MINHA PASSAGEM PELA VIDA, J. Fraga Lima, Gráfica J Andrade,
1983, 187 páginas, comprado no SEBO Natan
O valor de um livro de
memórias para a família, conterrâneos/ contemporâneos é inestimável. Eu, que não
vivi na época, senti-me distinguido, apenas porque minha terra e conterrâneos viveram
momentos nas páginas de “Minha Passagem pela Vida”.
O
autor, Fraga Lima, foi o quarto filho de uma prole de quatorze. Era comum famílias
imensas na região rural carente de mão de obra para a agricultura e para a
pecuária. Deus criava e o cinturão do pai e a palmatória (a Santa Luzia) dos
professores ajeitavam desvios.
Fraga
estudou nas escolas da Malhada Vermelha a tabuada dos vinténs e das patacas,
que também se ensinava das Flechas de Itabaiana no tempo de minha mãe. Ela
declamava e eu botei no conto (Final de Tarde) do livro “Tambores da Terra
Vermelha”: cinco vinténs é um tostão ou cem réis / Trezentos e vinte
réis formam uma pataca, novecentos reis é um patacão.
Fraga
foi aluno do professor Abreu, valoroso mestre que manteve ativa sua escola nos
quatro anos em que o governo da Bahia suspendeu o pagamento dos salários dos
professores. Quase toda escola fechou.
***
Depois
de formado em Medicina pela Faculdade da Bahia, Fraga Lima foi em busca de um
lugar para exercer sua clínica médica. Soube, por um amigo, que Itabaiana
talvez fosse um bom lugar. Mandou carta ao farmacêutico de lá, que conhecera na
faculdade em Salvador, Nelson Tavares da Mota. E logo estava hospedado no hotel
de dona Maria Balbino. Começaram a aparecer os pacientes, pois na cidade não
havia médico, o antecessor fora embora bem antes de Fraga chegar.
No
primeiro ano Fraga ganhou um presente. Gervásio Prata veio ocupar o cargo de
Juiz de Direito e era um amigo de sua família em Paripiranga. Começou a
namorar Marieta, filha do Juiz, que foi sua esposa a vida toda. Ficou em
Itabaiana de marco de 1926 até fevereiro de 1932.
As
melhores páginas do livro, a meu ver, mostram Itabaiana. Discorre sobre pessoas
e casos que os mais velhos da cidade ainda guardam na memória: O julgamento de
Maria Couro, que roubou uma esteira de certa senhora; Lampião arrodeando
Itabaiana; caçadas de perdizes abatidas no voo com a espingarda Laporte herdada
do sogro...
E
nos apresenta o mitológico Bento Preto, do povoado Flexas, que está em meus
livros também; Bento morava em um sítio junto à fonte Perpétua e era amigo de
meu avô, Totonho Bernardino. Em “Os Tabaréus do Sítio Saracura” e em “Tambores
da Terra Vermelha", Bento José de Carvalho ponteia como o homem mais
sabido do lugar. Ele nasceu escravo e foi liberto ainda menino, pelo seu
senhor, padre Francisco Antônio de Carvalho Lima, que vem a ser o pai de
Francisco Antônio de Carvalho Lima Júnior, intelectual de destaque que é
patrono da cadeira 11 da Academia Sergipana de Letras. Um dos filhos de Bento,
Moisés, formou-se em Farmácia (Universidade da Bahia) e exerceu a profissão em
Estância. No prédio onde moro em Aracaju, meu vizinho de Eduardo é neto de
Bento Preto.
Florival
de Oliveira, Espiridião Noronha, Percílio Andrade, Paulo Cordeiro de Oliveira,
Antônio Bezerra, Francisco Antônio Lima Junior (citado acima), Antônio Dutra de
Almeida, João Brandão, Jovelino Rodrigues, Miguel Teixeira da Cunha (o pioneiro
da fotografia)... Gente da alta de Itabaiana é eternizada nos casos contados
por Fraga Lima.
Também
José Adhemar Carvalho, paraplégico, e gênio da música (várias peças) de uma
família de grandes itabaianenses, como Sebrão sobrinho e Vladimir Souza
Carvalho... E conta que, no dia do falecimento de sua irmã, Dalva, Ademar
compôs o clássico ”O Adeus de Dalva” para acompanhar o féretro até o cemitério.
Conferiu o efeito de sua composição e sofreu parada cardíaca. Tinha 26 anos de
idade, faleceu no mesmo dia de Dalva.
E
Fraga não esquece do lendário lagartense que mandou e desmandou em Itabaiana,
Manuel Batista Itajahy. Também médico, casou com a filha de chefe político e
entrou no ramo. Bem antes de Fraga Lima ter chegado a Itabaiana. Dr. Itajahy
chegou a exercer a vice presidência da província de Sergipe. E Fraga discorre
casos, alguns pitorescos patrocinados por Itajahy, como a proibição dos homens
da roça virem a feira vestindo apenas ceroulas, que era a moda top.
Após
seis anos em Itabaiana, Fraga Lima muda-se para Aracaju, onde foi professor
catedrático do Ateneu Pedro II e chefe do serviço de profilaxia da Lepra (a
partir de 1944). Em 1955, vai para o Rio de Janeiro ser o diretor do Serviço
Nacional da Lepra.
***
A
partir da página 125, Fraga Lima escreve sobre suas convicções políticas,
revela particularidades de sua transferência para o Rio de Janeiro, o livro sai
do rumo retilíneo e cronológico.
A
ocupação de Paripiranga pela Polícia Sergipana, em um simulacro de guerra de
conquista medieval, em 1913, por ordem do General Siqueira de Menezes,
presidente do Estado de então. Deu com os burros n’água.
O
seu colega de educandário que virou comunista. Antônio Bomfim, de Alagoinhas, e
que se transformou em Adalberto Fernandes, chefe de uma célula que funcionava
nas matas da Tijuca no Rio de Janeiro.
Teodora,
a escrava que fora de seu avô e que criou a ele e aos irmãos. Teodora o curou
da gagueira em menino: pegou-o pelos pés e o mergulhou de cabeça para baixo no
purrão de água da chuva. (...)
***
Minha
Passagem pela Vida” anda pelo caminho normal dos livros de memórias que não
pretendem ganhar prêmio literário, apenas deixar um testemunho de vida. Escrita
simples, gostosa de ler, ideias bem encadeadas. Uma viagem pela vida do médico
Fraga Lima. Raízes, família, tipos marcantes, momentos singulares. Sua luta,
vitórias, e, ao final, a comemoração pela vida digna que teve. É um livro
raro.
Este
que possuo comprei no sebo de Natan da rua Lagarto e tem quarenta anos de
manuseio. Fiz de conta que não me interessava e o trouxe por dez pratas. Ao
ler, as folhas se soltaram e saíram voando pela sala. Vou ter que arrumar um
encadernador nessa cidade de poucas artes.
(Antônio
Saracura, Aracaju, 30 de março de 2021, revisão em setembro de 2023)
Apresentada na ASL em junho/2021
ResponderExcluirPublicada na Zona Sul em 05/09/2023
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