quinta-feira, 28 de maio de 2020

QUARTO CRESCENTE, Carmo Bernardes


QUARTO CRESCENTE, Carmo Bernardes, segunda edição revista, 1986,236 páginas,UFG, sem isbn




Sinto-me no mundo uma criatura muito sozinha. Essas recordações é que são minhas companheiras. Fico horas esquecidas como estou agora, revendo em memória muitas coisas que não existem mais. Apraz-me entreter, não ver o tempo acabar de passar. Embalo-me, passo tempos enormes em distrações demoradas, assim como agora passei, lembrando de roda de fiar.” (Página 78).






Os livros gostosos de ler e ricos em ensinamentos de Carmo Bernardes decorrem de lembranças. Os meus também, de certa forma.

A roda de fiar pertence ao meu passado, não porque a fabriquei como fez Carmo, mas porque eu ficava, horas, apreciando minha avó, Mãe Céu, deslindando capuchos de algodão, emendando as pontinhas, engordando rolos de fio que, depois, eram mandados para Nininha, a rapariga de seu marido. Semanas depois os fios retornavam como redes de dormir e lençóis de carocinhos para o aconchego nas noites de inverno frio.

“Quarto Crescente” começa quando o autor já é rapazinho e a família muda-se mais uma vez. Assim como veio de Minas para Formosa em Goiás (aventura mais do que gostosa contada em ‘’Força da Nova”, já resenhada por mim), o pai, seo-Luiz Bernardes, carapina fazedor de carro de bois, atendendo convite para exercer sua arte, muda-se (outra aventura espetacular) para o Mato Grosso de Goiás. Foram junto, animais  pequenos e os sogros, com destaque ao simpático Pernagrossa, que entende pouco de trabalho mas muito da ciência da vida. O destino final foi a Cachoeira do Ivo, no meio de floresta densa e insalubre, onde gente e animais tombavam varados pelos venenosos miasmas.

E o livro segue em frente...

Agora, Carmo já casado, migra, sem o pai, para a cidade de Anápolis. Sai de vez das roças de agricultura.  Sofre o diabo no começo, vive às custas da lavagem de roupa da esposa, inclusive para a cachaça no que ficou profissional pinguço. Mais tarde, enjoado de tanta pandega  e de sonhos vãos  (emprego prometido por político em campanha) engrena, escrevendo, sob encomenda, artigos para jornais e discursos para palanques  de políticos.

Com gravuras, este livro de Carmo (como os demais) seria um guia prático de sobrevivência em regiões inóspitas do Brasil:
Como construir um carro de boi (e o manual de partes); uma roda de fiar ou um tear (idem); trançar relhos de couro cru; fazer cercas de arame; fazer divisas com regos...
Como caçar ema; furar oco de pau e pegar mel; pegar um tatu na unha: “Só se aproximar quando ele estiver quietinho com o focinho enterrado”...
Como selecionar ovos para o choco da galinha; evitar molestar a porca amojada pois os bacorinhos nascem de presa afiada e ela não os deixa encostar nos peitos; organizar um casamento na roça; capar boi, porco, cachorra ou um galo...
Como conservar um defunto que arruina; fazer o sabão (de óleo de piqui e outros), curar mil doenças que matam (inclusive a febre caladinha tão falada como fatal: “de manhã jacundá, meio dia com ela e de noite já com Deus.”
E muitas outras ciências de domínio restrito, essenciais à sobrevivência nesse mundo que hoje existe mais em nossa lembrança.

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A falta de fósforo me relembrou de um dito de minha terra, quando eu era menino, de que uma visita rapidinha se dizia que fora apanhar uma brasa no borralho.
A educação pela taca (em casa) ou pela palmatória (na escola, quando havia) dá arrepios e, estranhamente, saudade. (kkk).

O livro todo, como os demais do autor, compõe-se de textos cheios de sabedoria e são escritos com tanto primor que dá vontade de ficar relendo, apreciando. Copiei algumas linhas do início da Nona Parte (página 169) quando o autor descreve o jeito do pai, seu Luiz Bernardes da Costa: “Suas feições tinham uma maneira de carregar-se de sintomas, de dizer tudo e muito do que lhe ia nos sentimentos, ele fechado num silêncio mudo que eu compreendia tão bem como se me fosse pregada uma parlenga”. 

Eu precisaria transcrever o livro inteiro para mostrar o que disse. 
Quem duvidar, pode ir a Estante Virtual, tem a coleção inteira do mestre goiano.

Boa leitura!

(Aracaju, 28 de maio de 2020, Antônio FJ Saracura, durante a longa pandemia do Corona Virus).

quarta-feira, 20 de maio de 2020

CINQUENTA TONS..., E L James



CINQUENTA TONS..., E L James, 2012, trilogia tórrida, Intrínseca




Cinquenta Tons Cinza (primeiro)

Sucesso mundial, best-seller no Brasil, perdendo apenas para Edir Macedo e Marcelo Rossi, exatamente seus antagônicos, tratam de alma enquanto os Cinquenta tratam da carne.
O livro conta a história de um relacionamento entre uma estudante inexperiente em matéria de sexo, Anastásia Steele, e um milionário cheio de manias e equipamentos sádicos. Um prato cheio para mulheres solitárias, menosprezadas. A escritora desenha seu homem (já que está criando) como o mais rico, o mais desprendido e o mais vigoroso. Haverá algum marido no mundo que valha um tostão furado ante o soberbo Cristian Grey?

Ao sair das páginas, a leitora talvez sofra alguma desilusão na sua vida real. Ou não.





Cinquenta Tons Mais Escuros (segundo)

Melhor do que o primeiro livro, pois agrega alguma trama.; vai além dos arrufos de Anastasia, nascidos à toa, e que deixam Cristian arrasado.  Melhora, quando aparece Leila, se bem que transitando mais pelo fantástico do que pelo real. E fica melhor, por conta do gerente da editora, Jack Hide, uma esperança de fuga da alcova de cheiro viciado. Outro ponto interessante é quando a velha (não é tão velha assim) pedófila, Mrs.Robinson (Elena?), resolve (ou é forçada a) passar para o lado dos inimigos.
Quanto ao mais, é a repetição do primeiro livro onde dois animais cruzam e cruzam insaciáveis.

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Por que será que a autora vende tanto e eu nada? Deve haver alguma coisa (ou muita) equivocada com os meus livros.





Cinquenta Tons de Liberdade (último)

É a mesma lengalenga dos dois primeiros. Uma mulher cheia de caprichos e um homem dominado. Como é escrito para o público feminino (a mulher é o centro de toda a trama, inclusive o único personagem que pensa, é difícil agradar a um homem). As descrições picantes são feitas pela ótica da mulher, e o homem (Grey) aparece como coadjuvante. Nos três livros, inclusive nesse, nas horas de perigo máximo, o autor tira Grey de qualquer recanto do mundo e o coloca na cena para salvar sua princesa. Um livro que não acrescenta nada, a não ser quanto ao sadismo sexual.

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Li a trilogia para aprender o caminho do sucesso. O que fazer para virar um best-seller como esta série é? E porque estava na moda, todo mundo lia e comentava. Até em minha casa. Mas não encontrei a chave para o sucesso. Como esses livros de E L James, há milhares encalhados, tratando de sexo, de crime, de tudo... inclusive os meus.

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Eu deveria ocupar melhor o meu tempo de leitura. Há tanto livro bom e eu perdendo tempo com esses tons. Meu Deus!

(Aracaju, 08 de julho de 2013, Antônio FJ Saracura)


O ECLIPSE DE UM FAROL, José Lindvaldo Souz


O ECLIPSE DE UM FAROL, José Lindvaldo Souza, sem outras informações




Li “O Eclipse de um Farol” do professor José Lindvaldo Souza e tive boa surpresa. Interessante como o livro chegou às minhas mãos...
O professor mandou-me uma mensagem pelo facebook de que deixara dois livros seus à minha disposição no departamento de história da Ufs.

Por que não perguntou meu endereço ou deixou aqui em casa? A Ufs é no fim do mundo. Talvez nem soubesse que eu moro Aracaju.
Fui buscar, dois dias depois, aproveitando uma reunião que faria com Péricles Andrade, da Editora (sobre a Bienal) lá na Rosa Elze, onde o Campus da Ufs está.

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Tive o primeiro contato com Antônio Lindvaldo, meses antes dessa ida à Ufs, em um painel na Biblioteca Epifâneio Dórea. O professor fazia uma palestra sobre recuperação de memórias e mais outros negócios ligados à nossa história que teima em se perder. Na plateia, havia um grupo de pessoas que parecia ser alunos seus da Universidade, e alunos apaixonados pelo professor e pela matéria; sempre aplaudiam. Eu estava lá por um acidente...
Pelo que me lembro, eu havia ido bater um papo com Pedrinho dos Santos, que habitava um toca no último andar. Pedrinho não chegara ainda, fora ao médico, conforme me informou o guarda da portaria. Fiquei desorientado, zanzei, e, aí, percebi um movimento de gente entrando no grande auditório. Fui investigar...
Um homem alto e bem apessoado estava no tablado ao fundo, temperando a garganta, ajustando o facho de luz de um projetor, cuidando de detalhes para começar algum falatório. Fiquei curioso e não intentei de cair fora; sentei-me para ouvir o que viria daquele desconhecido; e fazer uma horinha na esperança de Pedrinho retornar e eu não perder a viagem. E ele começou...
Percebi logo que ouvia um professor carismático, com real vocação para cativar, até pássaros que passavam voando, que era o meu caso.
Na transcorrer da palestra, o professor (li o folder que circulava no auditório) citou/mostrou um caderno manuscrito que tomara emprestado a idoso morador de Aracaju, de uma dessas periferias humildes que ele visitara em busca do passado. E leu trechos do caderno, revelando relembranças singelas, que me tocaram a alma.

Ao final da palestra, achando que meu livro “Os Tabaréus do Sítio Saracura” teria no professor um leitor digno, me aproximei do bolo de fãs, achei uma brechinha, e dei-lhe um exemplar autografado. Ele me olhou estranhando; e eu disse algo como se meu livro fosse um documento parelha do manuscrito do tal morador. O professor alteou as sobrancelhas, realçando o estranhamento, e segurou o livro com certo pesar displicente. E eu saí roda, sumi de sua vista, achando fizera besteira. O que há de escritor entrão, querendo plantar sua baboseira no meio graúdo?

O tempo passou...

Os livros estavam no escaninho do Departamento de História da Ufs, que demorei a localizar. “O Pulso de Clio” (que eu já comprara, anonimamente, em um lançamento no IHGSE, ao coautor Claudefranklin Monteiro, mas ainda não lera) e “O Elipse de um Farol”, que acabo de ler.
E como sempre faço, o meu exemplar de O Eclipse ficou todo rabiscado com minhas impressões no decorrer da leitura que, a seguir, tento interpretar.

Acho que as “apresentações” e “introduções” prejudicam o suspense, adiam o prazer da leitura ou até a dispensam. A trama pode ser revelada tornando a leitura do corpo principal um detalhamento desinteressante. Quanto mais bem feitos estes preâmbulos, mais podem induzir o leitor a não se enfurnar no livro. Com a roda viva que nos atinge a todos, ler uma orelha, uma contracapa, quanto muito uma apresentação ou uma introdução, é ler demais até. No caso específico deste livro, entretanto, a introdução escrita pelo próprio autor, me encheu de expectativas. Calculei que leria um romance e tanto, no qual seria contada a epopeia do padre José Vivente de Jesus. Eu lá lera alhures sobre ele a sua luta em uma fase crítica de sedimentação da igreja em Sergipe que, finalmente, ganhara um bispo para cuidar do rebanho, saindo um pouco do poder político.

Aprendi que as fontes fragmentadas, deterioradas, são o melhor prato para o historiador. “Selecionar, cruzar, combinar, compor, montar, revelar o detalhes, dar relevância ao secundário, eis o segredo de que a História se vale” (citação de Pesavento, Sandra Jatahy). A célula instiga e, através dela, o corpo pode ser dissecado.

A impressão que tive é que o autor usou Vicente como guia na feitura da didática, demonstrando que os pequenos fiapos esgarçados, e aparentemente imprestáveis, são a melhor matéria prima da história.
Para mim, o primeiro capítulo e mais a introdução esgotaram o assunto...

Os dois personagens, José Vicente de Jesus e o Coronel Sebrão vivem um cenário onde a igreja se romaniza e o estado tenta reter, a qualquer custo, o poder sobre ela. Uma medição de forças, onde os padres quase sempre perdem para os coronéis truculentos. Mas, silenciosamente a igreja vai se impondo, como aqui em Itabaiana, roubou-lhes Moita Bonita e o Saco do Ribeiro, apoiada nas capelas atuantes.

O discurso me pareceu coerente, a menos no julgamento que fez à obra de Vladimir Souza Carvalho, que achei fora de tamanho, lugar e momento. Nos capítulos seguintes, o professor teoriza mais do que narra. Talvez por isso, achei que o texto foi engordados sem necessidade, incorporando obviedades, repetições de passagens já contadas, visando encaixar o ensinamento da ciência, a sua didática que me pareceu esmerada.

Gostei de ter conhecido um pouco mais do padre/cônego Jose Vivente de Jesus, um lagartense que serviu a Itabaiana no rastro de Manoel Baptista Itajahy e que enfrentou com ousadia suicida o portentoso coronel Sebrão. Vladimir Souza Carvalho dedica um capítulo denso (O Conflito de Sebrão com o cônego José Vicente de Jesus) e mais três caxangás (poemas tipo pasquim) tratando do conflito em seu livro “A República Velha em Itabaiana”.

E gostei de ter sido apresentado ao padre intelectual José Gumercindo dos Santos, este filho de Itabaiana, e com todos os pre-requesitos de santo da Igreja, que será um dia ainda.

Aracaju, 01 de setembro de 2013, Antônio FJ Saracura)

Post Scriptum: E o exemplar de “O Eclipse de um Farol” sumiu de minha acanhada biblioteca. Precisei reler alguns pontos agora, em maio de 2020, quando finalmente arrumei tempo de botar a resenha no meu blog “Sobre Livros lidos”. Devo ter emprestado a alguém. Mas não tenho a mínima ideia do quem. Não devo emprestar livro algum.





segunda-feira, 18 de maio de 2020

CHATÔ, Fernando Morais



CHATÔ, Fernando Morais, 1994, 732 páginas, Companhia das Letras, Isbn 8571643962



Vou iniciar colando um verbete (apontamento) do Google sobre Chatô: “A história da vida vertiginosa de um dos brasileiros mais poderosos e controvertidos deste século. Dono de um império de quase cem jornais, revistas, estações de rádio e televisão – os Diários Associados – e fundador do MASP, Assis Chateaubriand, ou apenas Chatô, sempre atuou na política, nos negócios e nas artes como se fosse um cidadão acima do bem e do mal. Mais temido do que amado, sua complexa e muitas vezes divertida trajetória está associada de modo indissolúvel à vida cultural e política do país entre as décadas de 1910 e 1960”.



Euclides Oliveira, jornalista, bibliófilo, cronista lagartense de escol com matérias publicadas, por muitos anos, em jornais de Sergipe e Bahia e leitor de meus livros, intimou-me a ler Chatô, de Fernando Morais. “Você vai gostar, é seu estilo”. E me emprestou o exemplar parrudo, marcado com traços em surdina, que é seu estilo ao ler. “Tente ignorar as agressões que fiz quase em toda página.”  Euclides tem essa mania que também tenho. Só não faço em livro emprestado, que sempre devolvo no estado em que tomei.

Então, parado ali com o livro aberto na mão, achando que teria problemas, aquelas marcações acendiam luzes sobre pedaços do livro que eu tenderia a olhar primeiro, ou apenas as olhar.  Em casa, reprogramei meus chips e ensaiei o novo programa nas primeiras páginas, até que meus olhos fizeram de conta que o livro era novinho como saíra da gráfica.

A vida de Assis Chateaubriand é algo espetacular. Parece a epopeia de um povo inteiro. Sai da nordeste medieval para um Brasil ensaiando-se nação civilizada. O autor fala dos troncos familiares, passa pelo jovem jornalista brilhante e cheio de sonhos, pinta o Brasil após a Proclamação da República até a ditadura militar de 1964 (avançando até a metade dessa última). E vai até a morte do imperador.  

Chatô criou e destruiu fortunas, formou a opinião pública de um país quando a revista O Cruzeiro (que ainda me lembro) era lida pela elite e pelo povão. Laçou e apeou os grandes e os fez comer na sua mão. Por isso, montou o milionário acervo do Masp preservado ainda hoje. Uma das maiores atrações turísticas de São Paulo. E tem a honra de implantar a primeira televisão no Brasil, a TV Tupi.

Implantou a “Campanha Nacional de Aviação”, com o lema - “Dêem asas ao Brasil”, usando o avião Paulistinha, que formou pilotos e abriu aeroportos e cidades espalhadas em todo canto do Brasil (Até em Itabaiana). 

Foi embaixador do Brasil em Londres (nomeado por Juscelino Kubitschek), mesmo sendo um estranho à corporação de chanceles, que azedou.

O grupo Dários Asssociados tinha empresas cobrindo os segmentos: jornais, emissoras de rádio e televisão, revistas, portais de internet e uma fundação.

Antes da morte de Chatô(1968), o Grupo foi dividido (1959) entre vinte e dois condôminos (filhos, executivos...) e hoje, decorridos 60, conta com 35 ativos, sendo 8 jornais, 1 revista, 7 rádios, 6 emissoras de TV,6 websites e outras 7 empresas.

A escrita de Fernando Moraes é profissional: agradável, consistente, corrente, rica.
Não fica a menor dúvida sobre as mais evidentes facetes do grande empresário das comunicações.

(Aracaju, 24 de dezembro de 2011, Antônio FJ Saracura)

quarta-feira, 13 de maio de 2020

JURUBATUBA, Carmo Bernardes


JURUBATUBA, Carmo Bernardes, Biblioteca Clássica Goiana, ICBC, 2206, 296 páginas, Isbn 85-98762-13-x (romance).


Em convivi com Carmo Bernardes (1915-1996), o autor deste livro raro, em algum tempo no sertão de Goiás (possuí um terreno em Planaltina, que ainda hoje tenho a escritura mas a posse é dos invasores). Eu trabalhava em Brasília (1976-1983) e viajava, na minha rede do oitão, com tropas de burro pela escrita de outros goianos de bom calibre, a exemplo de Bernardo Elis (1915-1997). E, vez ou outra, nos finais de semana, visitava meu terreno para sentir a poeira levantada pelos burros passando sob o estalo do relho comprido. Mas nunca encontrei tropa nem tropeiro e muito menos os magos que contavam as epopeias. Comi, entretanto, muita poeira das estradas de barro vermelho sacudidas pelos automóveis ensandecidos. 


Apesar de ter convivido no momento e talvez no espaço, vim conhecer Carmo apenas a semana passada. Um amigo escritor, sabendo que eu sou toupeira (no bom sentido) e removo raízes profundas, mandou-me de presente, esse Jurubatuba e mais dois de memória do mesmo autor com os quais me refestelo agora.

“Jurubatuba” é romance diferente, que encanta e assombra qualquer leitor por mais erudito que seja; também ao tabaréu pouco afeto às letras. É ecumênico. É um livro de escrita rude como é (ou era) o estilo de vida e o falar do Goiás rural de tempos atrás. É um manual de sabedorias bem articuladas, pois o ensinamento é feito quando surge a oportunidade ou a necessidade, dentro do enredo. Sabedorias da natureza (como a ema faz seu ninho simplório e o protege do fogo no cerrado; como o João-de-barro faz o seu: uma cumbuca de argila sem qualquer arejamento; sabedoria dos homens (como a cachaça atua sobre o cérebro; como usar pauzinho para não morder a língua em sono solavancado; como operar um pequeno engenho de rapadura...). E as “sabedorias” do forte para espoliar o fraco, que em todo lugar há de monte.

Nos primeiros capítulos, o vaqueiro andarilho (Ramiro) viaja aparentemente sem destino montado no seu burro Saudoso pelo sertão, sentindo a natureza, pousando em aldeias perdidas ou embaixo de árvores. Uma viagem boa para o leitor, que conhece a ciência do meio, das pessoas e dos bichos a partir das considerações de quem entende. Bate-se com gente suspeita, com gente abestada e com a espevitada Eremita que o fisga.

E pega pouso na fazenda Jurubatura, onde mora Eremita, um fogareiro aceso, mas casada com o dono da fazenda: velhote que vive cuidando de assuntos externos e tem todas as validades vencidas. E, a pedido dela, oferece dinheiro para que o viajante assuma a posição de vaqueiro da fazenda pequena e decadente. Ramiro recusa, reluta, cede. Ninguém responde por si, quando há saia se levantando à vista.  
Começa a lida do dia a dia, fazendo muito mais do que lhe cabe, ensinando o que sabe que é novidade e, talvez por isso, desperta inveja, intriga... Fuxicaria, a despeita, a traição que todo mundo carrega em qualquer classe. “De privação em privação, esse povo da roça chega a um certo grau de baixeza que, daí em diante, não tem mais classificação. Vira bagaço na sociedade, de não restar nem vergonha, nem dignidade, nem nada” (178). E constata  e se indigna com as dores do pequeno agricultor em terra alheia (todas são naquele sertão imenso), pagando meia, tomando pisa, tendo seu racho queimado.  “Desocuparam as roças à muque. A rancharia de um ardeu.” Ou a dor empregado comum  da fazenda (o carreiro, o carapina avulso...), escravo sem voz, explorado, matado na unha, tendo que lamber as botas do algoz.

O autor cria figuras de linguagem que se pode pegar, virar ao avesso, puxar conversa e até briga: "Bastava o olhar fogo de Ermira para me desmantelar a natureza; um enchouriçamento doido me transtornava e, em cada pé de cabelo, erguia um carocinho de excitação, meu corpo virava uma grosa. “

Ramiro endoida de amor. “Vamos embora daqui”. Mas Ermira gruda a boca na carne macia do peito do macho e chupa sem dó; incendeia nas safadezas na rede, mas não larga a pose de fazendeira, as regalias de mulher do senhor. Ramiro sente o perigo que corre e pensa em rejeitar o amor venenoso, mas teme. Uma rainha rejeitada fez a desgraça de José no Egito. A mulher de Putifar.

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E, por fim (não posso contar o livro todo), de cabeça inchada e montado no burro Saudoso (que sofre do mesmo mal por conta do cavalo cardão, seu amadrinhado, que se foi com Ermira),  segue seu destino, que seria Mato Grosso. Ermira nem se despediu dele, correu atrás de cuidar das heranças e ainda teve o desplante de deixar plantada a suspeita de que fora ele (botou o farmacêutico como tapia besta) que batizara de veneno o comprimido que matou o marido dela. E foi mesmo.

A Jurubatuba fica aos estertores e o Goiás se abre, outra vez, com campos imensos, matas fechadas, águas do Araguaia e de outros mil ribeirões, viajantes de longas distâncias, cidadezinhas modorrentas entupidas de cachorro vadio... E a esperança de uma vida digna para para Ramiro (que deixou dívida a pagar) ou para qualquer outro nesse Brasil imenso, acolhedor e perverso.  

Carmo Bernardes pode até deixar algumas pontas de corda soltas mas você não vai conseguir escapar da sua drama bem urdida, das aulas de sabedorias em cada frase, do ritmo da prosa, da escrita oral do Goiás bruto (e de Itabaiana - Terra Vermelha - também) e das palavras e expressões que Aurélio esnobou, mas têm a magia de se auto explicarem naturalmente.

(Aracaju, 13 de maio de 2020, Antônio Saracura, em plena quarentena do Corona Vírus).

quarta-feira, 6 de maio de 2020

DOIS IRMÃOS, Milton Hatoum


DOIS IRMÃOS, Milton Hatoum, Companhia das Letras,2006,páginas 196, isbn 978-85-359-0833-6.


Pareceu-me escrito com desleixo mesmo para criar o clima dessa Manaus da época e que nem sei se ainda não é assim. Ruelas, igarapés entrando pela cidade ou vice-versa, lupanares, pocilgas, cortiços ao fundo de casarões decadentes, esgotos a céu aberto, quartos fedendo a barata... Camelôs, ambulantes e peixeiros aos gritos vendendo sua mercadoria; imigrantes na miséria; índias escravizadas; promiscuidade, idade média...

Uma barafunda mas há lugar de sobra para se viver feliz, basta querer.
O homem se adapta a qualquer merda. Há espaço para a poesia, declamações, bailes, festas de aniversário, namoros, paixões ardentes, jogos de gamão nas calçadas frescas do final de tarde, conquistas, recusas, vida social.


(Os personagens)

O romance gira em torno de uma família oriunda do Líbano que já teve seu passado de riqueza aqui, mas ainda vive com alguma dignidade: Zana e Halim, seus três filhos (Rânia, Omar e Yakud), uma serva índia (Domingas) e mais um quarto membro, que é filho bastardo de um dos filhos (?) com a tal índia. Halim é marido, boêmio, mas responsável; não dispensa o papo com os amigos. Zana – esposa apegada ao marido, uma dona de casa simpática. Omar - apelidado de Caçula, é o vaso torto, mau demais, sem controle e sem barreiras; o irmão bom é seu grande alvo a destruir. Yakud - irmão bom, misterioso, sempre em desvantagem e na busca de uma vingança para equilibrar as forças; tem vida independente. Rânia – moça comum que assume o comércio decadente do pai e o desenvolve a ponto de manter a família na velhice; esnoba os pretendentes. Domingas – Índia comprada de uma escola religiosa para passar a vida cuidando da casa dos Halim e sempre devendo obrigação; sonha com a liberdade que desfrutava quando menina em sua tribo (talvez dizimada). O narrador – filho de Omar ou Yakud com Domingas...

Há outros personagens menos evidentes mas bem caracterizados. O misterioso vendedor de peixe que é um espião de primeira: Adamor, o perna de sapo, o farejador; toda a floresta era do tamanho do quintal lá de casa. O poeta Abas com seus eficazes Gazais. Há outro poeta, Tojal, professor de literatura que é caçado e morto como comunista pelos verdes de 64... Há o indiano vivaldino, Rochiram, talvez um escroque cheio de manhas... ou não.

(O miolo do conflito)

Os dois irmãos (Omar e Yakud) vivem um conflito contínuo, talvez o tenham começado no ventre da mãe, pois são gêmeos. Omar é o provocador. Ainda garoto, rasga o rosto do irmão com um garrafa quebrada e queria rasgar muito mais. A mãe (Zana), como é comum acontecer com as mães, talvez para compensar a ruindade que gerou, protege o mau e faz com que as pessoas (leia-se o leitor) creiam que a culpa é do bom (porque é bom demais).

Omar some nas águas amazônicas, gasta o dinheiro da família e a mãe o procura por não aguentar mais de saudade. Rouba o dinheiro e o passaporte do irmão bom (que progrediu por conta própria em São Paulo), viaja pelo mundo, e retorna ao colo da mãe, que o acarinha. Invade a casa do irmão e desenha figuras obscenas nas fotos sagradas e todos reagem com certa naturalidade, já que é mau mesmo.
Como é bom ser mau neste romance!

(Meio fim)

Há poucas datas de referência, me lembro de uma (1950) em que o irmão bom foi morar em São Paulo. Talvez a década de 1960, porque os verdes tomaram conta de Manaus e vasculharam cada biboca atrás de comunista (corra Tojal!).
Coitados poetas!
O enredo vai ao passado, ao futuro e mistura com o presente que para mim não é tão presente assim. Haja labor para o leitor dar conta.
E há repetecos, mais de mil vezes o irmão mau estraçalha tudo com sua irracionalidade e outras mil, e a mãe se ajoelha a seus pés.
Há lendas pela metade, desperdiçadas; Há costumes do povo amazônico (índios, caboclos, imigrantes) que vão surgindo e se perdem no emaranhado das páginas. É bela a conquista à Zana, ainda mocinha, trabalhando no comércio dos pais, pelos gazais do poeta, Abas comprados por Halim; que não teria, sem os gazais, chance nenhum com a bela comerciante. É contagiante o intenso fogo que lhe queima a carne até os últimos dias, integralmente compartilhado pela esposa. Não há restrição, apenas a natural explosão de corpos acendidos pelo desejo.
E o livro avança cheio de cortes e agregando pontos estranhos. Parei por conta de falas sem dono; avancei na esperança de saber o porquê de uma frase instigante, que nunca soube. Estive prestes a abandonar a leitura, mas persisti, cheguei ao final. Não é um livro que desencante, mas me causou indignação pelos laços soltos espalhados, pela repetição exagerada da ruindade de Omar e da bondade de Yakud.

(Final)

Por fim, é a decadência das famílias antigas e a recuperação de Manaus que entra em uma fase de progresso com Zona Franca (imagino) e a modernização urbana (destruição da cidade flutuante,construção de novos hotéis e alamedas).

Halin morre à toa e, mesmo morto, vem para a companhia de sua fogosa Zana; Rânia (a filha empreendedora) compra uma casa nessa nova Manaus e há indícios de que entrou na roda dos importados e leva a mãe para sua companhia.
E Yakud, que vive em São Paulo há muito, finalmente perpetra sua vingança prometida desde o começo do livro. Mas é uma vingancinha irrisória! O mau (Omar) vai para a cadeia passar dois anos, quando merecia receber perpétua. E agora Rânia (a mãe faleceu) se enche de peninha do irmão que não vale nada.
E Rochiram consegue ficar com o casarão da família em compensação pelos bons serviços recebidos dos irmãos: “Rochiram exigia uma fortuna em troca do que havia pagado a Yakub pela elaboração do projeto do Hotel e a Omar pela comissão na compra do terreno do hotel (177)”. Onde diabos se escondeu, no alinhavo das frases, a justificativa dessa inversão de valores. A família entrega sua velha mansão para compensar o “prejuízo” do indiano, que constrói um palácio para si.
E o autor, que é filho de um dos dois com a índia Diomingas (escrava), em um estupro revelado por ela mesma (“Omar me agarrou com força de homem e nunca me pediu desculpa!”), se faz de desentendido e conclui o livro sem reconhecer o pai. É melhor qualquer dúvida do que verdade que doa. Ele é o único que se mantem na velha mansão, ou melhor em um guarnicho, ao fundo, cuja entrada é um caminho de formiga.

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Depois ganhou o Jabuti com este livro (já havia ganho outro com o romance “Relato de um certo Oriente”). Hoje é acreditado colunista em “O Estado de São Paulo”.
Eu gostei de ter lido “Dois Irmãos” (reclamei porque ainda não estou no estado do romance moderno brasileiro e estava na refrega da leitura).
Poucos livros brasileiros conseguiram ser traduzidos e lidos em outros países. “Dois Irmãos” conseguiu.

(Aracaju, 2020mai06, Antônio FJ Saracura)

domingo, 3 de maio de 2020

SOB O PESO DAS SOMBRAS, Francisco J.C. Dantas


SOB O PESO DAS SOMBRAS, Francisco J.C. Dantas, Planeta, 2004, 367 páginas, isbn 9788576650126


Os primeiros dois capítulos são aterrorizantes. Quis entrar na briga. Cheguei a maldar da integridade do gênero e da sanidade de princípios (que até o final do livro mantive sob suspeita) de Jileu Bicalho Babão, diretor da Faculdade de Mitologia. Tipo singular e caracterizado de maneira cirúrgica e impiedosa (merecia mais) pelo narrador, que o segura assim até o último capítulo. E lá, ainda o premia com nababesca aposentadoria de vereador, com cadeiras em academias literárias, e a honra de ser o prefaciador oficial de qualquer um que resolva publicar livro. Bicalho é estereótipo natural de quem tem poder. Quantas vezes na vida eu não o encontrei? Quantas vezes eu não o fui? Justino Vieira treme e se diminui a ponto de, no seu recôndito, machucar células sadias que se revelarão, anos depois, em agressivo e impiedoso caranguejo.

Tio padre Barbarino usa a força da fé, urge apaziguar a tensão. “Sem humildade cristã, sem renegar a soberba...você é um homem sem futuro”.

Presto continência ao soldado Divino Melenguê (que azar da porra encontrar aquele pedófilo safado, cabo Elesbão, que o queria papar a qualquer custo). Divino merecia um romance para ele só (já disse antes), pelo brilho aqui e em Cabo Josino Viloso. E ainda acho pouco para esse irlandês sarará do Raso da Catarina (Romã de Riba), campeão no Jogo das cabeçadas, que nem o vi treinando. Não foi criado para ser coadjuvante.

Leopolda, a cunhada desejada a vida toda, que lisa escapulia, chega para morar e tomar conta de tudo: “você está morrendo, sim, mas uma metade de medo e a outra de desleixo.” Com a esposa falecida e os filhos ausentes, de que um pecador precisa mais? E ganha, “sem ter que mover uma palha, tudo por obra e graça do destino”, uma maravilhosa aleluia: “Ela move os braços para o alto arranca do pescoço sua camisola que avoa tal qual pluma alvejada das asas brancas de uma garça rufando e rompendo as sombras.”

A professora Camerinda recebia o pagamento mensal com a assinatura a rogo de alguém (que boa professora o Alvide tinha!), entretanto, cheia de outras sapiências: “Esse sobrinho seu, seu Melenguê, é um tapado. Mais valia ter um caco de torrar mamona” (no lugar do coco). Dona Zinha falou assim de mim (“Os Tabaréus do Sítio Saracura”), mas, no meu caso, ela estava coberta de razão.

Serafim Leitão, professor da Mitologia, aparece como um ponto de ciúme, e que serve para revelar podres das universidades e das periferias agregadas. E como há?

E surge o médico Ricardo Ferrão, que ferra fazendo graça. Nasceu para sacanear a clientela. “É câncer mesmo, apenas uma cabecinha de alfinete... sortudo!” Precisava chegar mais perto da dor e deixar de deboches. Médico amigo às vezes prejudica o doente.

Então chega Agripina, na maior naturalidade, para tomar conta no lugar de Leopolda que se vai como veio. Quem mandou Justino pisar na bola pegando nos peitos da enfermeira? E não lhe sobra mais nada a não ser apreciar as formas redondas de Agripina, que foge de seus agrados.

O cabo Josino Viloso, o exator Zeca Papão e outros do Alvide passam de passagem ... Alguns até deram com a mão, acho que foi para mim, então podem ter me reconhecido e, por isso, sorri agradecido.

O povoado Alvide, que povoa a mente doente de Justino, é o símbolo do nada. Mas guarda aquele sonho restante ao qual, desesperado, se agarra para não tombar junto na cova onde jazem todos que teve na vida. “Ocupado dia e noite em cavar a terra, é bem possível, que essa zoadeira toda que me chega das ruas e dos homens (Corona Virus, Moro, Mandela, fakesnews, assombrações...) me fosse indiferente no Alvide.”

E os nobres doutores da universidade que se afinaram? Quem manda passar a vida caçando ideias estapafúrdias pelo prazer de exibirem, nas reuniões aparatosas, teorias de fabuloso preparo entretanto inúteis.

E vem mais espirros, como uma defesa na derrota iminente... Parecem o sopro de Deus para ajudar o mais fraco. Mesmo assim, após cada espirro de Justino, eu ajeitei minha máscara de cabra medroso nessa quadra da peste rondando.

xxx

Sem especificar dias, “Sob o peso das Sombras” é o diário de Justino Vieira, intelectual recatado (leu todos os livros do mundo), composto com capricho, subindo e descendo, na alegria até na dor, acelerado e paciente, atrapalhado e consciente, enquanto o câncer avança inexorável sobre si. É catarse purificadora e prestação de contas. Talvez a vingança possível pelos azares a que foi exposto no vale de lágrimas.

367 páginas sem concessões. Com acurada visão e com apurado senso crítico. Diz o que tem a dizer, doa a quem doer e, quase sempre, mais ao próprio narrador. Tridente ferinos contra a hipocrisia, pétalas macias para dona Leopolda (que pena ser uma mulher cismada), parcimonioso louvor à pessoas dignas, que sempre há... Testamento cabal.

Cabe fortuna para quem tiver a chance de o ler. Seja de carapuças ou de sabedorias.


(Aracaju, 26 de abril de 2020, Antônio FJ Saracura)