domingo, 25 de abril de 2021

TEMPO DE TRAVESSIA, Francisco Guimarães Rollemberg

 

TEMPO DE TRAVESSIA, Francisco Guimarães Rollemberg, J. Andrade, 2021, 208p, isbn 978-65-993739-6-1

 



Recebi um presente especial: o novo livro de Francisco Rollemberg, também de memórias, como o que acabo de ler, de outro médico, J Fraga Lima: “Minha passagem pela Vida.”

Mais uma história de vida vitoriosa, de que precisamos para nos alentar nessa pandemia tétrica. No livro, entretanto, Francisco se atém mais a momentos especiais que viveu, a livros que leu, a pessoas/personagens que o marcaram, a atividades públicas que exerceu. Não é ainda o livro cronológico que contará sua vida, passo a passo, na qual tive uma insignificante participação de paciente. Por volta de 1970, eu tinha 25 anos, ele me operou de fimose; operação urgente, imprescindível. Após o serviço feito, no próprio consultório (acho que o prédio do antigo hotel Pálace), ele pegou, com uma pinça, o courinho extirpado e o balançou à frente de meus olhos atônitos. “Quer levar ou dou ao gato?” Vi que sorria. Quando saí do consultório, recomendou: “Cuidado para os pontos não estourarem”. Ria novamente. 

Como controlar, dormindo, a fantasia do sonho erótico? Doutor Francisco teve que refazer os pontos com linha mais forte e a recomendação com mais ênfase.

“Tempo de Travessia” fala de Barreto Fontes, o lendário professor e inventor: o cafezinho batizado com conhaque, os dentes de cemitério, ele e os irmãos apelidados como "cerca" andante (eram todos altos e macérrimos); a “química” para o tesouro do Estado desaparecer...

De Carlos Chagas, o médico cientista... Vítima da inveja, esperou paciente o reconhecimento. Emprestou seu nome à doença que matava silenciosa e ignorada pela academia. O besouro foi desmascarado e contido. Casas de taipa viraram de alvenaria.

De Manoel Armindo Guaraná, outro médico, homem público e intelectual, que se eternizou como autor do “Dicionário Bibliográfico Sergipano”; estilo simples primando pela clareza; pra que mais?

Oswaldo Cruz, médico cientista, parelha e contemporâneo de Carlos Chagas. Luta inaudita para erradicar a febre amarela e malária em um País florestal, o Brasil. 

Walter Cardoso, mais um médico, este imortal da Academia Sergipana de Letras...

Há considerações oportunas sobre a Encíclica de Leão XIII: “Sobre as Coisas Novas” (Rerun Novarun); a questão do trabalhador frente ao capital, a Igreja descobrindo sua função social.

No meio dos médicos, dos cientistas e dos papas, entra Seu Ricardo de Aurelina, gostoso teatro de um momento em Laranjeiras simplória. E o testamento de Judas, resgate de nossos costumes autênticos: “Quedê a madrinha Deodata / como é que a senhora vai? /Nascendo neto aos cardumes / e nada de aparecer pai / e diga que mistério é esse / De onde é que eles saem?”

Tem Zózimo Lima com suas variações em fá sustenido que eu alcancei e li na Gazeta de Sergipe. A poesia do cotidiano que encantava, valia pelo jornal inteiro, sem tirar o valor de ninguém. 

E Murillo Melins, um santo vivo em nosso meio, cujo brilho nos ajuda a brilhar. Conseguiu trazer a boemia para as páginas do impagável “Aracaju Romântica que Vi e Vivi”, porque ele era a própria boemia.

Há uma justa homenagem a Antônio Valença Rollemberg, humilde comerciante das Laranjeiras de antanho, seu Toinho da Farmácia, pai do autor. A dona Cesartina, a primeira farmacêutica formada de Sergipe. A Luiz Antônio Barreto do instituto Tobias Barreto. A Garcia Moreno e seus “Doce Província” e “Cajueiro dos Papagaios”; e a Luiz Garcia, o governador de obras estruturantes e perenes.

Há considerações sobre o poeta do absurdo de Zé Limeira... Sobre a boa poesia de Eunaldo Costa... Como um poeta assim some no passado, tão ligeiro? 

Sobre si, Francisco Rollemberg reproduz a entrevista prestada a revista Somese, onde mostra seus sonhos, seus ideais e suas realizações nos vários segmentos onde atuou.

A segunda parte do livro apresenta um ensaio sobre o admirável Maquiavel, de “O Príncipe”.

A terceira parte mostra, de maneira sucinta, suas realizações como Deputado Federal e Senador, mandatos que exerceu com extremo zelo.

“Tempo de Travessia” é pequeno (206 páginas) mas traz conteúdo com a qualidade própria das grandes obras.

(Aracaju, 25 de abril de 2021, em plena pandemia do Corona Virus. Revisto em agosto de 2023. Por Antônio FJ Saracura).

 

domingo, 4 de abril de 2021

MINHA PASSAGEM PELA VIDA

 

MINHA PASSAGEM PELA VIDA, J. Fraga Lima, Gráfica J Andrade, 1983, 187 páginas, comprado no SEBO Natan

O valor de um livro de memórias para a família, conterrâneos/ contemporâneos é inestimável. Eu, que não vivi na época, senti-me distinguido, apenas porque minha terra e conterrâneos viveram momentos nas páginas de “Minha Passagem pela Vida”.

O autor, Fraga Lima, foi o quarto filho de uma prole de quatorze. Era comum famílias imensas na região rural carente de mão de obra para a agricultura e para a pecuária. Deus criava e o cinturão do pai e a palmatória (a Santa Luzia) dos professores ajeitavam desvios.

Fraga estudou nas escolas da Malhada Vermelha a tabuada dos vinténs e das patacas, que também se ensinava das Flechas de Itabaiana no tempo de minha mãe. Ela declamava e eu botei no conto (Final de Tarde) do livro “Tambores da Terra Vermelha”: cinco vinténs é um tostão ou cem réis / Trezentos e vinte réis formam uma pataca, novecentos reis é um patacão.

Fraga foi aluno do professor Abreu, valoroso mestre que manteve ativa sua escola nos quatro anos em que o governo da Bahia suspendeu o pagamento dos salários dos professores. Quase toda escola fechou.

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Depois de formado em Medicina pela Faculdade da Bahia, Fraga Lima foi em busca de um lugar para exercer sua clínica médica. Soube, por um amigo, que Itabaiana talvez fosse um bom lugar. Mandou carta ao farmacêutico de lá, que conhecera na faculdade em Salvador, Nelson Tavares da Mota. E logo estava hospedado no hotel de dona Maria Balbino. Começaram a aparecer os pacientes, pois na cidade não havia médico, o antecessor fora embora bem antes de Fraga chegar. 

No primeiro ano Fraga ganhou um presente. Gervásio Prata veio ocupar o cargo de Juiz de Direito e era um amigo de sua família em Paripiranga. Começou a namorar Marieta, filha do Juiz, que foi sua esposa a vida toda. Ficou em Itabaiana de marco de 1926 até fevereiro de 1932.

As melhores páginas do livro, a meu ver, mostram Itabaiana. Discorre sobre pessoas e casos que os mais velhos da cidade ainda guardam na memória: O julgamento de Maria Couro, que roubou uma esteira de certa senhora; Lampião arrodeando Itabaiana; caçadas de perdizes abatidas no voo com a espingarda Laporte herdada do sogro...

E nos apresenta o mitológico Bento Preto, do povoado Flexas, que está em meus livros também; Bento morava em um sítio junto à fonte Perpétua e era amigo de meu avô, Totonho Bernardino. Em “Os Tabaréus do Sítio Saracura” e em “Tambores da Terra Vermelha", Bento José de Carvalho ponteia como o homem mais sabido do lugar. Ele nasceu escravo e foi liberto ainda menino, pelo seu senhor, padre Francisco Antônio de Carvalho Lima, que vem a ser o pai de Francisco Antônio de Carvalho Lima Júnior, intelectual de destaque que é patrono da cadeira 11 da Academia Sergipana de Letras. Um dos filhos de Bento, Moisés, formou-se em Farmácia (Universidade da Bahia) e exerceu a profissão em Estância. No prédio onde moro em Aracaju, meu vizinho de Eduardo é neto de Bento Preto. 

Florival de Oliveira, Espiridião Noronha, Percílio Andrade, Paulo Cordeiro de Oliveira, Antônio Bezerra, Francisco Antônio Lima Junior (citado acima), Antônio Dutra de Almeida, João Brandão, Jovelino Rodrigues, Miguel Teixeira da Cunha (o pioneiro da fotografia)... Gente da alta de Itabaiana é eternizada nos casos contados por Fraga Lima. 

Também José Adhemar Carvalho, paraplégico, e gênio da música (várias peças) de uma família de grandes itabaianenses, como Sebrão sobrinho e Vladimir Souza Carvalho... E conta que, no dia do falecimento de sua irmã, Dalva, Ademar compôs o clássico ”O Adeus de Dalva” para acompanhar o féretro até o cemitério. Conferiu o efeito de sua composição e sofreu parada cardíaca. Tinha 26 anos de idade, faleceu no mesmo dia de Dalva.

E Fraga não esquece do lendário lagartense que mandou e desmandou em Itabaiana, Manuel Batista Itajahy. Também médico, casou com a filha de chefe político e entrou no ramo. Bem antes de Fraga Lima ter chegado a Itabaiana. Dr. Itajahy chegou a exercer a vice presidência da província de Sergipe. E Fraga discorre casos, alguns pitorescos patrocinados por Itajahy, como a proibição dos homens da roça virem a feira vestindo apenas ceroulas, que era a moda top.

Após seis anos em Itabaiana, Fraga Lima muda-se para Aracaju, onde foi professor catedrático do Ateneu Pedro II e chefe do serviço de profilaxia da Lepra (a partir de 1944). Em 1955, vai para o Rio de Janeiro ser o diretor do Serviço Nacional da Lepra.

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A partir da página 125, Fraga Lima escreve sobre suas convicções políticas, revela particularidades de sua transferência para o Rio de Janeiro, o livro sai do rumo retilíneo e cronológico.

A ocupação de Paripiranga pela Polícia Sergipana, em um simulacro de guerra de conquista medieval, em 1913, por ordem do General Siqueira de Menezes, presidente do Estado de então. Deu com os burros n’água. 

O seu colega de educandário que virou comunista. Antônio Bomfim, de Alagoinhas, e que se transformou em Adalberto Fernandes, chefe de uma célula que funcionava nas matas da Tijuca no Rio de Janeiro.

Teodora, a escrava que fora de seu avô e que criou a ele e aos irmãos. Teodora o curou da gagueira em menino: pegou-o pelos pés e o mergulhou de cabeça para baixo no purrão de água da chuva. (...)

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Minha Passagem pela Vida” anda pelo caminho normal dos livros de memórias que não pretendem ganhar prêmio literário, apenas deixar um testemunho de vida. Escrita simples, gostosa de ler, ideias bem encadeadas. Uma viagem pela vida do médico Fraga Lima. Raízes, família, tipos marcantes, momentos singulares. Sua luta, vitórias, e, ao final, a comemoração pela vida digna que teve. É um livro raro.

Este que possuo comprei no sebo de Natan da rua Lagarto e tem quarenta anos de manuseio. Fiz de conta que não me interessava e o trouxe por dez pratas. Ao ler, as folhas se soltaram e saíram voando pela sala. Vou ter que arrumar um encadernador nessa cidade de poucas artes.

(Antônio Saracura, Aracaju, 30 de março de 2021, revisão em setembro de 2023)