OS MUITOS CANTOS DE JOSÉ ABUD, José Abud, Canto Novo, Canto
Primeiro, (Alquimia, Cantares, Beduína), J. Andrade, 1978,1979, dois tomos. Sem
isbn
Com minha a cara de pau, fui à clínica de doutor
Abud na rua de Propriá. Antes, ligara pedindo para me atender e ele aceitou.
Cheguei
logo cedo e um senhor idoso estava, após o portão de ferro, com um tesourão,
aparando um canteiro de plantas da altura de um homem, que margeava o lado
direito do corredor, onde havia um automóvel popular estacionado lá longe, a
cinquenta metros. Nesse meio tempo, um idoso (mais do que eu), magriço, de cor
negra, encostou-se no portão e me disse que, se eu viera para a Terapia, estava
uma hora adiantado. E a seguir, me respondeu que essa Terapia era uma sessão
geriátrica conduzida pelo doutor Abud para revigorar memórias gastas de idosos.
Então
o aparador de plantas (doutor Abud) veio abrir o portão de ferro. O magriço
entrou (pareceu ser íntimo da casa), pegou o tesourão largado e saiu catando
rebarbas, como se dando o acabamento final ao corte do cabelo das plantas.
Eu
me sentei numa mureta ao lado do doutor.
Ele
sabia que eu estava ali para pedir o seu voto (eu fui a casa de todos os
imortais) na eleição para a Academia Sergipana de Letras (vaga de Acrísio
Torres de Araújo), que disputava com o consagrado médico e escritor, Lúcio
Prado Dias.
“Olhe
Saracura, eu gosto demais de suas obras, já debatemos em nossa terapia trechos
de “Meninos que não queriam ser padres” e de outro que trata das aflições de
Aracaju, mas não posso votar em você desta vez. Lúcio Prado Dias, seu
concorrente, é meu amigo, e está sempre aqui me trazendo as novidades de nossa
classe, ele publica meus artigos nas revistas, sempre me trata com
especial distinção. Mas, na próxima vaga, se eu estiver vivo, meu voto será
seu.
O
que eu faria mais à sua presença?
Agradeci,
levantei-me, apertei sua mão, mas algo a segurou na dele e me soprou uma frase
que eu nem planejara: “Como posso participar da Terapia que vai haver hoje”.
Ele respondeu: “Está inscrito! Começa daqui a meia hora. Até os outros
pacientes chegarem, vamos conversar no meu escritório”.
E
participei das sessões de Terapia toda semana até quando, já eleito há mais de
ano para a Academia (vaga de Hunald Alencar, cadeira 10), esqueci até do
endereço da Clínica de meu amigo.
Ele
gozou de minha cara, quando o visitei para pedir voto para um de meus santos
que se candidatava à nova vaga da Academia Sergipana de Letras: “Nunca vou
negar qualquer pedido seu, Saracura, mesmo que você tenha esquecido de minha
Terapia, quando já apresentava significativas melhoras”.
Doutor
José Abud faleceu no dia 24/12/2024, todos soubemos após o fato consumado.
Hoje, dia 14/02/2025, a sessão da Academia Sergipana de Letras o homenageia com
o tradicional Necrológio, que ficou a cargo do confrade Lúcio Prado Dias. Deixo
o conteúdo anexado a esta estranha resenha.
E
já que Lúcio contou a história profissional, pessoal e intelectual do geriatra
Abud, reservo-me a apenas abordar um viés de sua bela poesia, publicada no
final dos anos 1970, quando manteve uma vibrante página cultural na imprensa de
Aracaju. E fixo-me nos poemas (haikais, me parecem) eróticos, sem serem
explícitos, pois cabe ao poema sugerir muito mais do que mostrar.
(Noite
de Amor, Canto Primeiro, página 33)
Noite.
Silêncio. Não se ouve nada.
Apenas
seus passos cuidadosos na escada
que
range de uma maneira
que
confrange seu coração,
pois
é feita de madeira da Bahia
em
um antigo casarão.
Desce.
Cheio
de desejo e de amor.
Empurra
a porta, apenas encostada,
e
se lança nos braços de sua amada
para
mais uma noite de amor.
xxx
(Receita,
Canto Primeiro, página 54)
Sabes
que o doutor sou eu.
Mas,
suplico-te:
escuta
meu lamento.
Quero
tua receita
infalível
de
amor sem sofrimento.
xxx
(Procura,
Canto Primeiro, página 85)
É
noite.
Teu
corpo procuro
qual
nau
pelo
vento açoitada
em
busca do porto seguro.
xxx
(Erótica,
Canto Novo, página 9)
Lá
fora a chuva e o frio à minha espera
No
seu leito
sempre
é primavera.
xxx
(Erótica
II, Canto Novo, página 11)
Mal
coberto pela camisola vermelha
teu
corpo
rubra
centelha.
xxx
(Teu
calor, Canto Primeiro, página 29)
O
frio que maldizes
é-me
bendito,
minha
amada.
No
aconchego de teus braços
não
quero de Deus mais nada.
xxx
(Tuas
Mãos, Canto Primeiro, página 57)
Tuas
mãos
em
silêncio
percorre
em meu corpo todas as escalas,
Com
elas executas sinfonias, marchas, sonatas.
Tuas
mãos benditas
dispensam
palavras.
xxx
(Dúvida,
do site de Antônio Miranda)
Como
aceitar que esta boca
que
tanto ofende, beije?
Que
esses punhos cerrados
se
abram em mãos que acariciem?
Que
esses olhos injetados de ódio,
se
tornem seremos e límpidos?
Que
esse corpo tenro de rancor,
se
abandone, lânguido de amor?
(Por
Antonio FJ Saracura, Aracaju, 2025fev23)
Anexo:
(abaixo).
Saudação do imortal Dr. José Abud em 24 de fevereiro de 2025, na Academia Sergipana de Letras,
em sessão conjunta da ASL, da Academia Sergipana de Medicina, da Academia Sergipana de
Educação e da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores – Sobrames
Pelo Acadêmico Lúcio Antônio Prado Dias
........................................................................................................................................................
Excelências,
Confrades, colegas e convidados
Familiares do Dr. José Abud
“ Eu aprendi que as pessoas vão esquecer o que você disse e vão esquecer o que você
fez, mas nunca esquecerão como você as fez sentir”.
Esta Academia de Letras, associada às Academias de Medicina e de Educação, além
da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores, que tenho a honra de presidir
nacionalmente desde outubro do ano passado, abre as suas portas para, conforme a
praxe, celebrar o necrológio de um filiado, no caso, o ilustre acadêmico José Abud, que
faleceu em 24 de janeiro deste ano, no Hospital Primavera, com 86 anos de idade, após
30 dias de internamento. Avisou-me sobre o falecimento o seu discípulo dileto, o médico
e escritor Antônio Claudio Neves, aqui presente, geriatra como ele e que o acompanhou
até os últimos dias. Tudo foi muito rápido, em poucas horas e com reduzida presença, o
seu corpo inanimado foi sepultado na Colina da Saudade. Pouquíssimos tiveram a
oportunidade de prestar-lhe uma última homenagem. Com a mesma discrição que viveu,
Abud partiu. Mas o legado deixado por ele é imensurável.
Hoje damos sequência de fato às primeiras homenagens a ele prestadas. Não se trata
apenas de um preito de veneração ante os despojos que restaram, fisicamente, do ser
humano que se foi, mas dedicar um culto de exaltação à memória imortal por ele deixada
para a posteridade, nos feitos de sua vida privada e pública, que não foram poucos.
Abud foi um homem múltiplo, de virtudes intelectuais, literárias, sociais e
humanísticas, plural, que viveu intensamente o seu tempo até os últimos dias de sua
vida, até o último suspiro. Somente a morte, amigos, foi capaz de detê-lo, de pôr um
ponto final na sua laboriosa vida, iniciada em 19 de fevereiro de 1938, nesta cidade.
E aqui abro um parênteses nessa história. Em 2019, a Sociedade Médica de Sergipe,
sob o comando do confrade José Aderval Aragão, então presidente da entidade, resolveu
reunir trinta verbetes biográficos selecionados entre os médicos que se projetaram na
vida sergipana, entre eles o Dr. José Abud. Além de gerar um volumoso livro o projeto
contou com depoimentos em vídeo dos trinta escolhidos. Um tesouro na nossa memória
médica. Sobre a obra, o nosso presidente José Anderson Nascimento, que fez a
apresentação, assim se manifestou: “ a escrita do livro amolda-se ao método
prosopográfco, já que atende a uma coletânea de biografias de médicos, professores e
acadêmicos, com detalhes que jamais teríamos conhecimento se não fosse pela leitura
delas.”
Na companhia de Francisco Rollemberg, Anselmo Mariano Fontes e Antonio
Samarone, além do próprio José Aderval, participei diretamente dessas entrevistas.
Portanto, o que vou contar para os senhores, José Abud nos contou.
Os seus pais, imigrantes sírios da região de Alepo, Kalil Abud e Jamile Abrahim
Abud eram primos carnais, que saíram de sua terra fugindo das guerras e buscando a
paz nos Estados Unidos, onde ficou por pouco tempo, decidindo vir para o Brasil e foi
em Sergipe que se estabeleceram e prosperaram nos negócios de armarinhos. Lembro,
ainda garoto, de um deles, localizado na Rua Laranjeiras, nas imediações da Igreja São
Salvador. O casal teve 14 filhos, dos quais o nosso Abud era o terceiro.
Precoce no aprendizado, estudou nos colégios Tobias Barreto e Nossa Senhora
Menina. Aos 11 anos, já estava no Atheneu Sergipense mas o curso científico concluiu
em Salvador, com 17 anos. Queria ser médico, Aracaju ainda não possuía uma escola
médica e então o pai dele o levou para a Bahia para terminar o curso científico e já se
preparar para o exame vestibular, sendo aprovado na Escola Baiana de Medicina e
Saúde Pública, integrante da Universidade Católica da Bahia, em 1955.
O curso médico foi feito com muita dedicação e sempre obtinha as melhores notas. Em
3 de dezembro de 1961, com apenas 23 anos, estava formado. Atendendo apelo da
família, retornou a Aracaju sendo recebido com desconfiança pelos colegas. Mas se
impôs pela competência e formação médica de excelência, atuando no Hospital Cirurgia
a partir de 1962. A Faculdade de Medicina de Sergipe já estava criada, dando os seus
primeiros passos. Tornou-se professor assistente de Propedêutica Médica, ao lado do
professor José Aloysio Andrade e quando este assumiu a direção da faculdade, em
substituição ao professor Garcia Moreno, Abud comandou a disciplina com a
participação ainda das professoras Zulmira Freire Rezende e Valnice Santos.
Seus alunos sempre reconheceram, aliado ao rigor e seriedade que imprimia nas suas
aulas teóricas, a excelência da sua semiótica na prática clínica, que ia da anamnese ao
exame físico, na valorização dos sintomas e na busca de sinais físicos através da
palpação, percussão e ausculta. Uma boa propedêutica era a base para toda a clínica,
impossível exercê-la sem o conhecimento semiótico amplo e profundo. Eu digo com
toda a segurança que os estudantes que se abraçaram com vigor aos ensinamentos desse
professor, tornaram-se bons médicos. Apesar de considerá-lo um professor duro e muito
exigente.
Veja o que diz por exemplo o seu aluno de toda a vida, Antonio Claúdio: “ o primeiro
contato com ele ocorreu como aluno de propedêutica no curso de Medicina da UFS.
Nessa fase conheci, como diversos outros médicos formados em Sergipe, o rigoroso,
detalhista e eficaz professor José Abud, famoso pela cobrança detalhada na prática em
avaliar um paciente. Assim pude aprender que pequenos detalhes podem resultar em
grandes respostas clínicas, colaborando para um diagnóstico mais rápido e com menor
custo. Por isso, o adjetivo eficaz. Discutia e ensinava-me detalhes para o cuidado
clínico com os pacientes. A cada dia surpreendia-me com tamanho conhecimento e
experiencia. Explicava o cuidado com uso de diurético e a dieta nos pacientes com
hepatopatia. Assim, aprendi a importância dos detalhes no manejo clínico do paciente.
Entendi, então, o porquê da grande importância nos detalhes. Tanto no paciente crítico,
quanto na aplicação de uma dieta preventiva ou da prática de atividade física adequada
a cada paciente.”
Em “O Médico”, a escritora Carmelita Pinto Fontes, que integra esta Academia, onde
ocupa a Cadeira 38, no âmago da sua sensibilidade poética, nos diz:
“ Ele entra, e a cama é uma cela onde a vida se concentra / entre a busca e a resposta
que vagueia...
A palavra escureceu / nos lábios e no peito / sem retórica. Ele pensa / e o corpo é um
vaso / escritura indecifrável / de mitos e de heróis abandonados.
A Certeza se escondeu entre as paredes e os vasos.
Ele sente / e só a vontade vê a onda do lençol/ seguindo o peito sem cansaço
Todo o resto do corpo.
É uma casa sem acesso.
Ele vê...
O olho fechando o corpo
O corpo fechando o quarto
O quarto fechando a vida, sem saída.
A claridade é medida
Pela fresta que se mingua para o nada.
E só a certeza vai
E vai e vê sozinha
Além da claridade
Do último caminho.
A noite está no quarto
A noite está na vida
Em suas mãos
Ele sabe
E o corpo se acende
E o vaso se decifra
E a vida se responde
Em toda carne
Única luz do quarto.”
À medida que os pacientes mais idosos iam surgindo no seu consultório, tomou uma
decisão. Iria se especializar nos cuidados aos mais velhos. Sua ação pioneira o levou a
instalar em Sergipe o Conselho Estadual dos Direitos do Idoso, sendo seu presidente.
Foi, ainda, o idealizador e fundador da ONG Universidade da Terceira Idade, em 1979,
depois transformada em Centro de Geriatria e Gerontologia de Sergipe. Trago mais uma
vez as palavras do colega geriatra, profissional competente e engajado com as ações da
terceira idade, Antonio Claudio: ‘Abud passou a ensinar-me geriatria em ambulatório
e nos casos hospitalares. Passou a responsabilidade de internar seus pacientes. O
primeiro caso no Hospital São Lucas. Alertou-me para não deixar “vícios” de serviços
médicos “contaminar” minha medicina. Motivou-me, também, a pintura em tela, falar
em público e na TV. Aprendi com Abud até o último dia. Tive a felicidade de ter tido um
Mestre amigo por cerca de 30 anos. Um verdadeiro Mestre.
A cada dia, surpreendia-me com o conhecimento de Abud. Parecia infinito. Ele
demonstrava conhecimento detalhado e atualizado em todas as áreas da Clínica
Médica. Grande conhecimento na prevenção de câncer, detecção e evolução. Em
endocrinologia detalhava toda fisiologia e sabia tudo sobre distúrbios hormonais,
sintomas e como tratar de forma medicamentosa e a conduta não medicamentosa. Era
um Mestre em tratar sem medicamentos. Orientava exercícios terapêuticos que
surpreendiam em seus resultados. Ou seja, evitando ao máximo a iatrogenia
medicamentosa. Pelos resultados e grandes demonstrações, com esforço aprendi as
lições. O Professor deixou um grande legado. A forma Abud de cuidar.
Mais que médico, mais que professor. Abud, apesar de ser conceituado por
muitos como rigoroso, sabia ouvir e aconselhar. Ao longo dos anos pude testemunhar
a grande bondade discreta do Professor. Com o tempo, quem conviveu com o mesmo,
pôde descobrir o motivo de suas exigências em relação a suas orientações. Ele desejava
intensamente, assim como cuidava dos jardins, que cada paciente melhorasse. Amava
a vida saudável de suas plantas e de seus pacientes. Também a sua própria saúde. Abud
adorava trabalhar com o som do piano de Chopin ao fundo. Dizia que a música fazia
bem às plantas. Sabia ouvir os conflitos emocionais e aconselhava com firmeza,
serenidade e sabedoria. Ensinou com exemplo que devemos sempre aprender algo
novo. O legado fica bem plantado. Abud era sensível, como todo poeta o é.”
Assim, mais que um professor, mais que um médico, José Abud foi um Mestre para
a vida de muitos. Ele viveu um estilo próprio de vida. Forma única de viver. Valorizava
a vida e os detalhes da vida.
O ano de 1979 registra ainda a estreia poética do nosso imortal com o lançamento de
Canto Primeiro, três livros num só: Alquimia, Cantares e Beduína. Empolga o
inesquecível Luiz Antonio Barreto, recém-eleito para a Academia Sergipana de Letras,
na sucessão do eminente professor Gonçalo Rollemberg Leite, fundador da Faculdade
de Direito. Luiz passa a ocupar a Cadeira 23 do sodalício, atuando com destaque e
grande envolvimento na Casa de Tobias. Disse na época o lagartense ilustre: “Eis o
poeta: José Abud é o seu nome. A poesia é, em si, uma surpresa. A poesia de José Abud
é uma boa surpresa para Sergipe. O médico, o professor, o nome afamado, todos
conhecem, mas a poesia ficou muito tempo recolhida às gavetas, afastada dos olhos dos
leitores. Agora José Abud, o clínico, é o poeta que saudamos no alegre saudar das
mesmas caminhadas. Canto Primeiro, com seus três livros, nos traz poesia pura e da
mais límpida fonte e a assinatura desse homem acanhado, fechado em sua ciência, ao
qual nem todos dão a sensibilidade de ser um cultor da natureza em sua esplendorosa
beleza verde...”
É próprio dos médicos tais surpresas, e muitos poderiam estar aqui com os seus
nomes: Antonio Garcia, Renato Mazze Lucas, Airton Telles, Garcia Moreno, lembrando
alguns dos que já se foram, sem esquecer os que aqui estão, exuberantes nomes que
dignificam as letras sergipanas, como Francisco Rollemberg, um gigante, Rômulo Silva,
José Marcondes, Luiz Carlos Andrade, Lauro Fontes, Déborah Pimentel, inteligências
raras, poetas e escritores que integram, quase todos, a confraria dos médicos escritores
sergipanos.
Volto a citar Barreto, apresentando o livro Canto Primeiro: José Abud é um poeta do
seu tempo, tanto pela forma, como pelo conteúdo. Sua agonia diante do mundo é, talvez,
a mesma agonia do cliente à beira da morte, diante do grande mistério. Seus poemas
sobre a vida de todos os dias, sobre as coisas de todos nós, batem fortes como o som das
carpideiras que no desespero da dor sentida, remoem os mesmos cantos, tons cansados,
vencendo os ouvidos. Mas também o amor, o grande símbolo, o amor, é tema
permanente da poética abudina.
Sintam, senhores e as senhoras, o poema Dúvida
Dúvida
Como aceitar
Que esta boca
Que tanto ofende
Beije?
Que estes punhos cerrados
Se abram em mãos que
Acariciem?
Que estes olhos
Injetados de ódio
Se tornem serenos
E límpidos?
Que este corpo
Tenso de rancor
Se abandone,
Lânguido,
Ao amor?
Ou então em Chamamento:
Chamamento
Vem,
Dá-me tuas mãos
Como se viesses de muito longe
Após muito tempo.
E juntos andemos pelas mesmas planícies
E juntos colhamos as mesma flores para
Enfeitar teus cabelos
E juntos olhemos as mesmas mansas águas
E juntos falemos com o nosso mesmo silêncio.
“O social ou o lírico, sempre a mesma força, muito embora concentre a sua presença
com mais vigor nos pequenos poemas dos três livros, nas sínteses poéticas que
consegue, como ninguém, realizar.
É gratificante ao anotador de jornais registrar o nascimento de mais um poeta,
revelando a sua poesia, dando mostra ao seu talento criando, anunciando a sua
chegada para conviver na mesma confraria sergipana que antes contava com o
inolvidável Abelardo Romero. Os poetas estão nas ruas, versejando a realidade
asfixiante e tirando beleza de cantos de sarjeta, com o poder de modificar as coisas aos
nossos olhos perplexos pela transformação, surpresos, como surpresos ficam os que
leem José Abud, um novo poeta sergipano”, arremata Luiz Antonio Barreto.
Canto Primeiro leva o médico poeta à Academia Sergipana de Letras, pelas mãos de
Orlando Dantas, Luiz Antonio Barreto, Ariosvaldo Figueiredo, Bonifácio Fortes, entre
outros. É então eleito em 10 de setembro de 1979 para a Cadeira 9 do sodalício, que
tem como patrono o notável médico e professor Maximino de Araújo Maciel. Sobre este
grande vate da cultura e das ciências sergipanas, conta-nos o nosso presidente José
Anderson Nascimento no extraordinário Perfis Acadêmicos, de sua autoria: “professor
de vasta cultura, angariou no meio intelectual, a reputação de erudito e notável
filólogo, pelos profundos conhecimentos com que ilustrou seu estudo sobre as
disciplinas jurídicas, médicas e naturais. O fundador da Cadeira foi Rubens de
Figueiredo Martins, irmão do poeta e pensador Jackson de Figueiredo. Católico
fervoroso, fundou e presidiu o Centro Dom Vital, em Aracaju.”
Com a sua morte em 1978, declarada vaga a cadeira pelo presidente da Academia
Urbano de Oliveira Neto, o nosso homenageado chega ao sodalício em concorrida
solenidade prestigiada por autoridades constituídas dos três poderes, entre eles o Dr.
José Machado de Souza, secretário de saúde no ato representando governador Augusto
Franco, em sessão solene ocorrida no auditório completamente lotado do Tribunal de
Justiça do Estado de Sergipe. Coube ao decano da Academia, o farmacêutico e maçom
Marcos Ferreira de Jesus, ex-prefeito de Aracaju, fazer a saudação ao neoacadêmico.
Atinge, pois, o poeta a sua imortalidade, o que nos faz reverenciá-lo no dia de hoje.
Meses depois, José Abud recebe o convite do jornalista e imortal Orlando Dantas para
coordenar, nas edições dominicais do jornal Gazeta de Sergipe, do qual era diretor geral,
uma página literária.
Orlando Dantas, dono do jornal, e que ocupava a Cadeira 39 desta Academia, hoje
ocupada pelo confrade Guilherme da Costa Nascimento, além de suas atividades
empresariais, destacou-se como político, jornalista e intelectual. É de sua lavra o livro
Vida Patriarcal de Sergipe, verdadeiro repositório de quadro da sociedade açucareira
sergipana. E sempre buscou, na Gazeta, abrir espaço para a cultura e intelectualidade
sergipanas. O exemplo disso foi a Revista Momento. Agora ele reconhecia o momento
de efervescência da Academia Sergipana de Letras e convida Abud para esta retomada.
Pois bem: ele aceita como missão a tarefa.
Em 9 de novembro de 1980 estreava o suplemento Arte e Literatura, do qual José
Abud era o editor geral. Como editores adjuntos, Ofenisia Freire e Luiz Antônio Barreto.
As colaborações eram enviadas para o consultório de Dr. Abud, que ficava localizado
na Rua João Pessoa, 320, salas 215/216 e o aviso: “Aos cuidados de José Abud”. O
suplemento embalou com graça os nossos domingos até 1988, quando circulou com o
número 416, na semana de 6 a 12 de novembro daquele ano, pelo menos como foi
observado por mim ao folhear a coleção completa que me foi doada por ele e hoje
compõe o acervo da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores – Sobrames Sergipe,
durante visita que fizemos, eu e o confrade da Academia Sergipana de Medicina Roberto
César Pereira do Prado, em sua residência, em 2014, numa fase em que ele se encontrava
ausente de quase tudo, envolvido apenas com o universo dos seus velhinhos e de suas
plantas, a quem amava incondicionalmente. José Abud já não frequentava as academias
literárias e científicas, andava sumido, isolado na clínica da Rua Propriá, onde passava
quase todo o dia, cercado de obras de arte, plantas e, especialmente, dos seus velhinhos,
companheiros de atividades lúdicas, físicas e de entretenimento.
Em 1994, a determinação do médico Gileno da Silveira Lima, liderando um grupo de
médicos idealistas, leva à instalação da sonhada Academia Sergipana de Medicina. Em
sessão solene ocorrida em 9 de dezembro daquele ano, no auditório da Sociedade
Médica de Sergipe, eram empossados os vinte e nove membros fundadores, entre eles,
José Abud, como membro fundador da Cadeira 18, tendo como patrono o seu estimado
colega e amigo, de saudosa memória, primeiro reitor da Universidade Federal de
Sergipe, João Cardoso do Nascimento Junior. Em 2018, na celebração do Jubileu de
Ouro da UFS e do Centenário de Nascimento do primeiro reitor, coube a José Abud
fazer a saudação oficial.
Ouvimos a médica psicanalista e professora Déborah Pimentel, que presidiu a
Academia Sergipana de Medicina, por dois mandatos. Abro parênteses.
“Falar sobre o Dr. José Abud é revisitar um tempo de aprendizado intenso e exigente,
uma época em que a propedêutica era ensinada com rigor e paixão por aqueles que
entendiam que a medicina não era apenas técnica, mas também arte. Tive o privilégio
de ser sua aluna na disciplina que molda a base de um médico: a propedêutica, a arte
de examinar, de ouvir, de perceber além do óbvio.
Quando fui presidente da Academia Sergipana de Medicina, a vida nos proporcionou
um reencontro e pudemos compartilhar mais momentos juntos. Ele já não era apenas
meu antigo professor exigente, mas um colega de letras e reflexões na Sociedade
Brasileira dos Médicos Escritores. Escrevemos lado a lado, contribuindo em todas as
edições publicadas, em todas as antologias. Entre elas, recordo com carinho o
lançamento da primeira antologia, VIDA, no Museu da Gente.
Foi naquela noite especial que meu conto VIDA, MORTE E O MORRER encontrou um
dos seus leitores mais exigentes e generosos. A narrativa, que descrevia a história de
uma professora de ética médica recebendo de um ex-aluno – agora seu médico
assistente – a notícia delicada de que estava com câncer, tocou profundamente Abud.
Ele, que era geriatra e conhecia o peso das más notícias, me disse algo que me
emocionou profundamente: a partir daquele dia, ele usaria o passo a passo da
comunicação descrito em meu conto como referência para lidar com seus próprios
pacientes.
Receber esse reconhecimento de alguém que sempre exigiu excelência foi um dos
momentos mais gratificantes da minha vida. Dr. Abud, ao lado do saudoso cirurgião
José Augusto Bezerra, foi um dos professores mais rigorosos que tive. Suas notas não
eram concedidas, eram conquistadas com suor, esforço e dedicação. Eu não era a mais
brilhante da minha turma, mas sempre fui disciplinada e estudiosa, e sempre privei da
confiança dos meus mestres. Entre eles, Abud, com seu jeito durão, me elogiava ainda
nos bancos escolares. Décadas depois, ao elogiar meu texto e reconhecer nele algo a
ser aplicado na sua prática médica, ele me emocionou e reafirmou o humanismo que
permeava sua atuação.
Hoje, ao homenageá-lo, celebro o legado de um professor que não apenas ensinou a
examinar um paciente, mas também a enxergá-lo em sua totalidade. A medicina se
despede de um grande mestre, mas sua essência permanecerá em cada um de nós que
tivemos o privilégio de ser tocados por sua sabedoria e generosidade.”
Na sua inquietude e busca por mais aperfeiçoamento, ele voltou aos bancos escolares
matriculando-se no curso de Educação Física da Universidade Tiradentes, graduando-
se em 2007, com quase 70 anos.
Por algum tempo organizou excursões temáticas, privilegiando os locais com rica
natureza, sintonizado com o meio ambiente. Minha mãe, Natália Prado Dias, na flor dos
seus 102 anos, por muitos anos seguiu a Universidade da Terceira Idade, participando
de saraus e viagens e ainda hoje guarda ternas lembranças.
No isolamento voluntário a que se submeteu, guardou as energias para conviver mais
próximo com a esposa, Ivani de Souza Abud, como companheiro e parceiro de todas as
horas, principalmente quando os primeiros sinais de uma insidiosa doença se abateu
sobre ela, tornando-o ainda mais companheiro e dedicado cuidador. Foi uma
convivência de quase 60 anos. Com Ivani, Abud teve duas filhas, Rosa Helena Abud,
odontóloga e Ana Karla de Souza Abud, química e professora universitária, aqui
presentes e a quem rendo as minhas homenagens.
Ouçamos o que diz Rosa: “Desde pequena admirava o trabalho do meu pai e o
envolvimento dele com seus pacientes. Provavelmente por isso decidi seguir a sua
carreira, mas logo percebi ser demais para mim e abandonei o curso. Apesar de toda
essa decepção, o meu pai me propiciou estudar fora, onde finalmente me encontrei
profissionalmente e constituí família, dando-lhe a sua única neta, Melissa Abud
Shimura. Aqui abro um parênteses, que no próximo mês estará celebrando 17 aninhos)...
E continua Rosa: Pena ele ter convivido tão pouco com ela pela distância.
Revê-lo no hospital numa condição tão frágil e diferente do homem forte e saudável da
última vez, apertou o meu coração. Fiz o possível para ficar com ele por algum tempo.
Foram dias intensos, nem sempre fáceis. Eu o via lutar para se recuperar, apesar do
diagnóstico, pensando na sua esposa e em cuidar dela. Sou muito grata a Deus por
esses dias, por poder cuidar do meu pai e por conseguir ressignificar a minha relação
com ele, o que me fez forte e me trouxe paz, após a sua partida”
A filha Ana Karla também se manifestou, quando a provoquei, falando diretamente para
o pai. Abro aspas:
“ Apesar de ser um curso natural, nunca pensei na sua partida. Você sempre foi como
um super-homem, buscando alimentação saudável, nunca se acomodando e parando de
estudar, além de continuamente praticar alguma atividade física.
Mesmo com todas as nossas diferenças, sinto em mim um vazio que ainda busco formas
de superar. Como você faz falta!!!
Ainda que tivesse sido o imaginário de alguns, a minha ansiedade e paixão por números
e misturas não me fizeram seguir a medicina. E, ainda que não tão implícito, o Sr. não
se opôs e permitiu que vivesse a minha independência e os meus sonhos. Apenas quando
foi preciso pediu para que eu voltasse e fosse um porto seguro para vocês.
Na última década e após a pandemia pude ver ainda mais a cumplicidade entre o Sr. e
D. Ivani e o quanto buscava fazê-la estar bem. Nem quando esteve doente deixou de
cobrar os cuidados com ela e, até os últimos dias, fez questão de não a preocupar. E
sempre foi assim, nunca preocupar ninguém com os seus problemas.
Além dela, suas tres grandes paixões foram, as artes, a terceira idade e as plantas. Nas
artes, a valorização de artistas locais, a literatura e a poesia. Mas creio que a terceira
idade foi o seu ideal de vida, sempre com um olhar de valorização, cuidado e bem-estar
do idoso, além da consulta médica especializada. Buscou junto a políticos a criação do
Conselho Estadual do Idoso, seu estatuto e a Universidade para a 3ª idade. Também
criou o Centro de Geriatria e Gerontologia (CGG), onde proporcionou viagens
nacionais e internacionais, teatro, canto, pintura, saraus, festas e atividade física,
propiciando aos idosos viverem a melhor idade. E era incrível como isso o
transformava, deixando-o mais leve. E as plantas, a quem eu chamava de “suas filhas”,
foi sempre o seu hobby, onde insistia em estudar e cultivar os mais diferentes tipos de
frutas e flores.
Espero poder honrá-lo a cada dia, seja tentando manter acesa a sua memória ou no
cuidado com a minha mãe” (fecho aspas).
Graças ao apoio e incentivo do saudoso confrade Fedro Portugal, recentemente
falecido, e que presidia a Academia Sergipana de Medicina, reativamos a Sociedade
Brasileira de Médicos Escritores em Sergipe e em 2017 resolvemos lançar a primeira
antologia de contos, crônicas e poesias dos médicos escritores sergipanos. Nasceu assim
a antologia VIDA. Havíamos decidido que nesta edição prestaríamos homenagem a um
médico escritor em vida. E o nome escolhido foi o dele. Fomos lhe comunicar a decisão.
Protegido pelo muro da timidez, não quis aceitar a entrevista. Não desistimos e mesmo
sem ele aquiescer, Vida foi lançada em 18 de outubro de 2017, no hall do Museu da
Gente Sergipana. Para nossa surpresa, ele chegou, amparado por uma bengala que usava
em função de uma alteração cartilaginosa do joelho, e foi o centro das atenções, para
gáudio de todos que se fizeram presentes na solenidade que celebrava o Dia do Médico.
A partir dali, a cada edição anual das antologias, José Abud foi presença constante. Em
Humanidades, lançado em 2018, ele brilha com Devaneio.
Quisera ter condições de te amar docemente
Esquecidos de tempo
Ouvirmos, juntos, o murmúrio do vento
Ah! Como eu queria a teu lado vê-las,
As pálidas estrelas!
Talvez com a tênue claridade,
Tu me permitisses, pela primeira vez
Ver-te, deslumbrante, em tua nudez!
Quisera ter, em meus braços,
Teu corpo, coberto de sargaços,
Então eu o iria inteirinho beijar
Sentindo o gostinho, salgado do mar...
E, bafejados pelo vento,
Sob a luz cálida do firmamento,
Encharcados pelas águas do oceano,
Homem e mulher primitivos,
Mistura de demônio e de anjo
Eu despertaria, com minhas carícias e beijos,
Um a um, os teus mais recônditos desejos.
Mas foram os haikais que predominaram na sua participação em Humanidades, cada
página com um tema central. Na primeira, a singela explicação: Em apenas três linhas,
não há necessidade de mais, toda a singeleza dos haikais. E conclui ao pé da página:
Voltar, no tempo, para que? Talvez nos desencontros da vida, não mais encontrasse
você.
Nas palavras de Luiz Antonio Barreto....Abud aparece fazendo surpresa, com uma
poesia, e disposto a fazer nome por justamente equilibrar forma e conteúdo no
cuidadoso discurso que pode preferencialmente lembrar o velho Haicai japonês que o
mestre Matsuo Bachô, na segunda metade do século XVI, enriqueceu, aperfeiçoado pela
rima introduzida pelo modernismo brasileiro (parece um paradoxo um poeta
modernista criar rima para o Haikai quando o modernismo acabou com a rima, através
de Guilherme de Almeida, fixando a concordância de sons finais entre o primeiro e o
terceiro verso.....Entretanto, José Anderson Nascimento, em sua crítica sobre a obra de
José Abud nos Perfis Acadêmicos, nos diz” “O Modernismo dispensou a
obrigatoriedade da rima, entretanto, a sonoridade causada por ela nunca foi de toda
desprezada pelos poetas até hoje.”
José Abud participou ainda das antologias Sentidos, Sinais, Prescrições e Emoções,
sempre mesclando os seus haikais com poemas inéditos ou tirados do fundo do baú de
sua sensibilidade. Em um gesto de desprendimento, há alguns anos, doou boa parte dos
seus livros para bibliotecas de escolas públicas. Lembro bem nós três, eu, Anderson e
Jorge Carvalho recolhendo e comentando sobre alguns títulos encontrados, num final
de manhã na Rua Propriá. A caminhonete ficou cheia de livros na busca dos seus
leitores.
Não daria por fim sem ouvir Dirce Nascimento, flor que desponta nos jardins da nossa
Academia e que integra o Movimento Cultural Antonio Garcia Filho. Ele nos traz todo
o lirismo do Dr. Abud nos poemas que se seguem:
PRECE e MIRAGEM
Encerrando a minha fala, colho em Sinais, a antologia lançada em 2020, em plena
pandemia do Covid-19, a sua última palavra nesta esplendorosa sessão:
Por que fazer poesia, se tanta coisa, neste mundo, nos asfixia?
Se você fica ou vai embora, não importa. Meu amor é sempre teu, a toda a hora.
Um tapete luminoso sobre o mar, estende a lua, faceira, para o meu sonho surfar.
Plantei saudade, e ela sumiu do meu jardim
A lembrança, de ti, porém, qual erva daninha, jamais se afasta de mim.
Noite longa, sono curto, você ausente, de saudade, tenho um surto.
A maior realização de um homem não é uma coisa qualquer.
É a conquista do amor, sincero, de uma mulher!
Este é o homem, o acadêmico um dia eleito para esta Casa como “imortal”, por suas
ideias, pela obra literária e humana, pelo testemunho de amor à cultura e ao seu Estado.
O seu nome merece, deveras, ficar por todas as gerações que hão de vir, como um título
de glória para Sergipe, para o seu povo e para a história das academias que promovem
este evento, que o exibirá sempre com veneração e orgulho.
Muito obrigado pela atenção.
Aacaju, 24 de fevereiro de 2025