CARTA PARA MINHA MÃE QUE NÃO SABIA LER, Neusa Vieira Lima Steinback, 2014, editora Perfil, 44 páginas, isbn
978-85-67215-07-5.
Quando estávamos dando os
primeiros passos para a criação da Academia Itabaianense de Letras, Vladimir
Souza Carvalho, o líder, apresentou o nome de Neusa Vieira para ocupar uma das
cadeiras. Eu nunca ouvira falar dela. E ele disse que Neusa escrevera e estava
publicando um livro de 40 páginas, mas que valia por uma biblioteca. Uma carta
apenas, escrita para a mãe, já falecida na época, mas um poema sem igual.
Eu acreditei e, logo que o livro
saiu, corri ler, já que era curtinho e tão rico.
Dona Maria (a mãe) aprendeu sem perceber
e ensinou poesia sempre, não apenas aos filhos, mas às pessoas com as quais
conviveu nos lugares onde morou. Sempre trazia, na ponta da língua, uma
explicação óbvia paras as coisas inexplicáveis, uma história de assombração para
apaziguar o coração assustado, ou uma história amena para colocar o filho ou
quem ouvisse no ritmo desenfreado da vida. Poderia ser uma simples observação,
mas que valia o tanto de uma porta aberta ao desconhecido tentador.
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“Fomos ao circo e eu dormi no seu
colo. Perdi o espetáculo do trapézio que queria muito ver. Ao me acordar, o número
já se acabara, e perguntei a minha mãe como fora. E ela respondeu: ‘O que fizeram?
Eles voaram!’ Então achei que eles fossem anjos, e voei com eles.”
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“Minha mãe era parteira (da gente
pobre) em Itabaiana. Um pai alvoroçado ou um menino de recado batia palmas à
nossa porta e lá se ia dona Maria com sua maleta (amor, tesoura, álcool, panos
limpo, bacia...). A mãe parida e o recém-nascido ficavam intrigados com o mundo
belo e cheio de promessas que viam nos olhos da parteira. Mais tarde, ela retornava
pra casa com um sorriso iluminado: ‘Deu tudo certo.’ E visitava a família, para
ver se podia sanar alguma dificuldade. E conversava com doutor Pedro Moreno (santa
parceria) sobre uma complicação que a preocupava”.
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“‘Tem um santo no céu que é o
guardador do vento. O nome dele é São Lourenço. Se junto gritarmos o nome dele,
ele mandará um pouco de vento para nós. Então gritamos: São Lourenço, abre a
porta do vento, que eu estou quente!”. Era um verão escaldante e Itabaiana pegava
fogo até no piscar de olhos! E, a seguir, um vento leve, menino, passou por nós
fagueiro. E aquela tarde quente e abafada sumiu de nosso quintal”.
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“Os mendigos que subiam e desciam
a estrada da serra paravam à nossa porta pedindo um adjutório. ‘Pode entrar,
Vitório! Tome um gole de café e dê uma mordida no bolo. Como vai a família? Do
que está precisando, mais urgente?” E Vitório não era mais o negro velho, perna
torta, carapinha branca, pobre. Era um homem que falava da vida e até dizia que
tinha sido escravo. Era um personagem vivo das histórias que ele contava. O
respeito e a igualdade eram também para Felix e para outros que paravam à nossa
porta, fossem quem fossem.”
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“Minha mãe não sabia ler nem
escrever. Mas queria encabeçar a lista de doações para reconstrução da casa de
um pobre da vizinhança que a enxurrada levou. Ela comandou a campanha desde que
soube da tragédia. Pediu-me então que desenhasse seu nome em um papel, e, com
grande dificuldade, copiou embaixo até que seu desenho ficou parecido. Pediu a
lista e dos doadores, marcou seu nome, e sorriu satisfeita.”
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“Um dia, queimou os meus livros. Corria
1965, eu ainda morava não me casara, e muitos estavam sendo presos e torturados
por possuírem livros em casa. Chorei indignada, minha fortuna virava cinza
porque minha mãe não sabia ler. Quando os agentes de chumbo apareceram com ordens
macabras, nem acharam a cinza, enterrada no quintal”.
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“Carta para minha mãe que não
sabia ler” é um pleito de gratidão (e muita admiração) de uma filha consciente
a uma mãe titânica que passou por cima de mil provações (como não saber ler em
uma família letrada) galhardamente.
E a poeta Neusa Vieira
conclui, dirigindo-se à mãe: “Faço-te renascer de mim, num parto sem dor, e te
revisto de palavras, incenso de bons augúrios para este novo berço”.
E despachou para o Céu com cópias
livres para circularem eternamente, essa memorável “Carta para minha mãe que
não sabia ler”.
(Aracaju, revisão em 15 de
fevereiro de 2020, por Antônio FJ Saracura).
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