NIKETCHE: UMA HISTÓRIA
DE POLIGAMIA - Paulina Chiziane. — São Paulo : Companhia das Letras, 2004. ISBN
85-359-0471-9 1. Ficção
moçambicana (Português) I. Título. 04-0970 CDD-869.3
O romance se
encerra com o marido polígamo (Tony) diante esposa (Rami) com a qual casou na
igreja e no cartório, cheio de arrependimentos, mas nem tanto assim. E Tony
fala: “Queria dizer-te palavras de arrependimento; mas um homem não se
arrepende., tudo o que faz é sempre bem feito;. Gostaria de dizer-te que és uma
grande mulher; também não posso, as mulheres são sempre pequenas. Queria também
dizer que confio em ti; mas também não me é permitido, os homens devem
desconfiar sempre das mulheres, e as mulheres devem confiar sempre nos homens. Hoje
queria violar as normas e dizer que te admiro e de ti tenho orgulho; nem isso
posso fazer, as mulheres é que devem sentir orgulho dos seus maridos e nunca o
contrário, mulheres é que devem admirar os seus homens e nunca o contrário. Hoje eu quero
chorar, Rami; deixa-me chorar”...
E Rami o deixa
chorar e faz com que chore mais ainda quando lhe confessa que o filho que traz no
ventre é de Lewy, irmão de Tony, que a possuiu por ordem da tradição, o Kutchinga
de Levirato, que é a obrigação ou
direito da viúva dormir com um escolhido entre os parentes do marido morto.
Quem mandou Tony
falecer de mentira para escapar de tanta esposa o querendo?
Niketche é a dança do amor, na língua de Zambézia e Nampula. E o livro
começa com Rami atribulada dentro de casa, precisando do marido para cuidar de
um problema fácil pra qualquer marido resolver. Um de seus cinco filhos quebrou
o vidro do carro de um vizinho com uma mangada. O vizinho pede providências. E Rami se dá conta
de que o marido nunca está em casa, só de vez em quando, para uma noite de sono
ou pagar as contas. Vinte anos de
casado e apenas cinco de convivência decente.
Rami sabe que ele
tem namoricos fora de casa, pois todos os homens possuem mais de uma esposa em
Madagascar. Mas agora percebe que perdeu de vez o marido. E resolve tê-lo de volta
para cuidar também das encrencas que os filhos arranjam com a vizinhança. “Com
o marido em casa os ladrões se afastam. Os homens respeitam. As vizinhas não
entram de qualquer maneira para pedir sal, açúcar, muito menos para cortar a
casaca da outra vizinha; com marido em casa, o lar é mais lar, tem conforto e prestígio”.
Faz seu plano de reconquista
e vai visitar cada uma das concorrentes. Sabe quem são e onde moram; que são
brabas, mas ela também é.
Chega cheia de direitos
na casa de Julieta e sai corrida embaixo de cacete. Julieta também já não vê
Tony há sete meses. Recuperada, Rami vai
à casa de Louise. Precisava entender o que ela tinha tanto que roubara o marido
de duas. Quis enquadrar e foi enquadrada. Terminou presa da delegacia. As duas.
Por brigarem na rua. Depois visita Saly,
a apetecida. E, finalmente, Mauá Sualé, a amada, a caçulinha, recém-adquirida.
Descobre que
pouco sabe sobre sexo, sobre vida conjugal, sobre sedução. Suas concorrentes estão
à frente. Na sua família católica a matéria é tabu; é pecado falar de sexo; as meninas casam tolas, sem conhecer os segredos de dar e receber prazer. Matricula-se
em curso de iniciação. Participa de muitas aulas, quinze, no total. Foi até às
aulas mais secretas, sobre temas de que não se pode falar. Estuda a teoria e
exercita a prática.
E vai ao macumbeiro
que tem poderes de engarrafar o marido e lhe entregar a tampa para ela tomar conta.
Vai à tia Maria e
escuta a lição histórica de que prosperidade se mede pelo número de
propriedades. A virilidade pelo número de mulheres e filhos. Abraão, Isaac,
Jacob, foram polígamos, não foram? Os nossos reis antigos também o foram e
ainda são. Que mal é que há?
Protesta. Precisa de seu homem só para si.
Vai ao pai e às tias gordas. Recebe um sermão:
“Se seu marido pasta fora, a culpa e tua. Não soubeste prendê-lo”.
Por fim, alia-se às
concorrentes, faz amizade com as mulheres do marido. "Se não posso ficar com
todo, pelo menos o dividamos igualitariamente".
Toma copos de
vinho a mais no aniversário de Louise e quebra o jejum e a fidelidade. Vito, o rapaz
bonito, se aproveitou. Até as viúvas tem o direito de aliviar o luto vez ou
outra e ela é quase viúva de marido vivo. Cria gosto e a
casa de Lu passa a ser sua. Vito é o segundo marido de ambas. Cama
compartilhada. Afinal, Lu é do norte e não liga para exclusividades. E Rami é filha
de Deus.
E para liberar o
bolso de Tony de tanta despesa (a que tem direito legal), Rami promove uma
revolução no harém. Desperta a vocação comercial em cada esposa. Incentiva
e promove a abertura de negócios para que tenham renda segura. Para que não precisem dar o corpo em troca do pão. Para terem uma previdência para o caso de morte
do marido, e não prestarem mais para o amor.
As mulheres progridem
para desespero de Tony, que não mais as tem sob o cabresto, dependentes de seu
bolso. Não mais mendigam seu amor. Podem agora arrumar
os homens que quiserem. E Lu já o faz.
E Tony se desespera, corre para Rami e
entrega os pontos. Não assim de um momento para outro. Leva tempo para o ferro
frio vergar, que é o ponto de ruptura (o comecinho desta resenha).
E a autora conclui
o romance de forma dramática com a improvável (pela lógica da trama) cena no
meio de chuvarada: Tony “era uma ilha de fogo no meio da água. Solto-o. Não
cai, mas voa no abismo, em direção ao coração do deserto, ao inferno sem fim”.
O livro nos apresenta costumes autênticos de povos africanos, costumes bagunçados pelas religiões europeias
(leia-se cristianismo) que chegaram trucidando valores milenares. Como
aconteceu (e ainda acontece) com os povos nativos no Brasil. É um discurso
empolgado e, como tal, se repete, insiste em pontos óbvios, os quais deseja
fixar no leitor. Há folhas demais envolvendo uma única fruta. São 252 páginas
que caberiam (a meu ver) na metade. Queixas, arroubos... E cansa aqui e ali quando poderia
empolgar sempre. Mas ganhou o
prêmio Camões de 2021, cem mil euros no bolso e, por baixo, cem milhões de novos leitores,
como eu, no mundo todo.
(Aracaju, 17 de
dezembro de 2021, por Antônio Saracura).
XXX
BIOGRAFIA DE PAULINE CHIZIANE
Nascida na cidade de Manjacaze, na Província de Gaza, cresceu nos subúrbios de Maputo, em Moçambique. Fez parte de uma família protestante, mas nunca foi batizada. Seu pai, um alfaiate e anticolonialista, exigia que, em casa, se falasse apenas chope, seu idioma de origem. Sua mãe foi uma camponesa. Estudou numa escola primária católica e, depois, em escolas secundárias, onde teve mais contato com valores ocidentais e desenvolveu seu conhecimento da língua portuguesa. Obteve um diploma da Escola Comercial em Maputo. Casou-se aos 19 anos, separando-se poucos anos depois, e teve dois filhos.
Realizou estudos de linguística na Universidade Eduardo Mondlane. Na juventude, participou ativamente da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique). Trabalhou com a Cruz Vermelha Internacional durante a guerra civil. Após o fim do conflito, trabalhou no Núcleo das Associações Femininas da Zambézia (NAFEZA). Atualmente presta consultoria ao desenvolvimento de projetos de ajuda internacional com foco em conflitos e defesa dos direitos das mulheres.
Afastou-se da política para se dedicar a vida literária, o que fez, segundo ela, devido a desilusão com os rumos assumidos pelo partido que ascendeu ao poder após a independência do país, em virtude das contradições sociais e da profunda opressão imposta às mulheres, que leva ao bloqueio de suas possibilidades de independência pessoal, coletiva e econômica.
Chiziane define-se “contadora de histórias”, e não romancista ou escritora. Ela estreou na literatura em 1984, quando publicou crônicas nas revistas Domingo e Tempo. Escreveu a seguir diversos romances consagrados, como Balada de amor ao vento (1990), Ventos do apocalipse (1993), O sétimo juramento (2000) e O alegre canto do perdiz (2008).
Niketeche: uma história de poligamia (2002) garantiu-lhe o Prêmio José Craveirinha, entregue pela Associação Moçambicana de Escritores ao melhor romance do ano. Neste romance, abordou a questão da “poligamia oculta”, presente numa sociedade na qual as mulheres são dependentes dos homens. A trilogia de contos As andorinhas (2008) centra-se no imperador Ngungunhane, no líder da independência Eduardo Mondlane e na atleta olímpica Lurdes Matola.
Sua literatura denuncia a marginalização das mulheres moçambicanas e contempla dignamente as diferentes esferas culturais moçambicanas, sendo um instrumento de (re)conciliação entre elas.
BIBLIOGRAFIA
APA, Livia. “Paulina Chiziane”. In: AKYEAMPONG, Emmanuel K.; GATES JR., Henry Louis (dir). Dictionary of African Biography. Oxford University Press, 2012, v. 2, p. 88-89.
CHABAL, Patrick. Paulina Chiziane. In: IDEM. Vozes Moçambicanas – Literatura e Nacionalidade. Lisboa, Portugal: Vega, 1994, , p. 292-301.
DIAS MARTINS, Ana Margarida. Niketeche, a Story of Sucess. Ellipsis, v. 7, p. 109-137, 2009.
DIOGO, Rosália Estelita Gregório. Paulina Chiziane: as diversas possibilidades de falar sobre o feminino. Scripta, v. 14, n. 27, p. 173-182, 2010.
TEDESCO, Maria do Carmo Ferraz. Narrativas da moçambicanidade: os romances de Paulina Chiziane e Mia Couto e a reconfiguração da identidade nacional. Tese de doutorado (História), Universidade de Brasília, 2008.
Atualizada em: 28/01/2021
https://www.ufrgs.br/africanas/paulina-chiziane-1955