NÃO É HORA DE CORRER PARA A
CAVERNA , Neusa Vieira Lima Steinbach, Infographics, 2017, 127 páginas, isbn
978-85-9476-106-4
Muitos livros maravilhosos jamais
foram lidos além da família ou da aldeia do autor. Como também muitos craques
do futebol acabaram suas carreiras nas várzeas de seu bairro. Não tiveram a
sorte de serem achados pelo agente que os projetasse ao mundo.
“Não é hora de correr para a
Caverna” é um livro raro, surpreende pelo estilo gostoso e pela riqueza do
texto, mesmo quando trata de temas corriqueiros, como a convivência no quintal
da casa no discriminado Beco Novo, em Itabaiana, Sergipe, onde a autora passou
a infância. Ainda é novo, foi editado em 2017, e terá, certamente, sua chance
de ser descoberto, se não já não foi e eu não percebi. Além do mais, para
ajudar nessa descoberta, a autora tem dupla nacionalidade. É sergipana da
Academia Itabaianense de Letras, e catarinense, pelos laços de matrimônio,
residente em Santa Catarina, na cidade de Francisco Beltrão. São duas várzeas abertas
aos agentes caçadores de talento.
“Não é hora de correr para a
caverna” é composto por 45 boas crônicas. E por uma apresentação esmerada de
Anito Steinbach, professor, intelectual, poeta (tenho comigo Lâmina Desnuda), que
mostra a crônica na literatura.
Crônica é um texto curto e leve e
que ensina muito. Os cronistas ilustres, todos trafegaram fagueiros pela
poesia, que é leve também e tem o dom acender lâmpadas que jamais se apagam:
Machado de Assis, Olavo Bilac, Carlos Drumont de Andrade, Fernando Sabino,
Clarice Lispector, Lêdo Ivo... e Neusa Vieira ganha destaque especial, pois
Anito discorre sobre cada joia que “Não é hora de correr para a caverna” traz.
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Se você tiver a sorte de encontrar
este livro, leia devagar. Se o sentido de uma palavra ou frase escapou, retorne
e busque-o, não descarte como cascalho, o surpreendente diamante. Vista-se de
missionário evangelizador e semeie o livro à mão cheia em seguida. Ele ensina a
abrir janelas, a aponta caminhos novos, e pode mudar o mundo para melhor.
Neuza apresenta-nos crônicas que
são poemas.
Ela confessa que descobriu a
poesia quando tentou, pela primeira vez, segurar o vento e sair correndo com
ele para mostrar aos irmãos. E, mesmo segurando o vento, sentiu alegria e medo.
Medo, porque ela (a poesia) parece alma de outro mundo, causa arrepios. Alegria,
porque permite ver tudo mais longe e mais claro, ora com olhos de cego, ora com
olhos de sol.
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As crônicas sabem a “quero ver
Irene rir (Caetano Veloso) ou então “... entre Irene, você não precisa pedir
licença” (de Manoel Bandeira). Se estes ou outro poeta vêm à porta é para nos
apresentar um poema, que Neusa o faz com maestria, levando-nos a amá-lo também.
Em poucas linhas, Manoel de Barros e Mário Quintana e muitos já são amigos
íntimos, definitivos. Neuza é professora de corpo e alma e sabe como gravar uma
lição na mente de seus ávidos alunos para jamais ser apagada.
Ela canta as pedras que sustentaram
sua caminhada...
O quintal de fruteiras e lavoura
(um sítio dentro da rua) no Beco Novo de Itabaiana, onde desvendou os mistérios
da natureza, onde bebeu os primeiros pingos de chuva, ouviu o canto dos
pássaros e a música da redondeza; a alma da pedra que foi uma minhoca viscosa
e, instantaneamente, pela sabedoria da mãe singela, passou a ser o alma da
terra inteira, permitindo que houvesse vida embaixo do chão; as festas de São
João dos fogos e da fogueira; o cinema de Zeca e do padre com filmes que
mostraram outro mundo além da serra, espetaculares; visto do batente da porta
da frente, o desfile de um povo bárbaro, belo, variado, vindo das faldas da
serra, trazendo cavalos carregados com produtos da lavoura e meninos barulhentos;
aquele homem baixinho, branco e de rosto muito vermelho parecendo um galo
garnisé, e mais Zé Carretel com os pés voltados para dentro como um curupira; os
casamentos à cavalo, a noiva montada de lado correndo o risco de cair pra trás;
as procissões, foguetórios, que ultrapassavam os limites do Beco Novo, indo até
Frei Paulo, Cipó de Leite, o mundo todo; o serviço de alto falante da praça: de
alguém para outro alguém, reecados que hoje o wsap matou a magia; o Largado que
esperou, sofreu, insistiu até que o olhar de Ivone deu-lhe o céu; e seu Miguel
Fagundes com o terno branco presente a todo velório (“mas faltei ao seu, pois o
mundo me engoliu voraz”); a punga no carro de bois, trepada no requevem como
menino macho, viajando ao som de violinos escondidos nos eixos de braúna, até a
bodega de seu Antonino, último limite permitido, depois dali, eram os ermos dos
dragões e de abismos tenebrosos...
E, especialmente, o namorado
estrangeiro, por isso discriminado, que o destino lhe mandou para a vida toda...
Uma mão vindo do outro lado do oceano pousou na sua e acendeu todas as lâmpadas
instaladas no seu mundo.
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O livro é um canto de louvor à
realidade do dia a dia, desde as brincadeiras e assombrações de criança,
passando pela longa e gratificante missão do magistério, pela vida sempre alegre
e triste, pela interpretação da melhor literatura que o mundo produz...
Neusa mostra-se incansável em se
extasiar ante a natureza das coisas e das pessoas, mas reage com energia às sombras
turvas que as redes sociais, que as falsas doutrinas, que o comodismo, que a
discriminação e a empáfia, criam na mente das pessoas.
A caverna é um local seguro onde nada
precisa acontecer realmente. Basta imaginar. Tem o poder de criar mundos de
ilusão, mas o homem precisa tirar os sapatos e deitar na terra molhada e abrir
os braços. Enfrentar a realidade e usufruí-la intensamente. Nada de correr para
a caverna outra vez.
(Por Antônio FJ Saracura em 2018,
revisada em fevereiro de 2020)
Post scriptum: “Quem é você para derramar meu Mungunzá" inclui Antônio Saracura no time dos autores cabras da
peste que cantam o Nordeste valoroso, orgulho do meu Brasil. Obrigado pela
honra (Saracura).
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