sábado, 18 de julho de 2020

ANTÔNIO JOSÉ GOES, uma vida missionária de pioneirismo


ANTÔNIO JOSÉ GOES, uma vida missionária de pioneirismo e de dedicação aos Yanomani do Amazonas, Leonardo Ferreira de Almeida, 2020, Criação Editora, isbn 978-65-990483-7-1.


O padre Antônio José de Góes seria um herói brasileiro sergipano, itabaianense esquecido até de seus conterrâneos. Mais um! Apenas conhecido no nicho religioso dos salesianos, que deve estar entulhado de heróis, sendo padre Antônio mais um. Caso esse oportuno livro não existisse.


Quando ouvi falar de que um sobrinho de Nandinho de Sizino (que é meu amigo, lê meus livros e ainda os dá de presente em aniversários), chamado Leonardo Ferreira de Almeida, estava escrevendo um livro sobre padre de Itabaiana, Antônio José de Góes, que catequizou índios no Amazonas eu vi um erro: não seria padre, mas frade. É que eu desfrutava (e ainda desfruto) da amizade de um homônimo, frade, que atuou no Amazonas catequizando índios, também nascido em Itabaiana. Conversei com o autor e ele me garantiu que eram dois santos distintos.

Mas que Itabaiana é essa, meu Deus? De tudo que é bom e que outros lugares tem um ou nenhum, ela tem dois ou mais.

Deixando o frade (ele merece um livro igual e ainda vive enclausurado no Convento do Santo Antônio lendo a boa literatura, inclusive a minha, só lhe falta Pássaros do Entardecer), navego pelo trabalho de pesquisa (este livro), apresentado de maneira clara, revelando a surpreendente vida do padre Antônio José Góes.

O padre nasceu no povoado Pinhão, em 1918, quando o Pinhão era o coração de Itabaiana. Ordenou-se padre salesiano aos 27 anos, em 1945. Exerceu várias funções na cadeia educativa salesiana pelo Brasil até que, em 1946, foi designado para a escola de Tupiraquara, atualmente, Santa Isabel do Rio Negro, no Amazonas.

Sete anos decorridos, em setembro de 1952, soube que índios selvagens (macus do mato) haviam sido contatados por caboclos navegadores. A informação foi levada aos salesianos de Tupiraquara. Deus conduziu os caboclos. Padre Antônio era o diretor na escola resolveu embarcar com os navegadores para a região do pico da Neblina, a um encontro já marcado para dois meses à frente.

Mas os índios não estavam lá no dia marcado. Precisaram ser caçados por vários dias na selva...

Assim começa a obra missionária do padre Antônio José de Góes até a morte prematura, em 27 de fevereiro de 1976, com 57 anos de idade, 30 de sacerdócio e 22 de dedicação missionária aos índios Yanomamis.

O livro narra epopeia nesses 22 anos. Há aventura, há derrotas, vitórias e muita fé em Deus. É um resgate respeitável feito em variadas fontes: jornais da época; arquivos da congregação; escritos do própria padre; filmes, como o documentário, “Meu caminho é o rio”, feito por visitantes estrangeiros; memória dos sobreviventes (através de entrevista); a família (parte ainda mora no povoado de origem e a outra dispersou-se pelo mundo, inclusive um irmão do padre Antônio, também salesiano, padre Paulo Leandro de Góes, outro irmão, a freira Josefa Germana).

Sublinhei algumas passagens na leitura  que mostram o tamanho do personagem (Padre Antônio) e a portentosa obra que ele, pela congregação salesiana, executou nas brenhas no Brasil.

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“Quando eles começaram a confiar em mim, me levaram para conhecer sua aldeia”.

O começo foi muito difícil com muita desconfiança e perigo. Os Yanomanis viviam guerreando por caça, por mulheres e iam se dizimando uns aos outros. O padre Antônio virou o grande chefe, aquele que aconselha e mostra o caminho certo. Ele se destacava pelo seu porte, pela barba longa de capuchinho, até entre os estrangeiros que visitavam a selva. E mais pela fé, pela determinação, pela amizade que semeava, pelo respeito com que tratava os índios e os auxiliares na sua missão. 

Recebeu visitantes estrangeiros (biólogos, botânicos, antropólogos, cinegrafistas, que sempre andam pela selva) e mereceu deles consistente registro nos livros que escreveram ou nos filmes que rodaram; foram importantes fontes para essa obra. 

A orientação do Concilio Vaticano II com seu decreto “Ad Gentes” sensibilizou o padre Antônio que, assim, encontrou campo propício para sua catequese.

E o Pico da Bandeira com seus 2.891 metros na Serra do Caparaó perde a primazia de ser o mais alto do Brasil. O Padre Antônio morava no sopé do Pico na Neblina (3.100 metros) desde oito anos antes de chegarem os demarcadores, que ele ajudou. A linha que divide o Brasil da Venezuela deixa, por apenas 687 metros, o Pico da Neblina do lado do Brasil.

Padre Antônio celebrou missa embaixo de árvores, em palhoças improvisadas no meio da floresta. Sempre que viajava levava seu kit sagrado, com altar, cálices, hóstias e outros apetrechos usados na cerimônia.

Muitos índios Yanomanis têm sobrenome Góes, apenas em consideração ao grande chefe que curava doenças, que ensinava a ler, que dava bons conselhos aos chefes, que os ensinava a plantar e colher nos tempos de fome, que os tratava com dignidade. No batismo, eles mantinham o nome Yanomani e acrescentavam sobrenomes de seu gosto.

Padre Antônio participou das cerimônias indígenas como se fosse também um pagé, cheirando o Paricá, e acompanhou os Reahus, que é a cremação dos corpos mortos, como se fosse um índio. Os yanomanis queimam os mortos e comem a cinza com mingau de banana, em grandes festas.

“Eu sou um homem do mato, eu sou um homem da natureza. Então eu vivo com meus índios, foi isso que eu quis pra minha vida. Para isso me ordenei”. Padre Antônio viveu na selva por ideal e por prazer. Foi Feliz, pena que faleceu tão cedo.

Através das ondas do radioamadores, no que se tornou usuário exímio, trouxe remédios aos doentes, chamou helicópteros para salvar índios picados de cobra venenosa, trouxe mantimentos. O radioamador, nesse mundo imenso e silencioso, que era então, faz com que a dor ou a alegria de um seja sentida por todos.

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Mesmo sendo um livro reportagem, uma dissertação acadêmica (poderia ser), li com gosto, com orgulho de que filho de Itabaiana, mais um deles, mesmo sem o reconhecimento oficial da igreja (ainda), é um taumaturgo;  seria um santo da Igreja.

E, na última página, escrevi com minha letra ligeira, ilegível dois dais depois, com o lápis me acompanhou na leitura, “Parabéns, bela e útil obra!”

(Aracaju, 2020jul18, por Antônio FJ Saracura).

terça-feira, 7 de julho de 2020

A VIDA ME QUER BEM, Amaral Cavalcante



A VIDA ME QUER BEM, crônicas da vida sergipana, Amaral Cavalcante, 2019, Edise, 356p, isbn 978-85-53178-45-2




Amaral Cavalcante é um cronista esmerado, mago das palavras e sua obra (prosa ou poesia) trata de temas corriqueiros, do dia a dia, como até sugere o subtítulo do recente livro “Vida me quer bem”, que ora resenho. É um livro massudo mas não representa nem um décimo da coleção de crônicas geniais que Amaral espalhou pelos jornais e revistas e redes sociais, desde garoto quando veio de Simão Dias para Aracaju.




Eu convivi com Amaral desde muito cedo quando trabalhei na imprensa (Jornal A Cruzada e na Rádio Cultura). Conviver é uma força de expressão, porque meu mundo era o católico quadrado, o que convinha a um ex seminarista. Ele era do mundo alternativo, dos pecadores, da boemia, que circulava em volta dos jornais leigos. Mesmo assim, estivemos juntos na criação do Clube de Cinema de Sergipe, pelos idos de 1967, com mais meia dúzia de cineastas e críticos de cinema.

Depois, quando retornei do mundo da tecnologia da informação, e,  por volta de 2008, e publiquei meu primeiro livro Os Tabaréus do Sítio Saracura, reencontrei Amaral, tido e sido como a melhor pena da cidade.

E mais à frente, com a Cumbuca senti que ele me acolhia com muita consideração. Na Cumbuca (a cara de Sergipe sério) eu tive o prazer de estar em suas páginas por algumas ocasiões. Recentemente, ele me deu, na edição de dezembro último, 6 páginas artisticamente trabalhadas para mostrar “Os Tabaréus do Sítio Saracura”. Não me lembro de ter visto outro livro sergipano ganhar tão nobre e grande exposição em todas as edições (este é o oitavo ano da revista). Talvez haja, entretanto, para mim o que valeu foi o que me coube. É o que devo ligar.

E ontem, às 11:49 da manhã, Amaral postou de seu punho no Messeger para mim "Grande Saracura. Meus parabéns", pelo meu aniversário.  Eu nem imaginei que ele estivesse doente, eu nem agradeci.

O livro  “A Vida me quer bem” está segmentado (foi organizado pela professora Maria Rosineide Santana, que recolheu as crônicas nos velhos jornais) em quatro partes:
Primeiro, “O Mundo doce de açúcares e memórias” contem 35 peças da melhor qualidade que, pelos títulos se depreende o conteúdo: Aventuras na pra Formosa, Os cheiros do sabão de alcatrão, na Bodega de seu Cipriano, Alçapão de pegara sanhaço...
Segundo, “A Vida me Quer Bem” com 28 obras primas e que falam do dia a dia, do ensaio na vida, da descoberta dos rumos voláteis, das pessoas que sempre encontramos: E os títulos cumprem a mesma missão do grupo anterior, vou citar três: Um brinde a Santo Souza, o jornalista Zeca Deda, Em busca do coração de Luiz Antônio, A sombra etílica...
O terceiro, “Guarda de Inúteis segredos” e consta 25 crônicas antológicas. Títulos para instigar o gosto. Antigos carnavais, aquilo se chama beiju, no Colodiano, em cima de um caminhão.
E o quarto e último, “De bar em bar” são 26 crônicas, e tem a ver mais com a vida boêmia, as homéricas bebedeiras. Alguns dos títulos imperdíveis: Do Vaqueiro ao Manequito; penetrando na Atlética, o Cacique Chá, Gosto Gostoso e a boate de Lourinha.

Excerto de O Colodiano (Pagina 201) que pertence ao terceiro segmento: “Guarda de Inúteis segredos”.

Era só descer do ônibus no terceiro ponto da 13 de julho e embarcar nas canoinhas de tábua até o outro lado. O Colodiano, território sem incômodos da lei, oferecia maconha livre e grandes baratos. Era o território livre da contracultura dos anos 1970, bem ali, pertinho dos bens bons da cidade, Mas distante da repressão que nos incomodava.
(...)
Lá dando bola com a contravenção, vivemos a marginália dos anos 70 na maior “naice”. Cabeça feita, depois do futebol, um peixe torrado aqui, um guiamun cevado, ou comer uma carne frita, feitinha na hora mesmo. Com farinha e pimenta custava poucos cruzeiros. Caro, e de grande valor, era o respeito de cada um por fada cada qual no território livre do Colodiano.
O Colodiano, hoje bestamente chamado de Coroa do Meio, é uma ponta instável, sedimentada de marés malucas, que pegam terra da Barra dos Coqueiros e a jogam para cá.”
(...)
Ao final do livro, foram incluídos depoimentos sobre o autor de personalidades da terra: Ilma Fontes, Jorge Carvalho Nascimento, Luciano Correia, Marcelo Deda Chagas, Marcos Cardoso, Rian Santos, Silvia Leroy, Terezinha Oliva.
O design do livro é de Germana Gonçalves Araújo, a apresentação de Carlos Cauê, e o prefácio de Jeová Santana.
Amaral cultivou uma literatura alegre, chistosa, de fino acabamento. Cada crônica é uma tela de Joel Dantas (vocês precisam conhecer esse pintor). Um pouco indecente como é a vida, como foi sua vida de jovem boêmio zoando em Aracaju. Com farras, drogas e anarquia. Mas tudo dentro de razoável, nada que agrida sequer a um casto seminarista ou a uma aluna interna de colégio de freira.
Amaral completaria 74 anos no próximo dia 11 de julho.
Vocês estão dando muita sorte, porque o livro de Amaral, “A Vida me Quer bem” está à venda nas lojas Escariz de Aracaju.

(Aracaju, 07 de julho de 2020, por Antônio FJ Saracura, na quarentena da Pandemia dos Corona Virus que matou Amaral ontem à noite).