sexta-feira, 20 de maio de 2022

CARIRA, João Hélio de Almeida

 

CARIRA, João Hélio de Almeida, Aracaju, Artner, 2022, 2. edição, 150 páginas, Isbn 978-65-88562-72-7

 


Em 16 de maio de 2022, em sessão da Academia Sergipana de Letras, o editor chefe da Artner, editora independente que funciona em Sergipe, Joselito Miranda, me entregou um pacote de 30 exemplares de livros de autores sergipanos editados recentemente. Os livros se destinavam ao Movimento Cultural Maria Pereira, da Academia Itabaianense de Letras, para se somarem aos outros que este movimento leva às escolas públicas como incentivo à leitura e à escrita. 

Entreguei o pacote ao MOC-MAP, mas retive comigo  (havia duas cópias), o livro  "Carira", de autoria de João Hélio de Almeida. Fascinam-me memórias de nossos lugares e de nosso povo. Para compensar a subtração, incluí no pacote meia dúzia de obras de autores sergipanos que já lera. Livros precisam circular.

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"Carira" conta a história do município do mesmo nome, do sertão sergipano,  na região então chamada “Matas de Itabaiana”, onde ceboleiros possuíam soltas de criação. A cidade formou-se em cima de uma aldeia de índios chefiada por uma mulher, a mãe Carira, conforme conta a lenda. E progrediu com as roças  de algodão (o ouro branco) e especialmente com  a pecuária, no que é destaque.  

Sempre muitas brigas, rixas, assassinatos de tocaias. Policiais truculentos abusando de senhoras casadas, prendendo inocentes, matando sem pena. As guerras de famílias dão ao livro a feição de um romance épico de Gogol (Taras Bulba por aí) e que o faz leitura apaixonante da primeira à última página. Vivi a guerra dos Isídios, Brasilinos, Andrelinos, Felix de Souza, Rabelos, Zé Conrado, Martinho de Souza, e muitos outros. Lampião e sanguinários cangaceiros assombravam as famílias. Parece que o progresso de um lugar tem a ver com o sangue vertido pelos pioneiros.  

A professora dona Zinha ensina a meninada em um barracão. Bancos de madeira, as duas pedrinhas redondas que são as chaves dos sanitários atrás das fruteiras. A régua de madeira dura serve mais para endireitar rumos rebeldes. E a palmatória “premia” os perdedores das sabatinas em sala de aula sob o olhar severo da mestra implacável.

Há os padres operosos e, lá na frente, está padre Raul Bomfim Borges, filho de Itabaiana, que ainda está vivo (Deus queira). Aposentado, recolhido ao sítio de seus pais, e celebrando missa todo domingo no Lar Cidade de Deus, onde é capelão. 

Alguns padres deram personalidade própria a lugares quase ermos que se transformaram em importantes municípios.  

O autor nos leva, puxando pelo braço ao mundo mágico das lendas e assombrações: os encantados, os lobisomens, padre Madeira e Maria Tempero. Cultura, tradição, folclore, religiosidade de um povo, com suas crenças, seus poetas populares, como Francisco Lotero, autor de "Fuga do Gameleiro": Adeus Arraial do São Pedro, conhecido por Gameleiro  / Que daí saí corrido por valentões e coiteiros”.

Li o livro com emoção dobrada porque um pouco de mim passou lá. Eu era  chamador de carro de boi e fui à fazenda onde trabalhava um certo vaqueiro chamado Oviedo, em Altos Verdes, buscar esterco com meu pai. Eu tinha 10 anos de idade por ai e gravei indeléveis imagens que depois as fiz eternas no livro “Os Tabaréus do Sítio Saracura” (página 134-145).

“Muitas vezes, o esterco não estava arrumado, e o vaqueiro Oviedo ainda tirava o leite das vacas ou cuidava de alguma ovelha ferida, ocupando o curral. Papai encostava o carro da melhor maneira, soltava os bois num cercado, preparava uma ração qualquer, com palmas já tiradas, ou ia até a capineira cortar um feixe de capim. As galinhas andavam por todo lado ciscando, cagando. Logo mais, o vaqueiro liberava o curral, e começávamos a encher o carro. Papai reclamava que o esterco estava misturado, não era criação legítima. O vaqueiro explicava que eram só duas vacas de leite, daria desconto no preço. De cesto em cesto, o carro enchia. Papai dava sempre jeito de botar mais um pouco, encaixava palmas grandes no topo da esteira, ou pisava forte apilando a carga. Terminado o serviço, estávamos sujos demais e íamos a um tanque perto nos lavar”.

O livro  “Carira” me surpreendeu em especial pela índole romanceada de cada fato (com diálogos inteligentes) que lhe outorga, a meu ver, sabor literário. 

Aracaju, 16 de maio de 2022, Antônio FJ Saracura

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