domingo, 16 de fevereiro de 2020

CARTA PARA MINHA MÃE QUE NÃO SABIA LER, Neusa Vieira Lima Steinback


CARTA PARA MINHA MÃE QUE NÃO SABIA LER, Neusa Vieira Lima Steinback, 2014, editora Perfil, 44 páginas, isbn 978-85-67215-07-5.



Quando estávamos dando os primeiros passos para a criação da Academia Itabaianense de Letras, Vladimir Souza Carvalho, o líder, apresentou o nome de Neusa Vieira para ocupar uma das cadeiras. Eu nunca ouvira falar dela. E ele disse que Neusa escrevera e estava publicando um livro de 40 páginas, mas que valia por uma biblioteca. Uma carta apenas, escrita para a mãe, já falecida na época, mas um poema sem igual.


Eu acreditei e, logo que o livro saiu, corri ler, já que era curtinho e tão rico.



Dona Maria (a mãe) aprendeu sem perceber e ensinou poesia sempre, não apenas aos filhos, mas às pessoas com as quais conviveu nos lugares onde morou. Sempre trazia, na ponta da língua, uma explicação óbvia paras as coisas inexplicáveis, uma história de assombração para apaziguar o coração assustado, ou uma história amena para colocar o filho ou quem ouvisse no ritmo desenfreado da vida. Poderia ser uma simples observação, mas que valia o tanto de uma porta aberta ao desconhecido tentador.

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“Fomos ao circo e eu dormi no seu colo. Perdi o espetáculo do trapézio que queria muito ver. Ao me acordar, o número já se acabara, e perguntei a minha mãe como fora. E ela respondeu: ‘O que fizeram? Eles voaram!’ Então achei que eles fossem anjos, e voei com eles.”

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“Minha mãe era parteira (da gente pobre) em Itabaiana. Um pai alvoroçado ou um menino de recado batia palmas à nossa porta e lá se ia dona Maria com sua maleta (amor, tesoura, álcool, panos limpo, bacia...). A mãe parida e o recém-nascido ficavam intrigados com o mundo belo e cheio de promessas que viam nos olhos da parteira. Mais tarde, ela retornava pra casa com um sorriso iluminado: ‘Deu tudo certo.’ E visitava a família, para ver se podia sanar alguma dificuldade. E conversava com doutor Pedro Moreno (santa parceria) sobre uma complicação que a preocupava”.

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“‘Tem um santo no céu que é o guardador do vento. O nome dele é São Lourenço. Se junto gritarmos o nome dele, ele mandará um pouco de vento para nós. Então gritamos: São Lourenço, abre a porta do vento, que eu estou quente!”. Era um verão escaldante e Itabaiana pegava fogo até no piscar de olhos! E, a seguir, um vento leve, menino, passou por nós fagueiro. E aquela tarde quente e abafada sumiu de nosso quintal”.

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“Os mendigos que subiam e desciam a estrada da serra paravam à nossa porta pedindo um adjutório. ‘Pode entrar, Vitório! Tome um gole de café e dê uma mordida no bolo. Como vai a família? Do que está precisando, mais urgente?” E Vitório não era mais o negro velho, perna torta, carapinha branca, pobre. Era um homem que falava da vida e até dizia que tinha sido escravo. Era um personagem vivo das histórias que ele contava. O respeito e a igualdade eram também para Felix e para outros que paravam à nossa porta, fossem quem fossem.”

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“Minha mãe não sabia ler nem escrever. Mas queria encabeçar a lista de doações para reconstrução da casa de um pobre da vizinhança que a enxurrada levou. Ela comandou a campanha desde que soube da tragédia. Pediu-me então que desenhasse seu nome em um papel, e, com grande dificuldade, copiou embaixo até que seu desenho ficou parecido. Pediu a lista e dos doadores, marcou seu nome, e sorriu satisfeita.”

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“Um dia, queimou os meus livros. Corria 1965, eu ainda morava não me casara, e muitos estavam sendo presos e torturados por possuírem livros em casa. Chorei indignada, minha fortuna virava cinza porque minha mãe não sabia ler. Quando os agentes de chumbo apareceram com ordens macabras, nem acharam a cinza, enterrada no quintal”.

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“Carta para minha mãe que não sabia ler” é um pleito de gratidão (e muita admiração) de uma filha consciente a uma mãe titânica que passou por cima de mil provações (como não saber ler em uma família letrada) galhardamente.

E a poeta Neusa Vieira conclui, dirigindo-se à mãe: “Faço-te renascer de mim, num parto sem dor, e te revisto de palavras, incenso de bons augúrios para este novo berço”.
E despachou para o Céu com cópias livres para circularem eternamente, essa memorável “Carta para minha mãe que não sabia ler”.

(Aracaju, revisão em 15 de fevereiro de 2020, por Antônio FJ Saracura).



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