TORTO ARADO, Itamar Vieira Junior, 2019,
São Paulo, Todavia, 1. Edição, 264 páginas isbn 978-65-80309-31-3
Um tiro simples, certeiro, fatal. Quase silencioso, mas que assombra, encanta, mata. Tudo naturalmente como a vida: amarga e alegre, sempre sofrida.
"Torto Arado" é a história de uma família, que é também de um povo, os negros no Brasil que continuaram escravos (e ainda continuam) em todo canto, após a abolição. Fazendas, favelas, periferias, bairros-guetos... Um ou outro consegue furar o bloqueio acachapante dos “arianos”, que muitas vezes são os próprios negros branqueados, haja visto o Senhor Salomão.
A história se desenrola em uma fazenda (Águas Pretas) no interior da Bahia, em época recente, pois já havia sido reconhecido o direito à aposentadoria do Funrural, que começou por volta de 1971, para amparar os idosos escravos do campo. Governos escravocratas recentes têm revogado este direito justo, implantando obrigações impossíveis de serem cumpridas. Como recolher o INSS, se o salário do trabalhador rural comum, quando consegue um dia de trabalho, tem o valor de um quilo de carne com osso na feira?
Então, "Torto Arado" conta a história de
um Brasil atual.
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Há as crenças que elevam o espirito e faz o homem forte para enfrentar adversidades. "Que os caboclos e os guias o acompanhem. Sete-serras, Mineiro, Marinheiro, Nadador, Cosme e Damião, Pombo Roxo e Iansã"; há ervas colhidas no mato que curam; há o respeito à história que enraíza o homem ao chão onde vive...
Crianças tímidas se escondem atrás dos pais na presença de estranhos; mães repreendem os filhos e pedindo silêncio com o dedo em riste, psius e olhos arregalados;
Escravos levam as moças das casas dos pais para serem suas escravas, infernizam seus dias, batem nelas e até as matam... A cada hora, uma maior agonia ocorre.
Depois que Belonísia se deitou na cama com o marido sentiu nada que justificasse seu temor. Era como cozinhar e varrer o chão, ou seja, mais um trabalho. Se fosse apenas deitar.
Zeca Chapéu Grande, boa mão para plantação, senhor das rezas e dos remédios contra o bicho comichão, recebe o Velho Nagô, habitante das Águas Pretas desde o tempo dos diamantes, nas noites festivas de Jarê. É Nagô que lhe ensina a cura para almas atribuladas.
Salustiana Nicolau (Salu) é protegida pelos encantados, aparadora de todos os meninos do lugar e conhecedora das ervas milagrosas. Maria Miúda é também Santa Bárbara Pescadeira quando montada pelo Encantado. Maria Cabocla se faz de índio para escapar da discriminação maior que sofreria por ser negra. Ela cedeu ao afeto da muda que a defendeu, mas preferiu a truculência do pai de seus filhos. As gêmeas Crispina e Crispiniana disputam o mesmo homem e “vivem num eterno movimento de afeto e rancor, que faz parte de seus dias até o fim de suas vidas”.
***
Aparecido sentiu na garganta o punhal espetando e quase perde a esposa para a muda Belonísia. Tobias abaixou o relho cheio de direitos ante o olhar de fogo da esposa acuada, e depois, bêbado, perdeu o rumo de casa e tombou com um tiro.
E Salomão, o novo dono da "Águas Pretas" mandou matar Severo, pois este abria os olhos do povo espoliado. Pagou caro. Em suas rondas noturnas, foi desviado para vereda do fosso cavado pelo encantado Santa Bárbara Pescadeira com a ajuda de Belonísia. Armadilha de pegar onça. O cavalo recuou e ele caiu pendurado na borda instável. O fio afiado do punhal cortador de língua o degolou antes de descer ao inferno.
Estela, Ana, Domingas, Inácio, Isidoro,
Saturnino, Donana, Tião, dona Tonha...
Personagens fortes, como um bom romance deve ter.
“Torto Arado” é livro que vale a pena ler.
Aracaju, 20 de agosto de 2021, Antônio FJ Saracura