglutinador de toda a região”. A casa grande do engenho, ou o palácio do
senhor feudal.
Euclides e Manuel Teles são
líderes carismáticos. Sobressaía em
Euclides uma “visão do mundo ampla e o desejo de aparelhar Itabaiana no que
houvesse de mais moderno e sofisticado”. “A medida que a cidade crescia, as
avenidas, praças e ruas eram abertas, em especial nos terrenos dos opositores,
que não eram indenizados”. O opositor
prejudicado recorria aos tribunais e perdia a causa.
Itabaiana é a terra onde “as
paixões politicas tanto se agitam”. “De pouco trato”. “Onde a vida é a mercadoria mais barata”. Não
é um lugar fácil de administrar. Só homens fortes, como foram Manuel Teles e
Euclides (até 1963). Especialmente
Euclides soube se sair bem nesse mundo perigoso. Com o tempo, mais não muito,
“anulou o principal adversário, levando-o quase à falência econômica e à
inexpressividade política.” A nação serrana dobrou-se à seus pés pesados.
Euclides dominou o povo e os poderes em volta. Criou uma guarda municipal com
cem homens, sobrepondo o destacamento da polícia estadual que possuía apenas 6.
“Prendia as pessoas, sempre que o
juiz e o opositor político estavam fora da cidade, ganhava, assim, tempo para
castigar como achava certo, dobrar na marra. Mandava trazer o preso a seu
armazém, deixava-o de pé por algumas horas, interrogava-o como se fosse o juiz.
Criou um clima de temor.
“Ao pressentir a ronda da polícia no povoado, Cícero
de Souza corria com medo de novamente ser preso”.
Criou uma cadeia privada num velho sobrado,
longe das vistas do Juiz.
“Colocou presa
Jozina Rosa do Nascimento num quarto escuro, onde foi agredida fisicamente,
inclusive com murros e tamancos, violência cometida pelo próprio Euclides Paes
Mendonça”.
“O prefeito confundia
inconscientemente, ou mesmo conscientemente, o público e o privado.
O Judiciário prendeu um caminhão de
mercadorias. Assim que o fiscal ficou sabendo de quem era (Euclides) soltou-o
imediatamente”. Mesmo sendo Euclides homem sensível às novidades e ao progresso,
“o mesmo não ocorria com relação aos direitos civis e políticos”.
“Animado com o apoio do governo Estadual, invadiu
a cidade vizinha de Ribeirópolis e prendeu e espancou o senhor, Marinho, oposicionista
político que estava sob proteção da força federal. E, depois, nada aconteceu a
Euclides, como de hábito.
O Juiz José Bezerra declarou de
“nunca haver tomado as providências necessárias que lhe competiam por temer o
poderoso chefe político”. E fez bem. Pode criar seus filhos. De uma vez (por
volta de 1962) em que contrariou Euclides, este, munido de uma lata de gasolina
foi queimar casa do juiz, queria que o juiz estivesse dentro”.
De outra vez, irritado com a
atitude do ex-governador, Leandro Maciel (declinara ao convite em participar de
uma comemoração em Itabaiana) mandou o chofer buscar Leandro onde estivesse e o
trouxesse mesmo que fosse amarrado. Leandro veio.
Finalmente...
Quem semeia vento, colhe
tempestade. Por um motivo fútil, em uma “inocente” passeata de estudantes
pedindo água encanada (que era também o sonho dele), Euclides foi fuzilado,
juntamente com o filho, pela Polícia Militar do Estado. “Maria Leite Bezerra, que estava no meio do
tiroteio, disse que viu, “soldados atirarem de fuzil sobre o corpo do deputado,
já sem vida, caído ao solo”.
Xxx
Um livro
para ler como a um romance, um triler policial
ou de espionagem.
(Aracaju,
24/06/2016)
Incluo a seguir, com a devida licença do autor (verbalmente, implicitamente) a crônica de Vladimir Souza Carvalho, também lídimo Potestas Montes (a riqueza quem provem da serra), publicada no Correio de Sergipe de 11 de maio de 2016:
Poder local e relação de dominação 1
ONTEM, O FATO; HOJE, A HISTÓRIA
Vladimir Souza Carvalho
Foi
lendo, com imensa curiosidade, como faço com tudo que se reporta à história de
Itabaiana e me chega as mãos, o excelente Poder Local e Relação de Dominação
- Itabaiana 1945-1963, de Antonio Carlos dos Santos, extraindo dos
escombros dos fatos ocorridos em 1963 os seus antecedentes mais diretos e a
explosão final, verificada em 1967, já
fora do âmbito de 1963, mas dele originada, uma verdade que me tocou, traduzida
no fato de estar a ver, pregado em livro, uma realidade eminentemente local,
transformada agora em história, que eu testemunhei e participei.
Quatro
datas imediatas se unem na trajetória sangrenta dessas páginas da história de
nossa tribo, uma desencadeando e justificando a seguinte, começando com uma
discussão na manhã de 20 de abril de 1963, na feira, entre Euclides Paes
Mendonça, cercado pela Guarda Municipal,
e Manoel Teles, tentando ser impedido de avançar pelo seu balconista
João Andrade. Seguiu a seguinte, 21 de
abril, domingo à noite, na troca de tiros entre a Guarda Municipal e a Polícia
Militar, na mistura do grotesco com o trágico, fatos que prepararam o 08 de
agosto, na passeata dos estudantes do então Ginásio Estadual de Itabaiana, quando
a Polícia Militar matou, na Praça da Matriz, Euclides Paes Mendonça e seu filho
Antonio de Oliveira Mendonça, se encerrando quatro anos depois, em 31 de agosto
de 1967, no esperado assassinato de Manoel Teles, símbolo maior da vingança
anunciada.
Fruto
da leitura de Poder Local e Relação de Dominação, me vi tomado por uma
sensação até então inédita: ser guinado a condição de testemunha e participante
de alguns dos fatos mais fundamentais ali analisados. Ou seja, não na condição
do curioso que escrevia algo sobre a história de sua aldeia de tempos de
antanho, focando fatos praticados por homens que não conhecera, mas do aldeão
menino de treze e dezessete anos, respectivamente, que viu, transformadas em
história, ocorrências que se desenrolaram a poucos metros de seus olhos [20 de
abril de 1963], que ensejaram disparos de armas de fogo que ouviu [21 de abril
de 1963], que viu areias da construção da sede da Banco do Brasil, na Praça da
Matriz, transformadas em trincheira de guerra [22 de abril de 1963], que esteve
na passeata de 08 de agosto [de 1963], presenciou o sepultamento de Euclides e
do filho [09 de agosto de 1963] e, finalmente, em 01 de setembro de 1967,
acompanhou o enterro de Manoel Teles e ouviu o comovido discurso de Manoel
Cabral Machado à beira da sepultura.
Então,
aqueles fatos, que foram, e ainda são, motivos de longas e renováveis
exposições/discussões entre os da minha geração, galgaram um patamar
superior, ao ser enquadrados como
exemplos do coronelismo urbano, temática central do livro de Antonio Carlos dos
Santos, na linha de ensaio anterior de Ibarê Dantas, ali citado, enquanto que,
para nós - que neles estávamos como curiosas testemunhas - a preocupação maior
se resume em fixar os fatos em seus devidos lugares, na tentativa de explicar
como tudo aconteceu. Afinal, a narração das ocorrências fica a cargo de quem
viu; o estudo, de quem entende. O que
ninguém podia imaginar é que, pela sua importância no contexto local, ficassem,
como ficaram, sedimentados na memória dos que deles viram e passaram adiante,
para, depois, como última etapa, atracarem em livros, sob o batismo da
história, o que já começa a ocorrer. (Correio de Sergipe, 11 de junho de 2016).