domingo, 16 de fevereiro de 2020

NÃO É HORA DE CORRER PARA A CAVERNA , Neusa Vieira Lima Steinbach


NÃO É HORA DE CORRER PARA A CAVERNA , Neusa Vieira Lima Steinbach, Infographics, 2017, 127 páginas, isbn 978-85-9476-106-4



Muitos livros maravilhosos jamais foram lidos além da família ou da aldeia do autor. Como também muitos craques do futebol acabaram suas carreiras nas várzeas de seu bairro. Não tiveram a sorte de serem achados pelo agente que os projetasse ao mundo.
“Não é hora de correr para a Caverna” é um livro raro, surpreende pelo estilo gostoso e pela riqueza do texto, mesmo quando trata de temas corriqueiros, como a convivência no quintal da casa no discriminado Beco Novo, em Itabaiana, Sergipe, onde a autora passou a infância. Ainda é novo, foi editado em 2017, e terá, certamente, sua chance de ser descoberto, se não já não foi e eu não percebi. Além do mais, para ajudar nessa descoberta, a autora tem dupla nacionalidade. É sergipana da Academia Itabaianense de Letras, e catarinense, pelos laços de matrimônio, residente em Santa Catarina, na cidade de Francisco Beltrão. São duas várzeas abertas aos agentes caçadores de talento.

“Não é hora de correr para a caverna” é composto por 45 boas crônicas. E por uma apresentação esmerada de Anito Steinbach, professor, intelectual, poeta (tenho comigo Lâmina Desnuda), que mostra a crônica na literatura.

Crônica é um texto curto e leve e que ensina muito. Os cronistas ilustres, todos trafegaram fagueiros pela poesia, que é leve também e tem o dom acender lâmpadas que jamais se apagam: Machado de Assis, Olavo Bilac, Carlos Drumont de Andrade, Fernando Sabino, Clarice Lispector, Lêdo Ivo... e Neusa Vieira ganha destaque especial, pois Anito discorre sobre cada joia que “Não é hora de correr para a caverna” traz.

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Se você tiver a sorte de encontrar este livro, leia devagar. Se o sentido de uma palavra ou frase escapou, retorne e busque-o, não descarte como cascalho, o surpreendente diamante. Vista-se de missionário evangelizador e semeie o livro à mão cheia em seguida. Ele ensina a abrir janelas, a aponta caminhos novos, e pode mudar o mundo para melhor.
Neuza apresenta-nos crônicas que são poemas.

Ela confessa que descobriu a poesia quando tentou, pela primeira vez, segurar o vento e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos. E, mesmo segurando o vento, sentiu alegria e medo. Medo, porque ela (a poesia) parece alma de outro mundo, causa arrepios. Alegria, porque permite ver tudo mais longe e mais claro, ora com olhos de cego, ora com olhos de sol.

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As crônicas sabem a “quero ver Irene rir (Caetano Veloso) ou então “... entre Irene, você não precisa pedir licença” (de Manoel Bandeira). Se estes ou outro poeta vêm à porta é para nos apresentar um poema, que Neusa o faz com maestria, levando-nos a amá-lo também. Em poucas linhas, Manoel de Barros e Mário Quintana e muitos já são amigos íntimos, definitivos. Neuza é professora de corpo e alma e sabe como gravar uma lição na mente de seus ávidos alunos para jamais ser apagada.
Ela canta as pedras que sustentaram sua caminhada...

O quintal de fruteiras e lavoura (um sítio dentro da rua) no Beco Novo de Itabaiana, onde desvendou os mistérios da natureza, onde bebeu os primeiros pingos de chuva, ouviu o canto dos pássaros e a música da redondeza; a alma da pedra que foi uma minhoca viscosa e, instantaneamente, pela sabedoria da mãe singela, passou a ser o alma da terra inteira, permitindo que houvesse vida embaixo do chão; as festas de São João dos fogos e da fogueira; o cinema de Zeca e do padre com filmes que mostraram outro mundo além da serra, espetaculares; visto do batente da porta da frente, o desfile de um povo bárbaro, belo, variado, vindo das faldas da serra, trazendo cavalos carregados com produtos da lavoura e meninos barulhentos; aquele homem baixinho, branco e de rosto muito vermelho parecendo um galo garnisé, e mais Zé Carretel com os pés voltados para dentro como um curupira; os casamentos à cavalo, a noiva montada de lado correndo o risco de cair pra trás; as procissões, foguetórios, que ultrapassavam os limites do Beco Novo, indo até Frei Paulo, Cipó de Leite, o mundo todo; o serviço de alto falante da praça: de alguém para outro alguém, reecados que hoje o wsap matou a magia; o Largado que esperou, sofreu, insistiu até que o olhar de Ivone deu-lhe o céu; e seu Miguel Fagundes com o terno branco presente a todo velório (“mas faltei ao seu, pois o mundo me engoliu voraz”); a punga no carro de bois, trepada no requevem como menino macho, viajando ao som de violinos escondidos nos eixos de braúna, até a bodega de seu Antonino, último limite permitido, depois dali, eram os ermos dos dragões e de abismos tenebrosos...

E, especialmente, o namorado estrangeiro, por isso discriminado, que o destino lhe mandou para a vida toda... Uma mão vindo do outro lado do oceano pousou na sua e acendeu todas as lâmpadas instaladas no seu mundo.

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O livro é um canto de louvor à realidade do dia a dia, desde as brincadeiras e assombrações de criança, passando pela longa e gratificante missão do magistério, pela vida sempre alegre e triste, pela interpretação da melhor literatura que o mundo produz...

Neusa mostra-se incansável em se extasiar ante a natureza das coisas e das pessoas, mas reage com energia às sombras turvas que as redes sociais, que as falsas doutrinas, que o comodismo, que a discriminação e a empáfia, criam na mente das pessoas.

A caverna é um local seguro onde nada precisa acontecer realmente. Basta imaginar. Tem o poder de criar mundos de ilusão, mas o homem precisa tirar os sapatos e deitar na terra molhada e abrir os braços. Enfrentar a realidade e usufruí-la intensamente. Nada de correr para a caverna outra vez.

(Por Antônio FJ Saracura em 2018, revisada em fevereiro de 2020)


Post scriptum: “Quem é você para derramar meu Mungunzá" inclui Antônio Saracura no time dos autores cabras da peste que cantam o Nordeste valoroso, orgulho do meu Brasil. Obrigado pela honra (Saracura).



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