Muitos livros maravilhosos
jamais foram lidos fora da família ou da aldeia do autor. Como também muitos
craques do futebol acabaram suas carreiras nas várzeas de seu bairro.
Não tiveram a sorte de serem
achados pelo agente que os projetasse ao mundo.
“Não é hora de correr para a
Caverna” é um livro raro, surpreende pelo estilo gostoso e pela riqueza do
texto, mesmo quando trata de temas corriqueiros, como a convivência no quintal
da casa no discriminado Beco Novo, em Itabaiana, Sergipe, onde a autora passou
a infância. O livro foi lançado em 2017, e terá, certamente, sua chance de ser
descoberto, se não já não foi e eu não percebi. Além do mais, para ajudar nessa
descoberta, a autora tem dupla nacionalidade. É sergipana da Academia
Itabaianense de Letras, e catarinense, pelos laços de matrimônio, residente em
Santa Catarina, na cidade de Francisco Beltrão. São duas várzeas abertas aos
agentes caçadores de talento.
“Não é hora de correr para a
caverna” é composto por 45 boas crônicas. E por uma apresentação esmerada de
Anito Steinbach, professor, intelectual, poeta (tenho comigo Lâmina Desnuda).
Crônica é um texto curto e leve
e que ensina. Os cronistas ilustres trafegaram fagueiros pela poesia, que é
leve também e tem o dom acender lâmpadas que jamais se apagam: Entre outros,
estão Machado de Assis, Olavo Bilac, Carlos Drumont de Andrade, Fernando
Sabino, Clarice Lispector, Lêdo Ivo, Neusa Vieira, que é nosso
destaque especial.
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Se você tiver a sorte de
encontrar este livro, leia devagar. Se o sentido de uma palavra ou frase
escapou, retorne e busque-o, não descarte como cascalho, o surpreendente
diamante. Vista-se de missionário evangelizador e semeie o livro à mão cheia em
seguida. Ele ensina a abrir janelas, aponta caminhos novos, e pode mudar o
mundo para melhor. São crônicas poéticas. Neuza confessa que descobriu a poesia
quando tentou, pela primeira vez, segurar o vento e sair correndo com ele para
mostrar aos irmãos. E, mesmo segurando o vento, sentiu alegria e medo. Medo,
porque ela (a poesia) parece alma de outro mundo, causa arrepios. Alegria,
porque permite ver tudo mais longe e mais claro, ora com olhos de cego, ora com
olhos de sol.
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As crônicas sabem a “quero ver
Irene rir (Caetano Veloso) ou então “... entre Irene, você não precisa pedir
licença” (de Manoel Bandeira). Se estes ou outro poeta vêm à porta é para nos
apresentar um poema, que Neusa o faz com maestria, levando-nos a amá-lo também.
Em poucas linhas, Manoel de Barros e Mário Quintana e muitos já são amigos
íntimos, definitivos. Neuza é professora de corpo e alma e sabe como gravar uma
lição na mente de seus ávidos alunos que jamais ser apagada.
Ela canta as pedras que
sustentaram sua caminhada...
O quintal de fruteiras e lavoura
(um sítio dentro da rua) no Beco Novo de Itabaiana, onde desvendou os mistérios
da natureza, onde bebeu os primeiros pingos de chuva, ouviu o canto dos
pássaros e a música da redondeza; a alma da pedra que foi uma minhoca viscosa
e, instantaneamente, pela sabedoria da mãe singela, passou a ser o alma da
terra inteira, permitindo que houvesse vida embaixo do chão; as festas de São
João dos fogos e da fogueira; o cinema de Zeca e do padre com filmes que
mostraram outro mundo além da serra, espetaculares; visto do batente da porta
da frente, o desfile de um povo bárbaro, belo, variado, vindo das faldas da
serra, trazendo cavalos carregados com produtos da lavoura e meninos
barulhentos; aquele homem baixinho, branco e de rosto muito vermelho parecendo
um galo garnisé, e mais Zé Carretel com os pés voltados para dentro como um
curupira; os casamentos à cavalo, a noiva montada de lado correndo o risco de
cair pra trás; as procissões, foguetórios, que ultrapassavam os limites do Beco
Novo, indo até Frei Paulo, Cipó de Leite, o mundo todo; o serviço de alto
falante da praça: de alguém para outro alguém, recados que hoje o wsap matou a
magia; o Largado que esperou, sofreu, insistiu até que o olhar de Ivone deu-lhe
o céu; e seu Miguel Fagundes com o terno branco presente a todo velório (“mas
faltei ao seu, pois o mundo me engoliu voraz”); a punga no carro de bois,
trepada no requevem como menino macho, viajando ao som de violinos escondidos
nos eixos de braúna, até a bodega de seu Antonino, último limite permitido,
depois dali, eram os ermos dos dragões e de abismos tenebrosos...
E, especialmente, o namorado
estrangeiro, por isso discriminado, que o destino lhe mandou para a vida
toda... Uma mão vinda do outro lado do oceano pousou na sua e acendeu todas as
lâmpadas instaladas no seu mundo.
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O livro é um canto de louvor à
realidade do dia a dia, desde as brincadeiras e assombrações de criança,
passando pela longa e gratificante missão do magistério, pela vida sempre
alegre e triste, pela interpretação da melhor literatura que o mundo produz...
Neusa mostra-se incansável em se
extasiar ante a natureza das coisas e das pessoas, mas reage com energia às
sombras turvas que as redes sociais, que as falsas doutrinas, que o comodismo,
que a discriminação e a empáfia, criam na mente das pessoas.
A caverna é um local seguro onde
nada precisa acontecer realmente. Basta imaginar. Tem o poder de criar mundos
de ilusão, mas o homem precisa tirar os sapatos e deitar na terra molhada e
abrir os braços. Enfrentar a realidade e usufruí-la intensamente. Nada de
correr para a caverna outra vez.
(Por Antônio FJ Saracura em
2018, revisada em fevereiro de 2020)
Post scriptum: “Quem é você para derramar meu Mungunzá"
inclui Antônio Saracura no time dos autores cabras da peste que cantam o
Nordeste valoroso, orgulho do meu Brasil. Obrigado pela honra (Saracura).
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