domingo, 11 de dezembro de 2022

UM BATIM NAS MEMÓRIAS DE UM MENINO PROPRIAENSE

 UM BATIM NAS MEMÓRIAS DE UM MENINO PROPRIAENSE, José Alberto Amorim, 2. Edição, Performance (Arapiraca-Alagoas, 2021, 155 páginas, isbn 978-65-87637-85-3.

 


Fui à I Feira Literária de Propriá realizada nos dias 9 e 10 de novembro de 2022, quando nem acabara ainda a Feira do Livro de Itabaiana (dias 4, 5 e 6), estropiado pela luta que é organizar uma feira de livro de três dias. Fui porque me intimou Ronpelim (Ronaldo Pereira Lima), cronista admirável do beiradão, a participar de uma mesa de debates.

E lá chegando de carona com José Ginaldo de Jesus, que lançaria seu “Chistis” na comunidade católica (ele é líder nesse mundo santo), comecei a conhecer pessoas abnegadas, como os componentes do CCP (Centro Cultural de Propriá) que organizou a Feira no peito, destaque para o próprio Ronpelim e sua esposa Macléia, para o escritor Amorim,  para o empresário  Franklin, para Sérgio, entre outros.

O meu livro “O Menino Amarelo” foi adotado por visitantes da Feira e viajou (doei exemplares) a escolas que demonstraram interesse nele.

E com o escritor José Alberto Amorim, autor de “Um Batim nas Memórias de um Menino Propriaense” fiz permuta de "O Menino Amarelo", com o dele, procedimento que me agrada e sempre busco, porque meu livro se espalha e tenho a chance de conhecer novos autores.

xxx

Acabei de ler o livro de Amorim, que é um batim (brincadeira de pular no rio provocando baticum, espanando água, sem registro no Aurélio) nas memórias de Propriá. Em cada caso contado, em cada tipo apresentado transparece a cidade meio rural e ribeirinha com sua cultura, suas manias, seus jeitos próprios de viver.

São 154 páginas enxutas, tratando inicialmente das pessoas próxima, dos amigos de infância (muitos perduram), entrando em tipos folclóricos, nos portentosos e nos doidos que em todo lugar há, nos artistas... E sempre o rio São Francisco deslizando manso no leito ou brabo invadindo espaços.

A ponte que fez um bem danado pois integrou o País fez muito mal ao lugar: deixou a cidade de lado, como se fosse agora apenas uma peça de decoração. Adeus os cinemas lotados, os clubes sociais festeiros, o comércio ativo, os mecanismos de conexão que geria.

As relembranças discorrem gostosas, dando vida ao lugar que se foi no passado, pela pena hábil do autor enquanto menino.

“Dona Querubina me mandava pegar uma lata de areia grossa na beira do rio. Peneirava e colocava a areia no fogo em uma panela de barro. Quando estava quente tinindo, jogara caroços de milho alho em cima, tapando-a com um texto. Todos ficávamos torcendo e esperando os papôcos dos caroços virando a saborosa pipoca, que algumas vezes era a principal refeição do dia”.

“Na padaria de seu Pedro Pinto, quem levasse uma mochila ganhava um pão de graça. E Tânia, muito esperta, se oferecia para comprar os pães de Dona Dalina e comia a vantagem na rua mesmo. Era sua paga”.

“Em abril de 1964, começaram as prisões de cidadãos que os militares suspeitavam serem comunistas. Na rua Capela morava o açougueiro e vereador Eronides Trindade (conhecido por Lila). De manhãzinha, Lila percebeu que sua casa estava cercada, soldados batiam na porta para o prender. Tentou fugir pelos fundos, também havia lá um soldado de plantão. Alcançou um galho da goiabeira do vizinho e, de comum acordo, subiu no muro e se escondeu lá em cima até não aguentar mais. Então desceu e tentou negociar com os soldados. O tenente exigiu, para não o prender, que ele assinasse documentos incriminando o prefeito, doutor Geraldo e o irmão deste, Deputado Cleto Maia. Lila se irritou: ‘Pois me levem pra rua e me fuzilem ou me prendam, não assinarei em falso testemunho, eles são homens de bem, só ajudaram os pobres”. Lila foi algemado e pegou cadeia por 62 dias”.

“A rua de Serapião é um dos mais tradicionais logradouros da cidade. Quase tudo acontece nela e por perto. E logo na esquina, morava seu João Lampião, o irmão mais novo do rei do cangaço. Quando a molecada debochava dele, a reação era ameaçar com espingarda. Quem defendia os meninos era a irmã Vilma, que morava com dona Francisquinha, a mãe de João, mais à frente”.

“Que risco corríamos para roubar frutas no farto pomar de seu Martinho Bravo. Quando estávamos no bem bom, ouvia-se o pipocar da espingarda soltando sal em pedras. Como escapar, no desespero, cinco meninos por um buraco onde só cabia um”.

 “Os melhores pastéis da rua de Serapião eram os de dona Djalva, que todos chamavam Vavinha. Massa fina, com recheio de saburica (camarão sossego), batatinha, arroz xerém, verduras e alguns segredos”.

“O Sapateiro José de Castro, homem de atitudes diretas, não admitia conversinhas fiadas, era o nosso ‘seu Lunga’”...

E por aí vai...

Uma riqueza imensa de memórias que faz do livro “O Batim nas memórias de um menino propriaense” rico, divertido, um documento de valor, que, no mínimo, será fonte de pesquisa para historiadores, como escrevia Luiz Antônio Barreto a revém dos livros de outro autor, Antônio Saracura, em artigo publicado no Jornal do Dia, de 20/05/2011.

Por Antônio FJ Saracura, em 2022dez11)

 














domingo, 4 de dezembro de 2022

CONVERSANDO COM AS GALINHAS, Irinéia Borges Carvalho

 

CONVERSANDO COM AS GALINHAS, Irinéia Borges Carvalho, 2021, Artner, Aracaju, 80 páginas, isbn 978-65-88562-45-1

 


Um dia, Pascoal mandou-me um original todo atrapalhado, que eu tentei ler e não consegui. Devolvi e disse que precisava ser reescrito pelo próprio autor, pois ninguém conseguiria ajustar o texto ao pensamento difuso que o autor talvez tivera. Tempo depois, Pascoal me disse que dera pitacos e que o autor, depois de alguma reforma, publicara o livro. E me mandou “Conversando com as Galinhas” um livrinho de 80 página que agora li e estou de boca aberta, encantado. As três primeiras histórias bem escritas, gostosas, que me emocionaram.

Sento-me em um banco na praça do coreto, à sombra de um pé de Benjamim, gasto o resto de meus dias feliz (meu corpo alquebrado não dói, nem minha alma gasta ansia), puxando conversa com os passantes apressados, e mais, conversando com as galinhas.

Viajei à casa de pensão de dona Ruth lá numa cidadezinha, quase vila, no interior de São Paulo. Numa sexta-feira, eu estava presente, ela hospedou um senhorzinho, chamado Leonel. Os hóspedes de dona Ruth eram viajantes que ficavam uma noite ou duas, mas o senhor disse que ficaria um mês ou mais. Seu Leonel era um velho médico, sem ninguém, e buscava um bom lugar para morrer. Quem adivinharia?

E fui com Corine, de trem, de Pittsburg até Philadélfia, visitar a tia dela, Abgail, que a chamara com urgência. Deixamos nossas famílias para trás. Eu, ninguém; sou apenas o leitor; Corine, deixou a filha que criou sozinha e estuda na universidade. E Corine reencontra o destino que perdera vinte anos atrás por conta de duas palavras mau entendidas...

Há mais quatro contos/crônicas/textos pequenos (quiçá relembranças): Janelas abertas, aprendendo bons modos, meus amores reais e colhendo palavras. Têm a ver com o cotidiano, com a missão de ensinar, com o gosto pelos recantos sagrados nas almas e das letras e  das palavras. 

Destes quatro, o último, “Colhendo palavras”, me tirou da sintonia que os iniciais criaram. Anotações ao leu, em tom coloquial, que não fazem mal por isso, mas me sacolejaram pra lá e pra cá, sem me levarem a lugar a nenhum. Senti-me perdido no meio do galinheiro. Entretanto, reconheci como sendo interessante fluxo de ideias: matéria prima para subsidiar trabalho acadêmico a ser desenvolvido posteriormente sobre o uso das palavras em seus mil e tantos significados e nuances.

 

(Por Antônio FJ Saracura, em 2022dez03).

sábado, 8 de outubro de 2022

A MANSÃO HOLLOW, Agatha Christie

 

A MANSÃO HOLLOW, Agatha Christie, Nova Fronteira, 2005, Rio de Janeiro

 


Comprei o book da Harper Collins (que também publica agora Agatha) e nele havia a “Mansão”... Então resolvi reler o livro, e não lembrei nada. Afinal, já lá se vão 40 anos que li todos (ou quase) Agatha Christie. Fui em frente porque precisava de um livro que me segurasse, me trouxesse de volta à terra: ando meio aéreo, dispersivo.

A “Mansão” investe muito em costumes, manias de ricos ingleses, etc. como os demais da autora. “David sacudiu o pescoço no colarinho e desejou ardentemente que todas aquelas pessoas soubessem o quanto ele as menosprezava”. Quanto ao mais, é uma aventura policial na qual Hercule Poirot, a exemplo de Maigret de George Simenon e de Sherlock Holmes de Conan Doyle (que acompanho desde adolescente), descobre o assassino usando a cuca: as pistas boas estão mais à vista do que parecem. E o detetive comum sempre perde tempo fuçando ermos. 

Trama bem narrada sem medo de se repetir quando é preciso. Agatha é rigorosa apesar dos tropeços do tradutor. “Entrou pela porta envidraçada, acendeu a lâmpada, fechou e trancou a porta. Depois, apagando a luz, saiu da sala. Encontrou o interruptor que acendeu a luz do hall, rapidamente subiu as escadas. Em um segundo interruptor, apagou a luz do hall. Parou por um instante junto à porta do quarto, a mão na maçaneta, depois girou-a e entrou...”

“Quando Edward entrou com o olhar cego...” “Lucy se expressa como num jogo de adivinhar palavras. O martelo pula de prego em prego e nunca deixa de atingir cada um deles no meio da cabeça...”

Mas aviso aqui que quem mata o doutor é a própria esposa. A imagem exposta de lerda, até exagerada, é puro teatro. Aquele galo que se faz de morto para “pegar” a urubua (urubu fêmea) que agoura o galinheiro.

Ou não? 

Talvez seja apenas uma pista evidente. E pistas assim sempre são relevadas pelos agentes comuns.

Ah! Continuo dispersivo.

Vou ler Moeda Vencida de Francisco J. C. Dantas, que acabei de receber. Certamente vou sair do ar, descer aos meus pagos.

Aracaju, 08 de outubro de 2022, por Antônio FJ Saracura

 


quinta-feira, 29 de setembro de 2022

CHUVA SUAVE, Zeza Vasconcelos

 

CHUVA SUAVE, Zeza Vasconcelos, Aracaju, Criação, romance, 2022, 110 p, isbn 978-85-3413-283-6




Uma novela / romance ou o que se quiser chamar a uma história bem contada, de 110 páginas, com trama e ingredientes óbvios, mas que segura o leitor e o emociona. Pelo menos me deixou com os olhos úmidos, não pude evitar.

Um singelo caso de amor com cenário nosso, no Pontal de Santa Luzia do Itanhi (achei que fosse), beira do mar, entre um rapaz nativo sem lastro, pescador e filho do faroleiro, e a filha adolescente do dono do lugar, que até coronel (Epitácio) é.

Os dois se reencontram vinte anos depois da separação truculenta promovida pelos pais da adolescente, que a levaram para lugares inacessíveis ao garoto apaixonado.

E nesse reencontro, os dois revivem o amor intenso que nunca se apagou. Por pouco tempo, entretanto. A morte anunciada (câncer terminal) a leva embora outra vez. Há uma filha da antiga paixão, que mora no estrangeiro, e não toma conhecimento desse pai revelado agora. Há o coronel que amansou e deixa como herança as terras do Pontal para o genro de última hora, que nem quis saber.

Na contracapa, o autor afirma que seu livro é uma história de amor escrita de forma simples e direta e que pode até parecer ingênua, no que concordamos. Mas garante (e eu creio, porque sou seu irmão em ambição):  “se emocionar um único leitor, me fará extremamente feliz e realizado”.

Então pode ficar feliz, Zeza Vasconcelos, pois eu me emocionei. E estou botando por escrito. 

(Por Antônio FJ Saracura, Aracaju, 29 de setembro de 2022).

Post Escriptum:  Sou o maior chorão do mundo.

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

A SAGA DE UM HEROI, William Soares

 

A SAGA DE UM HEROI, William Soares, 2021, edição particular

 


Eu já vira o autor em alguma reunião por ai (ele é da equipe de escritores médicos) e até passei os olhos em um livro de sua autoria, “A 16.Missão”, que me caiu às mãos, mas nem cheguei a ler, pois tratava de tema que outro livro, este de Cleiber Vieira. Achei que não deveria perder tempo com redundâncias. Talvez devesse.

William Soares esteve na reunião da Academia Sergipana de Letras ontem, dia 19 de setembro de 2022, se apresentando como o novo presidente da Academia Sergipana de Medicina, décimo a ocupar o cargo, e distribuiu dois novos livros de sua autoria. “A saga de um herói” e outro, apenas uma brochura, com seu discurso de posse na presidência na academia de que falei acima: “Um passeio de marinete".

O primeiro é uma homenagem ao médico Semmel weis, húngaro, que descobriu a causa da Praga dos Médicos ou Febre do Parto, que matava 16% das parturientes nos grandes hospitais. A cura seria apenas a mudança de um costume: os médicos teriam que lavar as mãos antes de cada parto.

Mas nenhum médico, nenhum cientista da área aprovou a mudança, nenhum chefe de hospital adotou o novo costume. Mesmo com argumentos irrefutáveis apresentados pelo doutor IFS Semmelweis: que as mulheres assistidas por parteiras práticas não morriam, que os médicos contagiavam as parturientes quanto passavam pelos necrotérios do hospital antes...

“Uma ideia nunca deve ser apresentada antes de sua hora e de seu tempo.”

Mas como esperar mais, diante da gravidade da situação?

Doutor IFS encontrou a cura antes do tempo certo. Seria? 

Então publicou artigos nos jornais, fez palestra em congressos, acusou os médicos de genocidas...

Perdeu o emprego, não achou outro digno. Publicou um livro sobre sua experiência médica e suas teorias, mas não foi bem aceito no meio. Rejeitado pelos colegas, indigna-se, isola-se, estressa-se. 

Logo é internado em um hospício. E morre dias depois. Envenenamento do sangue, a partir de lesão gangrenada na mão direita. Ferimento causado na luta contra os trogloditas que o internaram à força. Exames posteriores confirmaram que a morte foi causada pela mesma enfermidade que matava as mulheres paridas.

No tempo certo, 32 anos depois, Pasteur e outros cientistas convenceram ao mundo que os médicos deveriam mesmo lavar as mãos (depois vieram as luvas), como pregou o doutor Semmer Weis. 

Um bom livro tanto para mim, paciente expectador, quanto para os autores dessa tragédia que é a vida, os médicos.

xxx

E o o outro livro, "Um passeio de marinete", é uma espetacular viagem, bem elaborada e bem humorada. Cheia de lúdicas lições. Sem medo de avançar, de enfrentar, de brigar, de subir ou descer... 

Willlian, é filho de Boquim, criado em Tobias, crescido em Aracaju, cidadão do mundo (atuou como médico na Europa e sul do Brasil), e estabelecido outra vez em Aracaju, onde atua no campo da oncologia.

O livrinho é um tocante poema, que poetas perdidos por aí precisavam ler para aprender a magia de dizer muito com quase nada de palavras. Sabe bem encantar com flores comuns que juntas formam um jardim surpreendente. 

O retorno aos pagos da infância que todos vivemos: correr pra casa antes que a luz apague, tomar banho na água fresca da fonte da mata, tremer ante a ordem de volte para casa "seus cabruncos"... O carro de boi gemendo, o trem Estrela do Norte apitando na estação de Boquim... O bordado da vida estudantil, a faculdade e São Paulo que é o destino certo para todos. A quarta  pátria que o espanta com a poesia concreta das esquinas e a beleza discreta das meninas. Apenas cinco dias perdido na garoa densa, bate-se com garota que lhe pergunta: “como vieste parar aqui, se os muros são altos e difíceis de escalar”? E, que nem Romeu, respondeu: “com as asas do amor... ".

Bem depois, quando desce da marinete em um meio dia canicular do verão sergipano, corre em busca da sombra solitária no meio da praça deserta pra não torrar. É a sombra de um pau Brasil, remanescente. Nativo que escapou dos machados dos colonizadores e dos herbicidas dos novos donos de tudo. Ancião, desconsolado, sozinho e indefeso.  Algumas vargens penduradas logo soltarão sementes no chão estéril de paralelepípedos. 

Será o fim da espécie nobre que deu o nome a esta terra inteira.

É selado, então, um pacto tácito entre a velha árvore à morte e o novo médico cheio de vida.

E William recolhe as vargens secas e sai em busca de um cantinho fértil para plantar as sementes, seja no chão do quintal de sua residência ou no coração receptivo de cada um de nós.

É tempo certo para recuperar o símbolo de nossa pátria. Já passou, mas ainda pode.  

(por Antônio FJ Saracura, Aracaju, 22 de setembro de 2022).

sexta-feira, 12 de agosto de 2022

HISTÓRIAS QUE ME CONTARAM, Valfran Soares

 

HISTÓRIAS QUE ME CONTARAM, Valfran Soares, Edise, Aracaju, 2021 isbn 978-6586004-47-2

 


 

No lançamento do hino “Cidade Serrana”, o canto de louvor à querida Itabaiana, Valfran me mostrou alguns textos que escrevera para um futuro livro a publicar, dedicado às crianças. Encantei-me e viajei ao meu tempo de menino, tempo sofrido que hoje me mata de saudade já que não matou de dor no passado. O lirismo de “Cidade Serrana” estava entranhado naqueles contos curtos, como está nas canções que Valfran compõe e que enriquecem o nosso cancioneiro. 

A literatura infantil e a criançada (pequena e grande, eu no bolo) ganham com este livro um presente inestimável. 

Mais ou menos, foi o que escrevei a seu pedido de Valfran, que incluiu no apêndice do livro, na página 49, acho que é, pois, essa parte do livro não tem numeração. 

Além de meu texto, alguns ilustres da terra fizeram considerações que estão no mesmo bloco, como a poetisa e presidente de muitas academias, Cris Souza; a poetisa e autora de belos livros, Martha Hora; a escritora e contadora de histórias, Isabel Melo; Há, por último, o simpático depoimento da filha do autor, Dilayne que cita Valfran, um cara destemido:  ”Nunca encontrei um problema sem solução, sociedade sem preconceito e política sem corrupção”.

O livro tem o formato mignon, cabe bem na mão de uma criança, e usa papel couchê liso que confere doce manuseio. E compõe-se de dez pequenos contos/causos/lições de vida, com destaque para “A Carreira do Cágado”, “A Escada que vai dar no Céu” e "Lua de São Jorge”, para não me estender além da conta.

Antônio FJ Saracura, Aracaju 12 de agosto de 2022.

quarta-feira, 10 de agosto de 2022

ARACAJU REMINISCÊNCIAS E DEVANEIOS, Murillo Melins

 

ARACAJU REMINISCÊNCIAS E DEVANEIOS, Murillo Melins, Aracaju J. Andrade, 2020, isbn 978-65-992287-2-8

 


Murillo Melins é autor de dois outros livros, sucessos de venda:  “Aracaju Romântica que Vi e Vivi”, publicado inicialmente em 2000 e que sofre atualizações em novas edições desde então. Trata do viver cotidiano de Aracaju nas décadas de 1940 e 1950, com destaque para a vida boêmia, o mundo de Murilo. E “Aracaju Pitoresco e Lendário”, publicado em 2015, composto de crônicas que saíram em periódicos dos anos 20, 30, 40 e 1950 (e bem antes), e mais curiosidades, fatos soltos, causos da oralidade, gravuras, etc. e traz, de graça, como surpresa ou brinde, apêndice impagável sobre poetas conterrâneos.

 “Aracaju Reminiscências e Devaneios”, o novo livro que acaba de sair, segue a mesma picada dos livros anteriores sem se repetir e, mesmo o fazendo aqui e ali, o novo texto se veste de novidade absoluta e encanta como se o leitor estivesse vendo o filme pela primeira vez. São alentadas crônicas, a maior parte não caberia nos periódicos comuns, daria uma novela se o autor fosse romancista. São momentos vividos pela cidade, são personalidades marcantes da sociedade: boêmios, artistas, músicos escritores, etc. com os quais o autor desfrutou da intimidade.

Murillo alcançou os 93 anos de idade, lúcido e expedito como um adolescente. Declama de cor poetas do Brasil e de fora. Relembra fatos de quarenta anos atrás com nomes de personagens e contexto real. E tem argumentos irrefutáveis para debater cultura; e sobre Aracaju, nem se fala.

XXX

“A sociedade frequentava o cine Rio Branco, do elegante e solícito Juca Barreto, visto constantemente sentando ao lado da charmosa e bonita companheira na obrigatória passagem dos cinéfilos. Todos cumprimentavam Juca e muitos arriscavam um olhar lascivo e disfarçado àquela elegante e bela senhora”.

 “A população viu, indignada, arrancarem a placa indicativa da rua Japaratuba e fixarem outra com o nome de rua João Pessoa, homenagem imerecida ao caudilho paraibano, que nenhum vínculo teve com a nossa cidade”.

“Eu tive cadeira cativa no hall do Cacique Chá, ponto de encontro dos românticos, refúgio de amigos festeiros, local predileto do meu apaixonado e boêmio coração. As festas sempre eram muito concorridas. E quem não conseguia vaga para o salão, ficava no SERENO, ou seja, na aglomeração em frente, e daí assistia aos bailes e funções artísticas. E o Sereno passou a ter destaque especial na crônica social da época, como se fosse outro Cacique”.

“Zé Eugênio de Jesus foi gongado  pelo doutor Badarode, por desafinar, no programa de calouros da recém-inaugurada Rádio Difusora. Mas Zé era teimoso. Meses depois, na Festa da Mocidade, participou de concurso similar e obteve a primeira colocação. Esteve em todo canto fazendo sucesso, como no bloco "O Passo do Canguru" com a singular coreografia de sua invenção”.

“O pândego Zé de Raul, após um porre de lança perfume, desfilava na João Pessoa como Rei Momo em uma noite de carnaval. O jipe, onde estava armado seu trono,  deu uma freada brusca e ele desabou no meio da rua.  Sacudiu a poeira, deu um sonoro carão no motorista, subiu de volta ao trono e, sob o olhar perplexo dos seus ministros, Lídio Bessa e Barroquinha, continuou sorridente o passeio imperial”.

“A inauguração do Carrocel do Tobias aconteceu na festa de Natal, na Praça Camerino, com a afluência de milhares de aracajuanos. O brinquedo veio para uma temporada em 1904 e ficou definitivamente. A poetisa Avany Torres captou a magia dos afogueados cavalos, de crinas arrepiadas, olhos vivos expressivos e narinas dilatadas que pareciam respirar”.

“E numa noite de orgia na boate Miramar, o famoso Luiz Gonzaga, que o visitava, foi surpreendido quando Núbia, alegre dançarina, sentou-se a seu colo. O fotógrafo Canto do Rio bateu fotos. O rei do baião não gostou. Partiu para cima do fotógrafo e destruiu o filme, a prova do crime”.

“O navio sergipano Brasiluso, da firma Peixoto Gonçalves, foi invadido pelos tripulantes do U-207 alemão, o carrasco dos navios em nossa costa. Após constrangedora vistoria, não sendo encontrado o precioso carregamento de óleo diesel, os alemães abandonaram o navio”.

“A revista O Tico Tico manteve-se arraigada do início ao fim aos objetivos de entreter, informar e formar de maneira sadia a criança brasileira. Linguagem coloquial, perseguia a ideia de que o progresso do País dependia da educação. Foram 2.076 edições, desde 11 de outubro de 1905 até novembro de 1958. Morreu quando foram introduzidos personagens e mentalidade estrangeira nos seus desenhos”.

“Pinduca, o músico propriaense batizado com o nome de Luiz d’Anunciação, assinou contrato com a TV Tupi, em seguida com a TV Globo, onde permaneceu 18 anos como maestro do programa Globo de Ouro, participou do Fantástico, dirigiu a orquestra do programa do Chacrinha, foi arranjador e orquestrador dos programas de Chico Anysio e do Balança mas não Cai”.

“O primeiro trecho da Avenida Rio Branco, à sombra das árvores, ficava o Ponto de chegada e saída das antigas marinetes, que diária e precariamente trafegavam pelas poeirentas estradas do Estado, graças a empreendedores como Barbadinho, Josino Almeida, José Lauro de Menezes, Oviedo Teixeira e alguns outros. O motorista da marinete de Itabaiana, João de Balbino, tinha como comissário de bordo, Motinha, que veio a ser empresário de sucesso no comércio de Aracaju e pai de ilustres médicos”.

XXX

“É prazeroso trabalhar com a memória”, confessa Murilo em algum lugar de seu livro e demonstra em toda obra. Cada página de "Reminiscências e Devaneios" traz vivos Aracaju e seus habitantes desde os tempos antigos, como se fosse hoje. A argúcia, o senso crítico, técnica e a arte deste autor incorporam tons de magia, produzem efeitos que apenas ele tem.     

Murilo é único e precisa ser louvado o tempo todo.

Eu me sinto feliz em conviver com seus livros e com ele em pessoa. Lamento tê-lo encontrado tão tarde. Espero me demorar por aqui mais um pouco para bem aproveitá-lo. 

Por Antônio FJ Saracura, em Aracaju 2022ago09.

domingo, 7 de agosto de 2022

EU NÃO VIM FAZER UM DISCURSO, Gabriel Garcia Marques

 

EU NÃO VIM FAZER UM DISCURSO, Gabriel Garcia Marques, tradução de Eric Nepomuceno, Rio de Janeiro, Record,  2011

EU NÃO VIM FAZER UM DISCURSO, Gabriel Garcia Marques, tradução de Eric Nepomuceno, Rio de Janeiro, Record, 2011.

A obra de Gabriel Garcia Marques mostra o amor sem quartel à literatura, ao desbaste da gramática pomposa, ao fio da meada nítido, a paixão pelo jornalismo que marcou sua escrita ligeira e translúcida. O escritor nasceu pronto, sempre escreveu para ser lido por todos, conduzindo a trama pela superfície do fácil entender, mas revelando ciências que outros gastariam muitas vezes mais para mostrar.

O livro “Eu não vim fazer um discurso” reúne quase tudo que ele usou pra encantar as plateias, quando se viu obrigado a fazer discursos, ao lhe darem prêmios pela sua obra. Equivale a dizer: quando se sentiu obrigado a cometer duplo pecado. Pois prometera a si nunca receber prêmios e nem fazer discursos (página 18).

O livro se compõe de 21 discursos concisos para que cada ouvinte na plateia não tivesse tempo de abrir a boca enfadado, terminava antes. E fossem assimilados integralmente, pela objetividade. Poucas palavras dizendo muito, que é um princípio do bom jornalismo (e da boa poesia).

Na Academia do Dever em Zapaquirá, Colômbia, em 1944, com 17 anos de idade, por ocasião da despedida da turma no colégio. Em Caracas na Venezuela, 1972, ao receber o prêmio Rômulo Galegos pelo seu livro “Cem Anos de Solidão”. Na cidade do México em 1982, ao receber a Ordem da Águia Azteca. E alguns outros. Como este em Estocolmo na Suécia, em 1982, na cerimônia de entrega do Prêmio Nobel de Literatura. E outro discurso em Estocolmo, também em 1982, em baquete oferecido pelos reis da Suécia em homenagem aos ganhadores do Nobel naquele ano. E o último discurso, em 2007, em Cartagena das Índias, na Colômbia, diante das academias de línguas e dos Reis de Espanha...

Aqui, Gabriel completava 80 anos de vida, 40 anos da publicação de “Cem Anos de Solidão” e 25 do prêmio Nobel. E relembra, no discurso, a dura fase de sua vida quando escrevia seu maior romance, que lhe deu de presente o mundo inteiro.

"Aos meus trinta e oito anos, com quatro livros publicados desde meus vinte anos, me sentei na máquina e escrevi durante dezoito meses. Não deixei de escrever um único dia. Naquele tempo não ganhei um único centavo, nem sei como Mercedes, eu e dois filhos fizemos para sobreviver. (...) Por fim, o livro estava concluído. Era o começo de 1966. Mercedes e eu fomos a uma agência do correio da cidade do México para o enviar para Buenos Aires (onde o editor imprimiria), “Cem anos de Solidão”, um calhamaço com 590 páginas escritas à máquina. Custava para o enviar oitenta e dois pesos, mas só tínhamos cinquenta e três. Então resolvemos mandar a metade das folhas. Por descuido, mandamos a metade errada, o final do livro. Paco Porrua, nosso editor da Sudamericana, ansioso para conhecer a primeira parte (deve ter gostado muito da segunda) remeteu-nos o dinheiro necessário para enviar o resto". 

Hoje, os leitores de “Cem Anos de Solidão”, se vivessem em um único pedaço de terra, este lugar seria um dos vinte países mais povoados do mundo.Tem mais de 50 milhões de exemplares vendidos e já foi traduzido para 46 línguas diferentes. 

(Apenas para relembrar):

“Cem anos de solidão” se passa no vilarejo fictício de Macondo e acompanha a longa trajetória da família fundadora da cidade, os Buendía... A história é construída a partir do realismo fantástico, corrente literária que mescla realidade com elementos mágicos. (Leia mais em: https://super.abril.com.br/cultura/conheca-a-historia-de-cem-anos-de-solidao-que-vai-virar-serie-na-netflix/)

Por Antônio FJ Saracura, em 05 de agosto de 2022, em Aracaju.

(PS):

E apenas para contradizer o que falei sobre a translúcida escrita de Gabriel no início desta resenha: O livro “O Outono do Patriarca", do mesmo autor, que foi publicado logo após "Cem a nos de solidão" pareceu-me um bloco de granito de 300 toneladas, eu não consegui ler nem dez páginas seguidas. É poema que chora/canta a solidão do poder, centrado nas contradições das ditaduras latino-americanas; não deu para mim. 

 

domingo, 31 de julho de 2022

MACBETH, Jo Nesbo


MACBETH, Jo Nesbo, Record, 2019, tradução de Márcia Alves, Rio de Janeiro, 515 páginas, Isbn 978-95-11-11694-9


 

A Livraria Escariz estava com uma promoção, livros da Record de três anos atrás a preço de banana. Uma mesa cheia. Comprei Isabela Allende, Garcia Marques e Jo Nesbo. Este Jo, outro dia, enchia as gôndolas, era badalação; a revista Veja e outros fazedores de cabeça traziam resenhas, testemunhos, frases de celebridades, estatística de venda com números absurdos. Fora uma estadia meteórica nas gôndolas de frente, aquelas que enchem os olhos da clientela por um ou dois meses e depois os livros vão para o porão da loja, dão lugar à novas coqueluches. 

Desse porão é que devem ter vindo para a mesa cheia onde os vi e me espantei. R$15,00 cada exemplar.  

Os funcionários garantiram que preço estava correto, eu podia levar quantos exemplares quisesse. Perguntei por quê? Não abriram o jogo inteiro, mas consegui pescar indícios aqui e ali e montei uma explicação que faz sentido. “Os livros pararam de vender e a Record, que os distribui por consignação, pediu para os mandar de volta. A Escariz fez o orçamento para os localizar na barafunda, empacotar, tirar nota fiscal, despachar no correio, e informou o valor. Cada exemplar ficaria pelo dobro do custo na editora. E onde guardá-los na editora se o estoque destes era imenso, a saída fora pouca. Então, mandou vender por qualquer preço ou tocar fogo neles".

Esse Jo Nesbo sempre me intrigou, mas nunca me decidi a comprar um livro dele por 70,00; agora comprei por 15,00, trouxe três romances para casa.

xxx

Esta semana, atribulado com problemas de saúde e de família, precisei de um bom romance policial para me sanear. E peguei o grosso “Macbeth”, de 515 páginas, um calhamaço. Até achei bom ser imenso. Eu teria mais tempo a me confortar. 

xxx

Cheguei na tora à página 132, e escrevi a lápis em letras garrafais no espaço livre que sobrou no final do capítulo 8: “Paro aqui. Nenhum passo dou mais"...

xxx

Uma cidade decadente tomada pela marginalidade, que me pareceu a região da Princesa Isabel e Estação em Luz de São Paulo, lotada de crakeiros. E uma polícia corrupta que nem a carioca que a televisão mostra sempre.

Então, entra o policial, chamado Macbeth, sem nem ser chamado, com sua equipe, em uma operação comandada por um dos chefões da polícia. Salva a operação, resgata os companheiros dominados, destrói um caminhão de anfetamina e elimina traficantes que a polícia há muito perseguia.

Macbeth é um tipo singular: de menino pobre de orfanato, virou garoto de rua, viciado em droga pesada. Seus braços ainda hoje, vinte anos passados, são marcados por profundas cicatrizes de picadas de agulhas. Com a ajuda de um amigo (hoje seu parceiro na polícia) saiu das ruas e do vício e entrou na academia de polícia. 

Hoje é o policial mais respeitado da corporação. E acaba de ser nomeado para comandar o departamento mais importante da Polícia. 

Os candidatos naturais roem as unhas enciumados...

Macbeth tem uma vida social estável, é casado com Lady, a dona do mais chique cassino da cidade, que promove uma grande festa para celebrar a posse do esposo. 

E na véspera, Lady exige que Macbeth mate Duncan, superintendente da Polícia. Lady deve ter motivos que o autor não contou até onde li. 

Como muitos dos ilustres convivas, Duncan aceitou hospedar-se nas suítes do cassino, um luxo e deferência da proprietária. 

Macbeth não vê sentido em eliminar Dunca, que o nomeou para o alto posto. Mas Lady não abre mão. E ele não sabe como negar este favor à amada.

Mas entra em parafuso. 

Quando festa está no fim e quase todos já se recolheram para dormir, ele sai para a cidade, entra na zona do tráfico, tenta comprar Brew, que é o Crack do lugar, mas os vendedores recusam vender. Macbeth é o símbolo dos bons costumes, todos o reconhecem. Então Hécare (o bandidão terrível) o alcança com as garras, e Strega, a mão direita ubíqua, oferece-lhe um kit de presente. 

Macbeth entra no fedorento banheiro público, consegue um espaço no meio dos viciados, espalha o pó no tampo da pia. Esmaga os grumos com o lado cego de uma de suas adagas, enrola droga em uma cédula de dinheiro e se entope até a raiz do cabelo. 

Que absurdo! Tanto por tão pouco. Em vários sentidos, isso deixa o romance surreal, inverossímil a meu ver. 

Como um zumbi, Macbeth retorna ao cassino onde os últimos clientes, inclusive Lady, riem em fim de festa. Sobe ao hotel e entra no apartamento onde Duncan dorme. Os guarda-costas, no apartamento conjugado, estão desmaiados. Lady dera-lhes champanhe soporífera em um cálice compartilhado.

Macbeth procura uma melhor posição, calcula a distância até a jugular do chefão e dispara sua silenciosa e mortal adaga. Tem certeza que acertou em cheio. E vai saindo... Olha da porta para conferir e percebe um movimento estranho. Duncan tira a pistola debaixo do travesseiro e atira...

Como é que é? Nem quis saber se a adaga fatal matou o chefão ou se a bala da pistola acertou o alvo. Com o lápis, que sempre me acompanha nas leituras, escrevi em garrafais ao final da página 132 meu desabafo. Joguei o livro na caixa de descarte. 

Peguei os outros dois do mesmo autor e os joguei junto. Ao vê-los caindo, deu-me uma pena! 

Peguei de volta os dois últimos (A sede, e A Estrela do Diabo), achei que tinham pouca culpa (somente eram do mesmo autor). Jo Nespo vendeu 40 milhões de exemplares pelo mundo; saiu da longínqua Noruega e alcançou Aracaju com suas obras. Talvez merecesse uma nova chance. E mais respeito. 

Ora! Ora!

 (por Antônio FJ Saracura, Aracaju 2022jul30)

Nota:

Minha esposa, Cida, que é leitora voraz, leu, depois “A Estrela do Diabo”, um dos dois salvos do descarte, e gostou.

 


quinta-feira, 28 de julho de 2022

A CARTILHA DO SILÊNCIO, Francisco J. C. Dantas

 

A CARTILHA DO SILÊNCIO, Francisco J. C. Dantas, Companhia das Letras, 1997, ISBN 978-857-164-634-6

 



(1915 – Dona Senhora)

Ela se prepara para uma longa viagem: o pai está doente em Alagoas e cobra sua presença. Ela faz um inventário inteiro de sua vida íntima... Em casa com o marido Romeu e, socialmente, com agregados e parentes. O marido, a quem visceralmente está ligada em todos os sentidos, pode passar um século com a cara virada para a parede tesando a esposa ou arrebatá-la às nuvens em fogoso coito. Um bode no cio ou um bloco de gelo da patagônia chilena. Dona Senhora é “uma brasa acesa de jurema assoprada” e senhora da palavra sem censura, dos gemidos felinos, e do direito de, nas primeiras setenta páginas, abrir a alma a se bater em mil tentativas para penetrar no enigmático Romeu.

Parece que o autor esteve presente no íntimo da personagem, anotando cada suspiro, para depois, criteriosamente, passar a limpo nessa Cartilha do Silêncio, uma obra singular, de personalidade própria, como são todas deste autor.

(1951 – Arcanja)

Corte abrupto e a máquina do tempo avança 40 anos para pegar esse “dínamo a esbanjar energia”, prática e eficaz, que é Arcanja, única sobrinha de Romeu que foi flagrada em uma visita a dona Senhora nos idos de 1915.

Em nova visita ao casarão, bem depois, pega o primo Cassiano Barroso (órfão de Romeu e dona Senhora, banidos por uma praga egípcia) com a boca aberta, desarmado. Manhosa e com firmeza, aplica-lhe uma chave de judô que o arranca do celibato encruado direto para uma cama de casal. Arcanja ganhou moral e, em sendo agora parte prejudicada, partiu pra cima do inventariante dos sogros, um desembargador canalha, chamado doutor Belisário, primo do seu tio Romeu. Foi a determinação e valentia de Arcanja que salvou a boa fazenda Varginha e o casarão da praça Olímpio Campos, que já estavam no sorvedouro que engolira a maior parte da fortuna deixada por Romeu.

Esse doutor Belisário me lembrou de relance (nem tanto relance) o professor doutor Jileu Bicalho Melão, com suas práticas escusas na Universidade onde era rei. E que foi devidamente espinafrado (eu acho que merecia mais) em “Sob o Peso das Sombras”, outra obra do mesmo autor, que você precisa ler logo. 

Dantas (estou agora com ele ao meu lado) tem esse dom de caracterizar personagens vilões com os quais teve o desprazer de conviver na vida. Há outros espalhados em sua obra, tomando merecidas porradas. (kkkk). A justa vingança que cabe ao escritor, que o faz como desobriga, mesmo correndo o risco de ser processado e condenado.

E voltando a Belisário, crápula inveterado, ficou muito rico passando a perna em um e outro, aproveitando-se da posição destacada que tem no Poder Judiciário. Comprava terra barata amedrontando as viúvas, com veladas ameaças de custas dispendiosas, impostos, multas, honorários de advogado. Tecia armadilhas nos entremeios dos conchavos, passando a perna em muita gente crédula ou temente, pois esse povo de Sergipe prefere perder do que brigar pelo que é seu, quando o ladrão é “poderoso”.

E a pequena Arcanja (apenas no físico) morre destruída por uma tuberculose quando a penicilina já estava disponível nos hospitais. Uma morte injusta como a de sua tia torta, que foi comida por piolhos e coberta de culpa, na Casa de Loucos, internada por Belisário, para poder roubar mais. E que a responsabilizou pela morte do marido, na cidade de Alagoas, para onde o casal viajou e foi surpreendido pela epidemia de cólera. A tal praga egípcia, que inventei acima.

(1955 - Remígio)

O natural seria que a camaradagem entre pai e filho, que durou até a adolescência, persistisse. Mas Remígio se afastou do pai, antes mesmo da mãe morrer. Sempre teimava em abandonar os estudos na faculdade de direito. O pai concordou para que o filho ficasse mais próximo dele na lida da Varginha. Deu o avesso.

(1964 Mané Piaba).

Fiquei amigo de Piaba com suas “defesas” impagáveis e seu panadiço amaguento.  Sujeito finório de mente aberta, sabe se safar de esparrelas, domina a esposa bruta sem tanta brutalidade. Cultiva e carrega ferramentas indispensáveis ao meio (de ricos quebrados e boçais) em que sobrevive, como a saboneteira maleável, muito mais eficaz do que essas que nossos bajuladores (em todas as classes) usam no cotidiano.

Ardiloso nas pelejas, até as de alto nível, como a sustentada com o rezador Zé Tintilo, que tem muito mais cultura e se arrombou. Piaba domina a arte da guerra: ataca com a arma certa no melhor momento. Além do que, é doutor em filosofia da vida. Cita os clássicos do setor com propriedade no seu (de doutor Piaba) jeito simples, fácil de entender.

 

 (1974 Cassiano Barroso)

Um homem prejudicado. Abstrato, com quase nenhum senso prático e gasta a vida com inutilidades; lê livros (sem método) e escreve. Poderia ser essa “Cartilha do Silêncio”, que é ele quem tem mais informações guardadas. Há sutis pistas deixadas que Mané Piaba certamente juraria que o livro de Cassiano fosse mesmo a Cartilha. Quebra a cabeça para trazer à baila os lanços que o esquecimento tenta esconder. E se queixa (como faz todo escritor, eu faço): “começo com a frase completinha na cabeça, feita e burilada na nascença. Mas enquanto vou passando o achado na linha do caderno, a tinhosa começa a se recruzar nos quatro cantos da cachola brincando de se esconder; de repente a mão estaca no meio porque deu um branco e esqueci de como ia findar”.

O filho é seu diploma de fracasso. Queria muito mais para Remígio (esse querer é sempre infinito). Acha pouco ele saber lidar com a Varginha, mesmo comemorando a esperteza na venda do garrote Lenço Fino ao carreiro Chichiu.

 

(1915 até os dias de hoje)

A terceira pessoa vem narrando a trama que esquenta e o personagem sai de seu mundo distante e vem mais para perto, assume a primeira pessoa, o que espanta, mas consegue a dimensão dramática que o momento requer. O que seria? Talvez recurso literário para esquentar a narrativa tornando-a mais intima e pessoal, como se o personagem se sentasse no colo do leitor.

E para onde foram as proparoxítonas que encompridam os tons, agridem com uma cauda besta a música da prosa e trava a língua do leitor? E os “çãos” que fazem zoada em vez de cantoria? Até os pavarotis, quanto mais os singelos trovadores, cortam esses rabos com o dente e nem por isso a palavra deixa de exercer sua missão (poderia ser missa?).

Há fluindo no livro uma riqueza de ditos soterrados há muito pelo inglês presente em cada rótulo ou pela gíria da malandragem que os filmes e a televisão espalham: Ficar moça velha encalhada ou então ir pra torradeira de mamona... A palavra da oralidade inculta quebra a pompa purista, como se no meio de baile de gala no palácio do rei, aparecesse uma bela mulata de mini saia e blusa cavada: Ponto de bala; ferrão no bem mole da bochecha; mãozinha boba; o pau comia no centro; vidinha rasa; cabeça comida de piolho; zumbido do mosqueiro; dedo inframado (afleumado). 

Escapam aqui e acolá surpreendem e revivem fantasmas conhecidos em outras jornadas: pegando um atalho pela mata do timbó; Tonho de Cazuza lazarento dando de beber ao cavalo piolhento e escamado na beira do chafariz; quando Graciliano Ramos escapou da cólera que matou meia Palmeira; o beco dos cocos e até o Morro do Bomfim, conhecido como hospital dessas doenças do mundo.  E muitas outras “coisinhas invisíveis” que passam a régua, dão um tiro para resumir a questão. 

Joias que pertencem ao mundo vivaz de Mané Piaba onde a inteligência flui sem borogodó nenhum.

Eu cheguei a pensar que a fazenda Varzinha era um nadinha, “talhada de terra alongada, como uma tripa de vaca metida em uma vara”, meio alagada, espremida entre a rodovia e nacos vendidos pela família nos apertos. Mas o inventariante Cassiano Barroso, sem parrança ou míngua, me diz na página 291, que essa Varginha “está reduzida a mil oitocentas e quarenta e duas tarefas. Já não passa de uma fazendola rendosa e meã, mas ainda vale um bom pedaço de dinheiro; é um bago de terra de primeiríssima e muito bem localizado”. Deu-me vontade de ir lá, qualquer dia, ver a “garroteira encalombada de gorda, de rego aberto nas costas”, e fazer umas provocações a Mané Sabiá, que deve estar ainda muito vivo, pois cabra assim não morre.

“A Cartilha do Silêncio” é uma construção bem arrumada, texto de bom calibre, palavras e alocuções consistentes. Adjetivos e advérbios redondos, sonoros pingos de mel de engenho, que rolam nas frases e que compõem prosa fácil de engolir até sem mastigação (poderia ser mastigos?). Uma leitura de planície que pode ser vencida até em ponto morto. Todo o irretocável conjunto conta a história de nosso povo se virando para sobreviver. O autor tem o dom de criar romances universais que nos mostram ao mundo de forma autêntica e definitiva. 

Por Antônio FJ Saracura, em Aracaju, 28 de julho de 2022.


xxxx

(Versão sucinta para o jornal)

A CARTILHA DO SILÊNCIO, Francisco J. C. Dantas, Companhia das Letras, 1997, ISBN 978-857-164-634-6.


 (1915 – Dona Senhora)

Ela se prepara para uma longa viagem: o pai está doente em Alagoas e cobra sua presença. Então faz um inventário inteiro de sua vida íntima... Em casa com o marido Romeu e, socialmente, com agregados e parentes. O marido, a quem visceralmente está ligada em todos os sentidos, ele pode passar um século com a cara virada para a parede tesando a esposa ou arrebatá-la às nuvens em fogoso coito. Um bode no cio ou um bloco de gelo da patagônia chilena. Dona Senhora é “uma brasa acesa de jurema assoprada”, domina a palavra sem censura, os gemidos felinos, e o direito de, nas primeiras setenta páginas, abrir a alma a se bater em mil tentativas para penetrar no enigmático Romeu.

(1951 – Arcanja)

Corte abrupto e a máquina do tempo avança 40 anos para pegar esse “dínamo a esbanjar energia”, prática e eficaz, que é Arcanja, única sobrinha de Romeu que foi flagrada em uma visita a dona Senhora nos idos de 1915. Em nova visita ao casarão, bem depois, pega o primo Cassiano Barroso (órfão de Romeu e dona Senhora, banidos por uma praga egípcia) com a boca aberta, desarmado. Manhosa e com firmeza, aplica-lhe uma chave de judô que o arranca do celibato encruado direto para a cama de casal. Arcanja ganhou moral e, em sendo agora parte prejudicada, partiu pra cima do inventariante dos sogros, um desembargador canalha, chamado doutor Belisário, primo do seu tio Romeu. Foi a determinação e valentia de Arcanja que salvou a boa fazenda Varginha e o casarão da praça Olímpio Campos, que já estavam no sorvedouro que engolira a maior parte da fortuna deixada por Romeu.

Esse doutor Belisário me lembrou, de relance, (nem tanto relance) o professor doutor Jileu Bicalho Melão, com suas práticas escusas na Universidade onde era rei. E que foi devidamente espinafrado (eu acho que merecia mais) em “Sob o Peso das Sombras”, outra obra do mesmo autor, que você precisa ler logo. 

Dantas (estou agora com ele ao meu lado) tem o dom de caracterizar personagens vilões com os quais teve o desprazer de conviver na vida. Há outros espalhados em sua obra, tomando merecidas porradas. A justa vingança que cabe ao escritor, e Dantas faz como desobriga, mesmo correndo o risco de ser processado.

E voltando a Belisário, crápula inveterado, ficou muito rico passando a perna em um e outro, aproveitando-se da posição destacada que tem no Poder Judiciário. Comprava terra barata, amedrontando as viúvas, com veladas ameaças de custas dispendiosas, impostos, multas, honorários de advogado. Tecia armadilhas nos entremeios dos conchavos, passando a perna em muita gente crédula ou temente, pois esse povo de Sergipe prefere perder do que brigar pelo que é seu, quando o ladrão é “poderoso”.

E a pequena Arcanja (apenas no físico) morre destruída por uma tuberculose quando a penicilina já estava disponível nos hospitais. Uma morte injusta como a de sua tia torta, que foi comida por piolhos e coberta de culpa, na Casa de Loucos, internada por Belisário, para poder roubar mais. E que a responsabilizou pela morte do marido, na cidade de Alagoas, para onde o casal viajara e foi surpreendido pela epidemia de cólera. A tal praga egípcia, que inventei acima.

(1955 - Remígio)

O natural seria que a camaradagem entre pai e filho, que durou até a adolescência, persistisse. Mas Remígio se afastou do pai, antes mesmo da mãe morrer. Sempre teimava em abandonar os estudos na faculdade de direito. O pai concordou para que o filho ficasse mais próximo dele na lida da Varginha. Deu o avesso.

(1964 Mané Piaba).

Fiquei amigo de Piaba com suas “defesas” impagáveis e seu panadiço amagador. Sujeito finório de mente aberta, sabe se safar de esparrelas, domina a esposa bruta sem tanta brutalidade. Cultiva e carrega ferramentas indispensáveis ao meio (de ricos quebrados e boçais) em que sobrevive, como a saboneteira maleável, muito mais eficaz do que essas que nossos bajuladores (em todas as classes) usam no cotidiano. Ardiloso nas pelejas, até as de alto nível, como a sustentada com o rezador Zé Tintilo, que possuía muito mais cultura e se arrombou. Piaba domina a arte da guerra: ataca com a arma certa no melhor momento. Além do que, é doutor em filosofia da vida. Cita os clássicos do setor com propriedade no jeito simples, fácil de entender.

 

 (1974 Cassiano Barroso)

Um homem prejudicado. Abstrato, com quase nenhum senso prático e que gasta a vida com inutilidades: lê livros e escreve, o que poderia ser essa “Cartilha do Silêncio”, que é ele quem tem mais informações guardadas. Há sutis pistas deixadas... Quebra a cabeça para trazer à baila os lanços que o esquecimento tenta esconder. E se queixa (como faz todo escritor, eu faço): “começo com a frase completinha na cabeça, feita e burilada na nascença. Mas enquanto vou passando o achado na linha do caderno, a tinhosa começa a se recruzar nos quatro cantos da cachola brincando de se esconder; de repente a mão estaca no meio porque deu um branco e esqueci de como ia findar”.

O filho é seu diploma de fracasso. Queria muito mais para Remígio (esse querer é sempre infinito). Acha pouco ele saber lidar com a Varginha, mesmo reconhecendo a esperteza na venda do garrote Lenço Fino ao carreiro Chichiu.

 

(Até os dias de hoje)

Eu cheguei a pensar que a fazenda Varzinha fosse um nadinha, “talhada de terra alongada, como uma tripa de vaca metida em uma vara”, meio alagada, espremida entre a rodovia e nacos vendidos pela família nos apertos. Mas o inventariante Cassiano Barroso, sem parrança ou míngua, me diz na página 291, que essa Varginha “está reduzida a mil oitocentas e quarenta e duas tarefas. Já não passa de uma fazendola rendosa e meã, mas ainda vale um bom pedaço de dinheiro; é um bago de terra de primeiríssima e muito bem localizado”. 

Deu-me vontade de ir lá, qualquer dia, ver a “garroteira encalombada de gorda, de rego aberto nas costas”, e fazer umas provocações a Mané Piaba, que deve estar ainda muito vivo, pois cabra assim não morre.

Parece que o autor esteve presente no íntimo da personagem, anotando cada suspiro, para depois, criteriosamente, passar a limpo nessa "Cartilha do Silêncio", uma obra singular, de personalidade própria, como são todas deste autor, é uma construção bem arrumada, texto de bom calibre, palavras e alocuções consistentes. Adjetivos e advérbios redondos, sonoros pingos de mel de engenho, que rolam nas frases e que compõem prosa fácil de engolir até sem mastigação (poderia ser mastigos?). Uma leitura de planície que pode ser vencida até em ponto morto. Todo o irretocável conjunto conta a história de nosso povo se virando para sobreviver. O autor tem o dom de criar romances universais que nos mostram ao mundo de forma autêntica, definitiva, digna. 

 Por Antônio FJ Saracura, em Aracaju, 28 de julho de 2022.