segunda-feira, 31 de agosto de 2020

O CENTRO DAS NOSSAS DESATENÇÕES, Antônio Torres

 

O CENTRO DAS NOSSAS DESATENÇÕES, Antônio Torres, 2015, Record, 80 págins, isbn 978-850-110-282-9

 


Uma caminhada pelo centro de sua cidade do Rio de Janeiro. Os recantos históricos. Cuidadosa e olhando cada monumento, cada via, cada equipamento, cada cratera feita pela prefeitura nesse labor intenso de fazer e desfazer.

Os bons livros, geralmente, envolvem viagens, sejam físicas ou virtuais; Sejam no tempo ou no espaço. Para o mundo externo e para o íntimo. O fio condutor de um caminho ao desconhecido seduz.

“O Centro de Nossas Atenções” é uma viagem pelo Rio de Janeiro atual, eivado de cascalho e buracos mais para mostrar que o prefeito do momento cuida, mesmo que nem ligue. E o autor, um apaixonado pelo Rio mesmo tendo nascido e se criado no distante Junco baiano, aproveita os cavoucos das escavadeiras barulhentas e desce camada por camada, visitando e informando as transformações no tempo, até chegar as aldeias dos primeiros índios que ocuparam esse espaço paradisíaco

É um documentário com textos e fotos. Um filme dirigido pelo mestre da literatura objetiva de escrita essencial, Antônio Torres. Autor consagrado de grandes livros guardados em pequenos cofres. A cidade é o espetáculo com sua história, suas alegrias e suas dores, passando pelos equipamentos, pelos órgãos vitais, pelas manifestações, entendendo os fatos...

O Aeroporto Santos Dumont...

Os prédios históricos (Jornal do Brasil, Teatro Municipal, Jornal do Brasil...);

As muitas ilhas (Villegagnon, Cobras, Ratos...);

Os incontáveis morros (Castelo, Pão de Açúcar, Cara de Cão...);

Avenidas, ruas, praças (Central, Ouvidor, Rossio, Rio Branco, XV de Novembro...);

Grandes festas (Parc Royal, sagração de do Pedro, o último baile da monarquia na ilha Fiscal com seis mil convivas e nenhum banheiro...);

A França Antártica durou cinco anos, Duclerc quebra a cara e Duguay Trouin toma o Rio por 50 dias trágicos.

Estácio de Sá, Mem de Sá... Cunhambebe e seus tamoios pintados de guerra.

Dom João VI, o fausto Império, a magra República e os dias de hoje...

Uma Veneza enterrada e contida...

Baia de Guanabara encantadora, Copacabana lotada de turistas, o bondinho varando o céu...

Inesgotável; melhor ir lá ver; e um dia irei.

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Cada cidade poderia ter um compêndio desses. Magrinho por fora como são as obras de Torres, mas completo no conteúdo. Os turistas, os estudantes, os estudiosos... Todos trataríamos com mais respeito o nosso chão.

 

(por Antônio FJ Saracura, Aracaju 2020ago30)

domingo, 30 de agosto de 2020

O NOBRE SEQUESTRADOR, Antônio Torres,

 

O NOBRE SEQUESTRADOR, Antônio Torres, Record,2003,254 páginas, isbn978-850-106-732-6



 

Depois de “Meu Querido Canibal” (2013), Antônio Torres retorna ao romance histórico. Agora, com “O Nobre Sequestrador” (2013) vai ao exterior, à França, e traz o corsário René Duguay-Trouin para o Rio de Janeiro que invade a cidade.

Torres é romancista do sertão baiano e, com o romance “Essa Terra” (1976), foi traduzido para Francês, Inglês, Italiano alemão, holandês, hebraico e espanhol. A Europa então passou a ser um pouco sua terra. E ficou mais ainda com este romance de capa e espada meio francês. 

Os livros didáticos de minha infância fizeram esse nome estranho, Duguay-Trouin, familiar. Na terra Vermelha, no tempo que estive matriculado na escola de Bernardete de Dona, o corsário Duguay era mais conhecido do que o coronel Sebrão. Sempre caía nas provas, e "ai" de quem não escrevesse essa mistura de letras corretamente.

Por volta de 1710, o mundo civilizado resumia-se a algumas nações navegadoras da Europa governadas por reis parentes e sempre um de olho no trono do outro. Reinava na França, Luiz XIV, e seu reino estava na rabeira, atrás de Portugal, Espanha, Inglaterra, Holanda e de quem fosse. Quebrado, em contínuas guerras, acumulando derrotas. Mas seus corsários varriam os mares preando navios carregados de ouro e prata vindo da América. Era um refrigério.

A ideia de invadir uma cidade no outro lado do oceano, o Rio de Janeiro, com pouco mais de 10 mil habitantes, teve a ver com a libertação de franceses presos e mal tratados, de uma invasão frustrada comandada por Jean Duclerc no ano anterior. E porque o Rio já era meio francês desde que Villegagnon foi seu dono de 1555 a 1563. E, especialmente, porque o ouro de Minas Gerais era embarcado no porto do Rio.

Dugauy-Trouin chegou com uma força de 18 navios de guerra e 5 mil homens. Dominou as defesas da cidade rapidamente. A população rica fugiu para o interior (casas de campo) inclusive o governador. Os demais moradores se aproximaram do invasor para se proteger. Duguay saqueou o que quis e ainda cobrou um resgate fabuloso para ir embora sem queimar tudo. Ficou no Rio 50 dias. Sua esquadra sumiu nas brumas da baía de Guanabara carregada com tudo de valor e mais o resgate pago de 600 mil cruzados, 100 caixas de açúcar e 200 bois. Iria a Salvador liberar outros franceses presos da mesma expedição fracassada de Duclerc, mas foi envolvida em uma tormenta terrível. Navios naufragaram com cargas preciosas e seus marinheiros. Mesmo assim, os investidores de Saint Malo tiveram lucro de 92%.

O livro narra essa aventura (abordagens em alto mar, tempestades incessantes, pura adrenalina), investiga os dois lados, os antecedentes, as consequências. O autor palmilhou cidades da França e cada porto por onde passou o corsário. Vasculhou arquivos, debruçou-se sobre diários, relatórios, processos...

A primeira parte do livro tem ritmo alucinante. Depois, quando o narrador assume o antagonismo e vasculha Saint Malo e outras locações na Europa (páginas 124 até a 172), arrasta-se junto com o paciente minerador da história. Depois, com “Esta Viagem” (página 173) recupera o mesmo ritmo de capa e espada da primeira parte e assim termina.  

Antônio Torres nos brinda mais uma vez com a boa escrita jornalística, eficiente, sem arrodeio; atira no alvo e acerta em cheio. Ele é autor de livros breves mas consistentes; histórias curtas, mas conclusivas. “O Nobre Sequestrador” tem 254 páginas, mas pode ser lido em um final de semana.  

Escrevi resenhas (blog “Antônio Saracura Sobre Lidos”) sobre “Meu Querido Canibal”, “Essa Terra” e “Meninos eu conto”. Desses três, o último tem apenas três contos pequenos e setenta e sete páginas espaçadas. Mas é um grande livro. 

Como este "O Nobre Sequestrador". 

 

(Antônio FJ Saracura, Aracaju, 2020ago29).

 

sábado, 29 de agosto de 2020

CARTAS D'ALÉM-MAR, Epistolário de Dom Luciano Duarte

 

CARTAS D'ALÉM-MAR, Epistolário de Dom Luciano Duarte, Ana Maria Fonseca Medina (organizadora), Edise, 2020, 497 páginas, isbn 978-855-317-8698.

 


Não são cartas apenas...

São diários de viagem, são ensaios de filosofia, são reflexões, são trechos da história universal... São pérolas literárias com a escrita objetiva, útil, articulada, lógica, própria do intelectual Luciano Cabral Duarte, seminarista, padre, bispo, arcebispo e imortal da Academia Sergipana de Letras. Um dos grandes sergipanos em todos os tempos.

E eu tive a glória de conviver momentos rápidos mas que me marcaram a vida de cidadão e de escritor com o seminarista Luciano Cabral Duarte. Por volta de 1958, quando cheguei ao seminário, fui encarregado de organizar a grande biblioteca que estava jogada. Foi meu batismo de fogo com a literatura religiosa e mundana. Prateleiras cheias de livros com o nome do seminarista Luciano Cabral. Clássicos da literatura.  Santo Tomás de Aquino, Eça de Queiroz, Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco e muitos outros. Li-os com voracidade. Bebi da mesma água mas tão sofregamente que quase toda entornou, escorreu pelos cantos da boca.

“Cartas de Além Mar” é o epistolário do Padre Luciano Cabral Duarte, no período de 1954 a 1957 quando fez, na Sorbonne, em Paris, o doutorando em filosofia. Nem todas as cartas escritas estão no livro, algumas tratavam de assuntos muito particulares e foram eliminadas. As que estão revelam  ricas impressões de um viajante culto e curioso. São um guia para quem pretende ir à Europa, como eu. Se Luciano planeja visitar o Vale do Loire, descreve tecnicamente seus castelos espetaculares, impregnando-nos da mesma tentação irresistível. E na visita real, leva-nos junto, como um guia perspicaz que nos faz viver o encantamento presencial. Então, talvez eu nem precise ir mais, como pretendia cinco linhas acima.  Se Luciano está em Toledo, rememora a velha cidade que foi sede dos reis de Espanha no tempo dos Godos e Visigodos (séculos 7 e 8); se está em Jerusalém, percorre os caminhos do velho testamento com seus reis e profetas; se passa em Copenhaque, relembra a epopeia dos navegadores Vikings que desceram das terras geladas e invadiram a Inglaterra e a Normandia no século X.

Mesmo distante, Luciano comenta o que acontece no seu País, no seu Estado, em Aracaju, em Boquim. A tramas e descaminhos da política; os dramas e efemérides da família; as festas, as fofocas, os eventos. O jornal “A Cruzada” chega toda semana junto com revistas, com os calhamaços do leste, com as cartas de retorno.

As notas ao rodapé vão dando conta de elucidar situações que parecem estranhas para estranhos ao dia a dia da família Cabral e ao círculo de amizades, às citações de passagens. Aquele Olavinho... quem seria mesmo, no meio de tantos? E Antônio Cabral? E o pregador Lacordaire?

A primeira carta é datada em 01 de setembro de 1954 quando o autor está em Niterói pronto para embarcar para a Europa. Doze dias de mar silencioso e profundo nas mãos de Deus e se equilibrando em um caixote de madeira e ferro. E vem a segunda e a terceira, do bordo do navio Charles Tellier, de Las Palmas e de Lisboa. Está chegando. E, muitas cartas de Paris, e de várias cidades da Europa, de outras partes em volta, aonde o padre arguto estendeu-se em busca de sabedorias. E vem última carta, também de Paris, em 10 de dezembro de 1957. Retorna ao Brasil, coberto de louros pelo sucesso absoluto na avaliação dos doutores da Sorbonne.

Os destinatários foram: a irmã Carminha, que foi guardiã zelosa; o pai, a mãe, os amigos mais chegados. Padre Luciano pedia-lhes que guardassem as cartas pois precisaria delas (como precisou para escrever Europa Ver e Olhar, imagino) pois não dispunha de tempo para registrar, em paralelo, relatos de seu dia a dia.

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Todos os seminaristas estavam sentados, em uma quinta-feira à noitinha, no espaço de lazer que servia de plateia de teatro do velho seminário da rua Dom José Thomaz, 194. Alguns impaciantes, outros ansiosos, uns calados outros na anarquia simulada.

Chegou o conferencista, Dom Luciano Cabral Duarte. Acontecia em 1960 ou 1961.

O reitor levantou o braço e o silêncio se instalou por meio minuto. Dom Luciano abriu a boca e todos nós embarcamos numa viagem vertiginosa por um mundo novo, de fantasia. Pela Europa que seria muito depois da Bahia. Uma hora inteira, e eu de fôlego preso, correndo Roma, Lisboa, de Paris, que eu não sabia que existiam assim. De boca aberta, puxado pela mão do padre Luciano. Versalhes, Notre Dame, Louvre, Fontainebleu. Castelos, Catedrais, museus, alamedas, torres... Era o lançamento do livro “Europa, Ver e Olhar”.

Peguei um empréstimo com Paulo de Figueiredo e comprei um exemplar para mim. Quando a saudade da Terra Vermelha me apertava eu ia para a Europa passear.

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Além das cartas, o padre Luciano mandou, semanalmente,  artigos e reportagens (como a peregrinação a Palestina) para serem publicadas semanalmente no jornal “A Cruzada”. Sempre manteve viva a voz católica do jornalismo sergipano, de que foi seu timoneiro e o projetou no mundo. (Anos depois, seria, por conta de jornais de renome, enviado especial para cobertura do Concílio Vaticano II e para o Congresso Internacional Eucarístico de Bombaim). 

Em 1966, eu era o redator-chefe do jornal “A Cruzada”. Está no Expediente, no livro “Meninos que não Queriam ser Padres” e nos arquivos do Instituto \histórico e Geográfico de Sergipe. Risco, sufoco e mágicas. Como imprimir a edição da semana se o papel acabara na anterior? E o chumbo? E a linotipos engripada? E a caixa de tipos empastelada? E também o artigo da última página que não chegara para fechar o jornal?

As oficinas e a redação eram na rua Propriá, mas as decisões maiores eram na rua Santo Amaro, para onde eu corria, buscar a orientação abalizada ou a matéria de valia.

“Sente e espere um pouquinho”.

O padre, na escrivaninha, abria a máquina de datilografia. Os espíritos santos desciam e se transformavam em letras debulhadas, em palavras e frases que se espichavam no papel e se moldavam em ideias que encantariam os leitores na segunda-feira de manhã e pelo futuro sem fim.

O padre jornalista puxava a folha do carro, cutucava com a caneta aqui e ali e me entrega a matéria de fundo da semana.

“Cartas de Além Mar”, como as outras obras que saem do labor intenso e profissional de Ana Medina (Cartas de Hermes Fontes, Efemérides de Epifânio Dórea, Vida e obra de Mário Cabral... são sacrários da memória de nossos gênios. Pelo menos essa (memória) não se perderá. É "Trilhando Memórias" que Ana vai revelando e preservando tesouros. Este está contido em um alentado volume de 496 páginas, bem editado (pena que não tem cadernos costurados), adornado por capas marcantes. O conteúdo é ouro puro.

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Bons tempos estes em que as pessoas escreviam cartas, se estavam longe dos seus. E louvável proceder de quem as recebia e as guardava com cuidado. Graças a Dom Luciano e sua irmã Carminha (também aos demais destinatários) temos essa fortuna que é o livro “Cartas de Além Mar, Epistolário de Dom Luciano Duarte”, que Ana Maria Fonseca Medina nos oferece.

(Por Antônio FJ Saracura, em 2020ago28).

Observação:

O livro está a venda na Lojinha “Mister Grão”, na galeria do fundo do G Barbosa da Francisco Porto, por 60,00, onde comprei. Se ainda não acabou. Também na Escariz, na Rádio Cultura, na Sacristia da Igreja de Jesus Ressuscitado.  

sábado, 22 de agosto de 2020

MENINOS EU CONTO, Antônio Torres

 

MENINOS EU CONTO, Antônio Torres, 2015, Galera Junior, 3.edição, 80 páginas, isbn 978-85-01-10378-9

 

Ouvi palestra (live no youtube) promovida pela Universidade de Feira de Santana, na qual o autor falava de sua obra. E especificamente sobre este livro, citou o que lhe disse um leitor: “Torres, seu livro é pequeno, tem apenas três contos. Mas você acertou no alvo em cada um.”

E eu concordo.

Além de ser um livro leve, de leitura rápida, de escrita afável, tirada a infantil, é um livro maduro e bom, isto é, os três contos são tiros certeiros. Falam de infância, de sobrevivência, de sonho, de preparação para a vida em um laboratório singular. Junco é cidadezinha atrasada em todos os sentidos, socada no sertão nordestino, o que não a impede de produzir um grande escritor brasileiro e que pertence a Academia Brasileira de Letras. Porque Antônio Torres (o autor) nasceu e se criou nesse lugar. E os contos são imagens vivas de sua infância, se não vistas enquanto lá morava, criadas à imagem e semelhança das que viu.

No primeiro conto, “Segundo Nego de Roseno”, o menino ensaia ser gente grande. Dá ordem ao bêbado, tem dinheiro no bolso pelo trabalho executado, compra bens, como um pão e uma camisa. E conversa com adultos como se o fosse também. Tem o vigário, o bêbado, o dono da padaria, Nego de Roseno que possuía um armarinho, e o marceneiro Ascendino que conforta o menino e sonha com ele estudando no seminário, tendo um futuro digno. E há o pai que o espera com a enxada pois a capina precisa ser feita. Pai duro, mas aberto ao que o povo da rua fala de seu filho.

“Por um Pé de Feijão” o segundo conto, é doloroso. Todos os sonhos são enfeixados em uma roça boa de feijão. E que vira cinza por conta de um criminoso incêndio. O mundo vai se acabando mas renasce na forma de pezinhos de feijão de corda nascidos no quintal, três  pés de milho e algumas bananeiras. Deus tira os anéis, mas deixa os dedos. De qualquer jeito, o inverno viria outra vez e a roça de feijão seria de novo plantada. Quem sabe não fosse tão boa como a perdida!

E “O Dia de São Nunca” revela uma cidadezinha modorrenta pela cabeça de um menino que acredita que esse Nunca é um santo real e este dia chegará. E nesse dia ficará são de suas perninhas de lagartixa e andará como todo mundo, graças as rezas da mãe que faz milagres. E o santo roubado do oratório pelos três reis magos retornará na festa da Padroeira com muitos presentes. O Junco pega fogo com seu povo singelo praticando a cidadania. A mãe do menino, delegado acuado, o palpiteiro, o carpinteiro fazedor de santos, a turba insensata...

Como diz Aleilton Fonseca (Jornal da Tarde) “são histórias com início, meio e fim, aparentemente simples e despretensiosas, mas ricas de significados”.

 (Por Antônio FJ Saracura, em 2020ago22 em Aracaju).

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

JUNTA-CADÁVERES, Juan Carlos Onetti

 

JUNTA-CADÁVERES, Juan Carlos Onetti, Planeta Literário, tradução Luiz Reyes, 2009, 349 páginas, Isbn 978-85-7665-452-0

 



Francisco Dantas perguntou-me, no final de junho, se eu já havia lido Onetti. Eu nunca havia lido. Até três meses atrás, nem ouvira falar dele. De uruguaios, que me lembrasse, só lera pouquinho de Eduardo Galeano (As veias abertas da América Latina, comum) e Mário Arregui (Cavalos do Amanhecer, excelente). De Onetti (Juan Carlos) conhecia o que o próprio Francisco Dantas me revelara, em carta,  em março. Uma definição do que seria  “saber escrever”: “Há só um caminho (para saber escrever). E que sempre houve. Que o criador de verdade tenha a força de viver solitário, e olhe dentro de si. Que compreenda que não temos pegadas a seguir, que o caminho haverá de fazê-lo cada um, tenaz e alegremente, cortando a sombra dos montes e os arbustos anões”.

Quem seria esse irmão em pensamento? Aguçara-me todo.

E Dantas respondeu-me catedrático: “um dos melhores escritores que conheço.”

Ante minha infantil sinceridade e catecumenice literária, mandou-me “Junta-cadáveres”, como já fizera, me apresentando ao goiano Carmo Bernardes, este com três livros radicais que li atônito e publiquei resenhas em meu blog “Sobre Livros Lidos”. Quando puder, leia os dois!  

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“Junta-cadáveres” começa com a chegada na estação de trens de Santa Maria (cidade imaginária) de três putas gastas trazidas pelas mãos do velho gigolô, Larsen-Junta-cadáveres, chamado assim porque é especialista em sobras da noite e vive às custas delas.

E se encerra, também na estação de trens, quando as três putas, conformadas, e o gigolô, indignado, vão embora da cidade por ordem expressa do governador.

E nesse meio tempo, o mundo inteiro é recriado com seus pedaços esparsos de gente, lugares e momentos: O jornal El-liberal, a colônia dos suíços, o rio silencioso, a praça da matriz, a casinha recolhida de portas celestes... O doutor Diaz Grey, o poeta Jorge Malabia, o farmacêutico Barthê, o padre Bergner, o velho revisor Lanza, a basca Insurralde cheia de mistérios... As cartas anônimas, a invasão do prostíbulo, a iniciação do adolescente...

Onetti constrói locações, personagens e momentos com soltas pinceladas, como um adendo qualquer. A própria Santa Maria não é articulada, com ruas e praças. São pedaços que o leitor tem que arrumar mentalmente para levantar residências, fixar a igreja, ver o rio passando... O personagem Junta-cadáveres, que mais consome tinta, tem uma história fragmentada. Também os demais, como Lanza, o velho revisor do jornal, que poderia ser o “alter-ego” do narrador/autor e até Jorge Malabia, que o é de verdade...

A narrativa prende por artifícios insólitos, fazendo arrodeios, despertando mundos que o autor (talvez) nem tenha querido despertar. As frases se formam com adjetivos aparentemente mal colocados. Segmentos incoerentes. Sons, seres, ideias misturadas, até inconsistentes. 

O autor não se gasta com descrições óbvias. Deixa saírem palavras, imagens, frases que, a primeira vista, parecem não ter nada a ver com o que quer narrar. E o produto gerado desafia como um painel surrealista. O leitor suspeita que há links por baixo conectados e raciocina. Não se enfada. E descobre então que todo emaranhado de dizeres agregou valor inestimável à descrição.]

 “Aquele sorriso levantava apenas as pontas dos lábios, expressava humildade e bem aventurança, mas não era para mais do que um desenho insignificante, e saltava em minha direção, desde o canto dos lábios e desde o centro, desde o ponto onde o lábio superior e da minha cunhada viúva sobressaía inchado, erguendo-se como de um bebê de peito.”

A morte de Julita é um flash rápido e o leitor constrói mil hipóteses, agonia-se, cria expectativas que podem dar em nada. Os incidentes relacionados consomem apenas meia dúzia de linhas, ficam mais subentendidos e, ao mesmo tempo, plenamente esclarecidos por informações disparadas aleatoriamente.  

O autor mantem Marcos vivo, mesmo hibernado por páginas e páginas, desde que se indigna com o prostíbulo. Quando reaparece durante a campanha de cartas anônimas, nada tem a ver diretamente com elas. E lá no fim do livro, quando toma uma decisão intempestiva de matar gente e invade o prostíbulo de arma em punho, senta-se para conversar socialmente com o judeu que incrimina. E quando o prostíbulo é fechado, Marcos nada tem a ver diretamente com o fato. Sua culpa no cartório é evidente mas não pode ser comprovada para efeito de incriminação.

Por isso tudo (e muito mais) Onetti me parece inexaurível. Pode ser relido e parece outro. Estou sempre retornando páginas para sentir melhor cheiros que só desconfiara que havia. E havia bem mais. É desafio constante a cada página. Eu fico tentando adivinhar, tentando ajuntar os temperos, chegando a meias conclusões, mas sei nunca serão definitivas. É uma escrita que instiga enquanto sacia.

E Francisco Dantas, ante meus espantos, ensina o que eu já deveria saber: “a gente só cresce com os livros que desafiam o nosso entendimento, que excedem a nossa capacidade de interpretação, que são irredutíveis à primeira leitura. E a outras. Qualquer pedagogo nos dirá que "aprender" é lutar com o desconhecido e desbravá-lo.”

Vou usar uma definição para poesia, que me pareceu irmã de meu pensamento, embora não tenha vínculo com o enredo básico do romance em foco. Peguei em uma conversa casual dos dois personagens (Lanza e Jorge), proferida pelo primeiro: 

“Um livro de versos nunca pode ser definitivo no sentido que nos interessa; é sempre um princípio; um caminho que se abre. Porque a poesia é feita com o que nos falta, com o que não temos.” 

A prosa também não?

(por Antônio Saracura, 2020ago09, durante a reclusão pela pandemia do Corona Virus).

 

terça-feira, 4 de agosto de 2020

OS DESVALIDOS, Francisco J.C. Dantas


OS DESVALIDOS, Francisco J.C. Dantas, Alfaguara, 3 edição,2012,250 páginas, isbn 978-85-7962-137-6



Acabei de ler ontem à noite, com o nariz entupido e me pelando de medo do Corona, “Os Desvalidos”, de Francisco Dantas. Foi uma releitura, que eu devia a mim mesmo, pois, na primeira vez, pulei trechos, como se um trem pudesse saltar estações para chegar mais rápido à festa, se estava nela desde a primeira página.

Agora, outra vez, pecador renitente, também pela cabeça povoada de vírus reais e dos que a fantasia inventa, tão perigosos quanto, me enganchei nas mudanças de cenário e quase pulo estações na via-sacra de “O Cordel de Coriolano” (primeira parte do livro). De novo? Seria diabólico. Então aguentei firme.

Na segunda parte, “Jornada dos Pares no Aribé”, o livro pegou fogo. Escrita febril. O encadeamento das ideias e dos fatos arrebata. O leitor é possuído pelo enredo.  

Não precisa haver fatos espetaculares para se ter um grande romance; basta estar perfeitamente escrito, como esse “Os Desvalidos”. Um incidente secundário, fora da trajetória conhecida do bandoleiro Lampião, é transformado em epopeia grega... 

O bando de Lampião encurralado (como sempre viveu), espoliado pelos poderosos que o usou e nunca pagou, corrido pelas "volantes" muito mais sanguinárias, chega às vizinhanças do Aribé, ao mundo miúdo de Coriolano, o sítio cascalhado com uma estalagem decadente.

Em noite de insônia, o autor junta o corcunda tamanqueiro Coriolano (“nem no céu em quero entrar como tamanqueiro”), o ousado Zerramo (“Esse sim é que é homem de dar fama a cemitério”), o resignado tio Filipe (cativou o coração da fogosa Maria Melona, que se aquietou) e outros desvalidos, de um lado... e do outro, Virgulino Ferreira (sujo, fedido, acossado), coronéis manhosos, volantes impiedosas, miseráveis cheios de inveja... 

O ar seco de uma anunciada última noite de vida povoa-se de relembranças dolorosas e líricas. 

Coriolano quer apenas tocar a pequena estalagem em paz, que foi o que conseguiu produzir por ele mesmo; Virgulino quer criar com Santinha os meninos como todo mundo cria. Sonhos parecidos aos de Zerramo, de tio Filipe, aos nossos, desvalidos também. Também ao sonho da cangaceira Saitica, que já foi Zé Queixada, indo pra Serra Negra olhar o filho único, já rapaz feito, que nunca mais pode ver, de sua única barriga, parido já sem pai para o acarinhar, mas levando jeito dele, a conversa manhosa e agradadeira. Sonhos justos, simples e naturalmente viáveis em qualquer lugar do mundo.

E esses dois mundos (Coriolano e Lampião) se esbarram sob o teto da estalagem com o sol nascendo.

Virgulino Lampião mal guarnecido de cabras e Coriolano sem qualquer proteção, porque ele, tio Felipe e Zerramo não são nada diante de um rifle carregado. E uma carga de fogo e chumbo desmancha o gigante inteligente cheio de estratégias e ousadias, Zerramo. Coriolano, virou-se num rato e sorrateiro escapa para capoeira, some do Aribé. Tio Filipe é arrancado da morte por Saitica (Maria Melona, a ex esposa agravada), que o joga na garupa do cavalo e parte em disparada. Bem à frente, cai nas garras da impiedosa volante. O filho a espera em vão. E o esperto amansador de cavalo, o caixeiro viajante vocacionado, tio Filipe, assiste sua Maria sendo estuprada pelo batalhão de Cachimbos... 

Tempos depois, tio Filipe aparece puxando uma carroça de um fueiro pelas ruas sujas de Rio das Paridas. Coriolano olha o tio assim, uma sombra de nada... e nem mais tem um fio de pestana para puxar.

A fortuna dos desvalido é fortuita. Os que ficam ricos, findam sem nada, como se fosse uma maldição do destino. Aqui não cabe senhores. Lampião, as tropas volantes, o paisano de um modo geral. Até os gandolas, como os coronéis que financiam as volantes e ludibriam os cangaceiros vivem se escondendo com medo da vingança.

O romance encanta pela escrita irretocável. Não me lembro de ter lido textos tão eficazes. Palavras fortes que a pressa dos novos tempos jogou fora ressuscitam desenhando mundos inimagináveis. É uma daquelas obras na qual parece que o autor coloca nela toda sua arte. Tintas nobres. Pincéis finos. Alma lúcida. Melodia, perfume, sabor que saciam...Todos os sentidos se combinam para gerar a sensação de privilégio único, que o leitor, como eu, acha que ganhou.

Não sei de ninguém que escreva sobre Sergipe (ou não) que chegue perto de Francisco Dantas. Mesmo assim, tem sido meio despercebido até pelos leitores que ainda há. Se temos todo o ouro do mundo aqui em casa... Vamos a ele, ler Francisco Dantas!

(Aracaju, 01 Agosto de 2020, extraída do blog: Antônio Saracura Sobre Livros Lidos).