quarta-feira, 26 de maio de 2021

PEDAÇOS D ALMA, José Gumercindo Santos

PEDAÇOS D ALMA, José Gumercindo Santos, BAHIA Artes Gráficas, 1981 221 páginas, sem isbn


 

Agora o escritor é médico da alma; doutor com todos os graus, um santo (quase) da Igreja Católica. E, como quase todos, questionado no seu tempo. Esse “quase” é por conta de São Francisco de Assis, na Itália, e Padre Pedro de Oliveira, aqui de Sergipe, para focar dois.

José Gumercindo Santos, com realizações basilares em Sergipe e Bahia (escolas, congregações) narra, em “Pedaços d’Alma”, a própria história. Humildemente, docemente, alegremente, sofridamente, literariamente... Libertando pingos de sua alma que tocam o coração do leitor. Pingos líricos, pingos dolorosos. Vitórias, derrotas, avanços, recuos...

O livro começa com Gumercindo ainda menino com cinco anos (colherinha de prata, Itabaiana 15 de agosto de 1910) e alcança os últimos dias de vida laboriosa. Um testamento das fortunas que produziu em uma vida de intensa dedicação à Igreja (apostolado) e à Educação (magistério).

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O ônibus de turismo parou em frente a um prédio imenso numa praça de Tucano, na Bahia. Todos descemos para conhecer o seminário São José, da congregação dos Joseleitos de Cristo. Um guia local veio nos receber. Ali era um ponto turístico. Corremos os sombrios corredores vazios (não me lembro se era período de férias ou o se o colégio estava desativado) e, por fim, fomos conhecer os aposentos do padre Gumercindo (há muito falecido) que agora era um museu. Uma capela em honra a um Santo que requer reconhecimento. Vídeos de palestras, manuseio de livros autorais, consulta a números de revistas que foram a mão do padre abençoando seus frutos espalhados pelo Brasil e até fora. Padre Gumercindo, sergipano de Itabaiana, mudou a vida cultural daquela cidade no sertão baiano. Como já havia mudado a de Boquim, em Sergipe. Como mudaria muito mais se não fosse a tradicional retrógrada igreja católica que, pelo que conta a história, nunca aceitou a maioria de seus santos, enquanto vivos. Padre Gumercindo travou guerra intensa para quebrar os tabus, para tirar a igreja do caixão apertado do comodismo. Criou calos. Levantou bandeiras brancas quando deveria comemorar vitória. Adiou vitórias certas para satisfazer vaidades vãs. Submeteu-se diante dos homens que mandam, pedindo a Deus que os perdoasse.

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O que é bom no livro excede, tanto pela beleza da escrita como a singularidade dos casos narrados, que são estações da via sacra de um mártir. Além das curtas crônicas, há densos relatórios das viagens cumprindo seu apostolado, fosse sob a mitra de dom Lustosa e outros dons, entre igarapés e piranhas antropófagas como em gabinetes escamosos de uma Roma burocrática e discriminadora ou de uma América do Norte formal, mas solidária.

Não há como um bom livro caber em qualquer resenha por melhor que o resenhista seja. Quanto mais na resenha de um Saracura qualquer.

Vou então apontar flashes que brilharam mais para mim (alguns dos muitos), tentando revelar um pouco do que me surpreendeu, me encantou, me comoveu: 

Infância pobre no Zanguê, capina bamburral sob chuva e sol... E então o pai se vai e não retorna. A mãe passa fome com os filhos na rua do Sol, na cidade de Itabaiana. O menino com sete anos é o homem da casa, arregaça as calças curtas e se mistura aos moleques colhedores de água no fundo Tanque do Povo para encher os barris dos jegues almocreves que abastecem a cidade. Gorjetas que ajudaram a mitigar a fome de casa.

O padre José Vicente de Jesus, pároco operoso de Itabaiana, deu azar. Em uma Santa missão na cidade, os frades capuchinhos crismavam crianças. Beatas radicais não aceitaram como madrinha a rapariga do Coronel Sebrão, truculento chefe dos Pebas. Os frades, montados em dois jegues, sob apupos, foram enxotados da cidade. E o padre Vicente ficou com a rebordosa de uma guerra desigual, que o sacrificou. "Eu era coroinha e vendo o sofrimento do vigário, deu uma vontade enorme de ser padre. Ser mártir e santo como nas histórias que lia, como eu via padre Vicente em sua via-sacra."

Jogo entre o Salesiano (eu era aluno interno na Tebáida) com o juvenil do Confiança: O confiança era quase profissional, cantado como imbatível. Mas o jogo foi disputado e ia terminar zero a zero para nossa glória. "Com o tempo esgotado, acertei minha canhota firme, o goleiro nem viu, balancei a rede. Não sei se o Confiança de 1920 tem registrada essa derrota em seus anais."

Em dois anos que fiquei na missão no Amazonas, compus um dicionário tupi, latim, português aproveitando aparas de papel que havia. Trouxe-o comigo. Em Boquim, onde me instalei, publiquei na revista “Segue-me” partes desse dicionário, ao qual eu ia me dedicando quando havia tempo. Mas a ignorância de alguém botou no lixo todo meu tesouro. . Chorei lágrimas com pedaços de minha alma.”

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"Um ex aluno, no dia seguinte à minha expulsão do salesiano, me arranjou um quarto espaçoso no Asilo dos Velhos, bem em frente ao seminário Diocesano, me tirando da rua. Era o diretor do asilo na época e se chamava “José Bezerra”, (mais tarde foi Juiz em Itabaiana, já falecido).

Dom José Tomás Gomes da Silva recuou de sua decisão de dar apoio às minhas congregações e exigiu que eu desmanchasse as obras, todas pelo bem do povo pobre e da igreja: “Vá a Boquim e tire o hábito das moças e mande-as para suas próprias casas. Não quero encrenca com a Santa Sé.”

“A vida do religioso (José Gumercino) é um autêntico testemunho de seguimento de Jesus pela prática do amor. Deixou um legado de total consagração a Deus, servindo aos pobres, órfãos, jovens e vocacionados, através da educação e da prática da caridade em instituições e pastorais", disse Gildásio Penedo Filho, parlamentar baiano, nas comemorações do centenário do padre (1907-1991), em 15/08/2007,

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A beatificação do padre Gumercindo Santos está sendo analisada na Santa Sé. Um postulador designado por católicos e religiosos, especialmente de Boquim e Tucano, está em Roma defendendo o projeto. Equipes de religiosas (Coordenada pela irmã Simone da Congregação de Santa Terezinha) busca testemunhos de sua vida santa. A historiadora Ana Medina, que é de Boquim e pertence a uma família ligada à obra de padre Gumercindo na cidade, acredita que logo seja reconhecido pela Igreja como santo. Santo sergipano, filho do Zanguê, em Itabaiana.

(Antônio FJ Saracura, Aracaju, 23 de maio de 2021, infectado pelo Corona Virus, revisado em agosto de 2023).

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Apêndice à Resenha

(para quem quiser mais informações).


(Anotações soltas da leitura do livro)

Em Itabaiana havia, uma festa em cada  esquina. No aniversário da queda de Canudos, que se deu em 1897, a Praça da Matriz se enchia de ranchos de palha, imitando Canudos. Antônio Conselheiro fora venerado em Itabaiana onde consta que viveu um tempo. Às 9 da manhã, começava uma batalha simulada. A população de posta atenta. "Quando eu vi pela primeira vez o fogaréu do incêndio das choupanas de palhas e a correria da polícia e dos soldados do exército esmolambado atrás dos jagunços (pega-pega, mata-mata), deixei minha mãe e corri para me esconder. Nesse momento, um grupo de jagunços atirando com seus bacamartes para o ar, desembocou ao meu lado. Aturdido, gritei e chorei sem saber para onde ir. Passei o resto do dia sem achar o caminho de casa." 7

O doutor Teotônio Martins, senador baiano, grande médico e político, contava que, como quintanista de medicina, esteve na tomada do arraial e assistiu o assassinado de quinhentos jagunços, que em duas filas, dois a dois, gritavam, antes de serem sangrados: “Viva o Conselheiro.”

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A Festa do Círio de Nazaré, desde a véspera ao ocaso, é um documentário cinematográfico digno de um Óscar, no qual um Brasil inédito e surpreendente se revela nos seus ricos detalhes.

Os relatos das viagens, se bem que aqui aparecem concisos porque outro livro (que não há a venda nos sebos) conta os mínimos detalhes.

O macho da tartaruga chama-se Catipari e é muito malvado. Quando chega o dia dos filhotes saírem dos ovos, ele está na espreita. Se a mãe tartaruga não impede e o faz com extremo heroísmo, o catipari devora todos os filhotes, um a um.

Os índios Caborís, ferozes, brancos de olhos azuis, proveniente da Guiana Holandesa, foram catequisados pelo missionário sergipano, natural de Itabaiana, frei Antônio de Góis. Esse missionário foi quem descobriu o pico da Neblina e por conta de seu zelo e empenho o pico ficou do lado de cá da fronteira.

A palavra moleque vem de “Mulus et équa” do latim significa mulo e égua. Ou filho de uma égua. O latim possui muitas palavras assim formadas pelas iniciais do descritivo, como a palavra cadáver que vem de “caro data vermibus” e Sanctus que vem de “sanguine tintucts”: Santo sempre foi mártir.

(fim)

 

 

 


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