segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

MOINHO DE VERSOS, Massilon Silva,


MOINHO DE VERSOS, Massilon Silva, J. Andrade, 2017,116p, isbn 978-858-253-24-92


Eu encontrei o poeta Massilon Silva, pela primeira vez, na festa de instalação da Academia Sergipana de Cordel, ele era um dos imortais, e apenas o cumprimentei. Depois de algum tempo, na instalação da Academia de Letras de Pão de Açúcar, Massilon nos recebeu (a mim e a Domingos Pascoal de Melo) e se encarregou de nos apresentar aos desconhecidos imortais que fôramos prestigiar. Massilon era deles e, no primeiro momento, nem o reconheci, broco como eu sou.

Pão de Açúcar tem vínculos fortes com Aracaju. Muitos de seus filhos, inclusive Massilon, vivem aqui. Também o prefeito atual (Edvaldo Nogueira), além do Dr. Hamilton Maciel (que lê meus livros e prestigia os lançamentos que faço) e o intelectual Netônio (com quem me bati no começo de uma noite na livraria Escariz onde divulgo a literatura sergipana). Ele sempre passa ligeiro, acho que nem me percebe, mas, naquele começo de noite, de frente um para o outro, falamos de poesia e de poetas. E me disse que Massilon o impressionava pela lira ágil, pela boa qualidade do que escreve. Eu já era amigo do poeta nas redes sociais, então pude concordar com o ilustre “pãoaçucarano” sem titubeios (que é meu forte).

Coincidência ou não, dias depois, Massilon me mandou um presente inesperado, a mim que não me achava merecedor, pois nunca passei de econômicos comentários nas redes sobre suas postagens. E no presente, pura poesia, estava “Moinho de Versos” que agora, após dois anos de lido, reteço alguns comentários de pé de página , mais para dizer de minha satisfação em ter o poeta como amigo virtual, pelo menos.

O livro é curtinho tem 112 páginas. E ficou menor quando eu pulei o prefácio (quase um terço das páginas) pois acho que prefácio interessa mais a estudante de faculdade preguiçoso (era o meu caso) para copiar, injetar despistes e entregar ao professor como produção própria.

Moinho de Versos compõe-se de uma amostra da obra do poeta. “O aniversário do poeta” Zé de França é uma história ao gosto nordestino: com farrombas, lirismo, humor, solidariedade... As décimas em sete sílabas de “A verdade sobre o 21 de abril” traz a poesia do absurdo de Zé Limeira (uma marca de Massilon, pelo que tenho observado) e brinca com os heróis nacionais, misturando épocas, nomes e valores; atordoa e encanta com seus paralelos desalinhados. As quadras apuradas de “Para uma Jovem em Cidade” revela sua amizade filial com Aracaju, caracterizando o aspecto hospitaleiro de seu povo, além de passear pela história e pela arte daqui; e gozador, como cabe ao poeta cordelista, veste-se de político e promete que “Se eu fosse presidente (...) depois de tomar cachaça com caldo de sururu, fazia de Aracaju a Capital do Brasil”. E o ótimo “fotografia” deu-me uma ideia de fuga para escapar desses sonhos impossíveis que me habitam. E “Ombro amigo” recomenda o único remédio que se encontra fácil do mercado, “a malvada” (outra vez); o que mais fazer se a grande paixão foi embora? E o mote “poeta cante o que seu sinto que eu sinto e não sei cantar” gera quatro estrofes gostosas, o tanto certo para evitar monotonia. “O galope a beira mar” usa a redondilha menor e, à sombra de Zé Limeira, faz uma viagem singular pelo nosso jeito de ser.

Massilon veste a roupa de um povo bárbaro e valoroso e de uma terra malvada e bela nos decassílabos de “Quem sou Eu”; merecia ser transformado em ópera para assombrar os salões palacianos acostumados a chororô sem lastro seguro. E vem as “Quadras” ou trovas: coloquiais, boêmias, espirituosas... E o romance “O Homem que se casou com uma égua” ao estilo dos que meu avô lia nas Flexas de Itabaiana quando eu era menino e que me atiçava a voos sem fim; a fantasia que virou moda hoje, o cordel já cultivava largamente e o autor não relutou em transformar a égua Cupido na bela Madalena vestida de noiva.

Há mais ainda no pequeno livro que, por dentro, é grande. Sonetos parnasianos ou não, exercícios linguísticos, dizeres espirituosos, poemas modernos (sem rimas ou métrica)...

Massilon é professor, especialmente no que tange ao repente, à boa rima, as trovas inteligentes... É eclético, não está encaixotado, passeia pela poesia fagueiro, experimenta sem pejo os modos de mostrar a beleza de seu pensamento.

E “Moinho de Versos” é um pouco disso.

(por Antônio Saracura, revisão em 17 de fevereiro de 2020)


domingo, 16 de fevereiro de 2020

CARTA PARA MINHA MÃE QUE NÃO SABIA LER, Neusa Vieira Lima Steinback


CARTA PARA MINHA MÃE QUE NÃO SABIA LER, Neusa Vieira Lima Steinback, 2014, editora Perfil, 44 páginas, isbn 978-85-67215-07-5.



Quando estávamos dando os primeiros passos para a criação da Academia Itabaianense de Letras, Vladimir Souza Carvalho, o líder, apresentou o nome de Neusa Vieira para ocupar uma das cadeiras. Eu nunca ouvira falar dela. E ele disse que Neusa escrevera e estava publicando um livro de 40 páginas, mas que valia por uma biblioteca. Uma carta apenas, escrita para a mãe, já falecida na época, mas um poema sem igual.


Eu acreditei e, logo que o livro saiu, corri ler, já que era curtinho e tão rico.



Dona Maria (a mãe) aprendeu sem perceber e ensinou poesia sempre, não apenas aos filhos, mas às pessoas com as quais conviveu nos lugares onde morou. Sempre trazia, na ponta da língua, uma explicação óbvia paras as coisas inexplicáveis, uma história de assombração para apaziguar o coração assustado, ou uma história amena para colocar o filho ou quem ouvisse no ritmo desenfreado da vida. Poderia ser uma simples observação, mas que valia o tanto de uma porta aberta ao desconhecido tentador.

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“Fomos ao circo e eu dormi no seu colo. Perdi o espetáculo do trapézio que queria muito ver. Ao me acordar, o número já se acabara, e perguntei a minha mãe como fora. E ela respondeu: ‘O que fizeram? Eles voaram!’ Então achei que eles fossem anjos, e voei com eles.”

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“Minha mãe era parteira (da gente pobre) em Itabaiana. Um pai alvoroçado ou um menino de recado batia palmas à nossa porta e lá se ia dona Maria com sua maleta (amor, tesoura, álcool, panos limpo, bacia...). A mãe parida e o recém-nascido ficavam intrigados com o mundo belo e cheio de promessas que viam nos olhos da parteira. Mais tarde, ela retornava pra casa com um sorriso iluminado: ‘Deu tudo certo.’ E visitava a família, para ver se podia sanar alguma dificuldade. E conversava com doutor Pedro Moreno (santa parceria) sobre uma complicação que a preocupava”.

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“‘Tem um santo no céu que é o guardador do vento. O nome dele é São Lourenço. Se junto gritarmos o nome dele, ele mandará um pouco de vento para nós. Então gritamos: São Lourenço, abre a porta do vento, que eu estou quente!”. Era um verão escaldante e Itabaiana pegava fogo até no piscar de olhos! E, a seguir, um vento leve, menino, passou por nós fagueiro. E aquela tarde quente e abafada sumiu de nosso quintal”.

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“Os mendigos que subiam e desciam a estrada da serra paravam à nossa porta pedindo um adjutório. ‘Pode entrar, Vitório! Tome um gole de café e dê uma mordida no bolo. Como vai a família? Do que está precisando, mais urgente?” E Vitório não era mais o negro velho, perna torta, carapinha branca, pobre. Era um homem que falava da vida e até dizia que tinha sido escravo. Era um personagem vivo das histórias que ele contava. O respeito e a igualdade eram também para Felix e para outros que paravam à nossa porta, fossem quem fossem.”

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“Minha mãe não sabia ler nem escrever. Mas queria encabeçar a lista de doações para reconstrução da casa de um pobre da vizinhança que a enxurrada levou. Ela comandou a campanha desde que soube da tragédia. Pediu-me então que desenhasse seu nome em um papel, e, com grande dificuldade, copiou embaixo até que seu desenho ficou parecido. Pediu a lista e dos doadores, marcou seu nome, e sorriu satisfeita.”

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“Um dia, queimou os meus livros. Corria 1965, eu ainda morava não me casara, e muitos estavam sendo presos e torturados por possuírem livros em casa. Chorei indignada, minha fortuna virava cinza porque minha mãe não sabia ler. Quando os agentes de chumbo apareceram com ordens macabras, nem acharam a cinza, enterrada no quintal”.

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“Carta para minha mãe que não sabia ler” é um pleito de gratidão (e muita admiração) de uma filha consciente a uma mãe titânica que passou por cima de mil provações (como não saber ler em uma família letrada) galhardamente.

E a poeta Neusa Vieira conclui, dirigindo-se à mãe: “Faço-te renascer de mim, num parto sem dor, e te revisto de palavras, incenso de bons augúrios para este novo berço”.
E despachou para o Céu com cópias livres para circularem eternamente, essa memorável “Carta para minha mãe que não sabia ler”.

(Aracaju, revisão em 15 de fevereiro de 2020, por Antônio FJ Saracura).



NÃO É HORA DE CORRER PARA A CAVERNA , Neusa Vieira Lima Steinbach


NÃO É HORA DE CORRER PARA A CAVERNA , Neusa Vieira Lima Steinbach, Infographics, 2017, 127 páginas, isbn 978-85-9476-106-4



Muitos livros maravilhosos jamais foram lidos além da família ou da aldeia do autor. Como também muitos craques do futebol acabaram suas carreiras nas várzeas de seu bairro. Não tiveram a sorte de serem achados pelo agente que os projetasse ao mundo.
“Não é hora de correr para a Caverna” é um livro raro, surpreende pelo estilo gostoso e pela riqueza do texto, mesmo quando trata de temas corriqueiros, como a convivência no quintal da casa no discriminado Beco Novo, em Itabaiana, Sergipe, onde a autora passou a infância. Ainda é novo, foi editado em 2017, e terá, certamente, sua chance de ser descoberto, se não já não foi e eu não percebi. Além do mais, para ajudar nessa descoberta, a autora tem dupla nacionalidade. É sergipana da Academia Itabaianense de Letras, e catarinense, pelos laços de matrimônio, residente em Santa Catarina, na cidade de Francisco Beltrão. São duas várzeas abertas aos agentes caçadores de talento.

“Não é hora de correr para a caverna” é composto por 45 boas crônicas. E por uma apresentação esmerada de Anito Steinbach, professor, intelectual, poeta (tenho comigo Lâmina Desnuda), que mostra a crônica na literatura.

Crônica é um texto curto e leve e que ensina muito. Os cronistas ilustres, todos trafegaram fagueiros pela poesia, que é leve também e tem o dom acender lâmpadas que jamais se apagam: Machado de Assis, Olavo Bilac, Carlos Drumont de Andrade, Fernando Sabino, Clarice Lispector, Lêdo Ivo... e Neusa Vieira ganha destaque especial, pois Anito discorre sobre cada joia que “Não é hora de correr para a caverna” traz.

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Se você tiver a sorte de encontrar este livro, leia devagar. Se o sentido de uma palavra ou frase escapou, retorne e busque-o, não descarte como cascalho, o surpreendente diamante. Vista-se de missionário evangelizador e semeie o livro à mão cheia em seguida. Ele ensina a abrir janelas, a aponta caminhos novos, e pode mudar o mundo para melhor.
Neuza apresenta-nos crônicas que são poemas.

Ela confessa que descobriu a poesia quando tentou, pela primeira vez, segurar o vento e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos. E, mesmo segurando o vento, sentiu alegria e medo. Medo, porque ela (a poesia) parece alma de outro mundo, causa arrepios. Alegria, porque permite ver tudo mais longe e mais claro, ora com olhos de cego, ora com olhos de sol.

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As crônicas sabem a “quero ver Irene rir (Caetano Veloso) ou então “... entre Irene, você não precisa pedir licença” (de Manoel Bandeira). Se estes ou outro poeta vêm à porta é para nos apresentar um poema, que Neusa o faz com maestria, levando-nos a amá-lo também. Em poucas linhas, Manoel de Barros e Mário Quintana e muitos já são amigos íntimos, definitivos. Neuza é professora de corpo e alma e sabe como gravar uma lição na mente de seus ávidos alunos para jamais ser apagada.
Ela canta as pedras que sustentaram sua caminhada...

O quintal de fruteiras e lavoura (um sítio dentro da rua) no Beco Novo de Itabaiana, onde desvendou os mistérios da natureza, onde bebeu os primeiros pingos de chuva, ouviu o canto dos pássaros e a música da redondeza; a alma da pedra que foi uma minhoca viscosa e, instantaneamente, pela sabedoria da mãe singela, passou a ser o alma da terra inteira, permitindo que houvesse vida embaixo do chão; as festas de São João dos fogos e da fogueira; o cinema de Zeca e do padre com filmes que mostraram outro mundo além da serra, espetaculares; visto do batente da porta da frente, o desfile de um povo bárbaro, belo, variado, vindo das faldas da serra, trazendo cavalos carregados com produtos da lavoura e meninos barulhentos; aquele homem baixinho, branco e de rosto muito vermelho parecendo um galo garnisé, e mais Zé Carretel com os pés voltados para dentro como um curupira; os casamentos à cavalo, a noiva montada de lado correndo o risco de cair pra trás; as procissões, foguetórios, que ultrapassavam os limites do Beco Novo, indo até Frei Paulo, Cipó de Leite, o mundo todo; o serviço de alto falante da praça: de alguém para outro alguém, reecados que hoje o wsap matou a magia; o Largado que esperou, sofreu, insistiu até que o olhar de Ivone deu-lhe o céu; e seu Miguel Fagundes com o terno branco presente a todo velório (“mas faltei ao seu, pois o mundo me engoliu voraz”); a punga no carro de bois, trepada no requevem como menino macho, viajando ao som de violinos escondidos nos eixos de braúna, até a bodega de seu Antonino, último limite permitido, depois dali, eram os ermos dos dragões e de abismos tenebrosos...

E, especialmente, o namorado estrangeiro, por isso discriminado, que o destino lhe mandou para a vida toda... Uma mão vindo do outro lado do oceano pousou na sua e acendeu todas as lâmpadas instaladas no seu mundo.

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O livro é um canto de louvor à realidade do dia a dia, desde as brincadeiras e assombrações de criança, passando pela longa e gratificante missão do magistério, pela vida sempre alegre e triste, pela interpretação da melhor literatura que o mundo produz...

Neusa mostra-se incansável em se extasiar ante a natureza das coisas e das pessoas, mas reage com energia às sombras turvas que as redes sociais, que as falsas doutrinas, que o comodismo, que a discriminação e a empáfia, criam na mente das pessoas.

A caverna é um local seguro onde nada precisa acontecer realmente. Basta imaginar. Tem o poder de criar mundos de ilusão, mas o homem precisa tirar os sapatos e deitar na terra molhada e abrir os braços. Enfrentar a realidade e usufruí-la intensamente. Nada de correr para a caverna outra vez.

(Por Antônio FJ Saracura em 2018, revisada em fevereiro de 2020)


Post scriptum: “Quem é você para derramar meu Mungunzá" inclui Antônio Saracura no time dos autores cabras da peste que cantam o Nordeste valoroso, orgulho do meu Brasil. Obrigado pela honra (Saracura).