COIVARA DA MEMÓRIA, Francisco
J. C. Dantas
Por Antônio FJ Saracura
*
Sempre folheava livros de Francisco Dantas, lendo pedacinhos aqui e acolá.
Há cerca de um mês, li
inteiro “Caderno de Ruminações” e, agora, criado o gosto, “Coivara da Memória”, livro celebrado
por ícones da crítica.
É livro massudo. O fraseado segue um padrão, quase todo do mesmo tamanho. Frases
gordas, com gosto de melado de engenho que escorre preguiçoso, já açucarando. Buriladas
por ourives suíço (que seja de Itabaiana ou do Riachão). Escovadas com zelo para
produzirem um brilho raro. Boa parte dos adjetivos são redondos, fatais, de som
fechado (página 214), como mortais tacapes tupinambás.
Após pegar o ritmo da música,
o texto escorrega macio, com um rio de planície, enchendo os olhos, e segurando
guloso toda a atenção. Mas há momentos que toda aquela água se transforma em um
regato cristalino cantando entre pedrinhas gastas do leito apertado. Outros que
encachoeira arrastando o que encontra, até o surpreendido leitor.
As reminiscências (a
vida pregressa do narrador), bem contadas, vão urdindo um mundo patriarcal
violento, glorioso, decadente. É um romance denso que precisa ser estudado
devagar, levantada cada palavra, cada entrelinha, examinada a cama, a
composição, o efeito devastador de seu uso combinado. Francisco Dantas não
precisa de pincéis, ele desenha as imagens com palavras. A um sopro seu, elas ganham
vida e transformam a fantasia em realidade e vice-versa. É um mago. Só os magos
podem libertar a magia das palavras presas pelo pouco uso ou uso inadequado.
“E minha
avó, além de cumprir toda as obrigações de dona de casa, era, também, desde a
hortelã que amanhava a terra para o cultivo de suas flores, ervas e verduras,
até a artesã amestrada, cujas mãos de exímia bordadeira sabia arrematar com
perfeição tudo o que produzia de útil para o consumo da gente. Lutava com tudo
isso com a intenção de ajudar meu avô, de remediá-lo contra os gastos sem
retorno de que ele tanto se queixava à medida que ia ficando mais velho,
arrepiado contra o mundo...”(118-119).
Replico para sentirmos
o poder da palavra bem usada. Pérolas assim estão espalhadas nas 395 páginas dessa
coivara ardente.
“E
via os tios aparecerem todas as semanas, obsequiosos, murmurando ou trocando
segredinhos entre si, fazendo a ronda de urubus, e volta e meia dirigindo
insolências aos que lhes eram desafetos, como se realmente já estivessem
empossados do Murituba” (318).
Pessoalmente, fiquei
gratificado, inclusive por me ter encontrado no livro com amigos rústicos
(palavras e expressões que valem tesouros). Eles povoaram minha infância de
poesia e, por motivos de etiqueta e frescura, depois na vida, os releguei a um meio
esquecimento: “veio vindo... veio vindo”, “balangar (balangando)”,
“aborrecimento medonho”, “embastida”, “ventas canadas de fumaça”, muito
azuretado da vida”, “filipa de banana”, “puxar cobra para os pés”, “capotes
coloniais”, “desasnara (que eu chamava desarnara)”, “ moças estampadas nas
folhinhas (a glória ao adolescente seco)”, “desgramada”, “um homem de
dimensões”, “gente posuda”(se afaste de mim!)...
O livro é inesgotável.
Cada ideia que brilha é o link para mil outras que o leitor jamais dará conta
de mastigar corretamente, a não que releia e releia.
É certo que discuti e
briguei com o autor aqui de ali. Mas, ao final, fiz as pazes. E até pedi
desculpas, o que foi fácil pela ausência do corpo. Eu é que, agoniado como sou,
ainda não tinha alinhado adequadamente minha pisada, certamente me apressei
demais.
Viva o Povo Brasileiro,
Sargento Getúlio, Grande Sertão Veredas, Vidas Secas, Coivara da Memória, Quatro
Fazendeiros...
Eu queria muito estar
nesse meio.
(Aracaju, dezembro de 2012,
revista em 2020mar13).
(*) Escritor das
Academias Itabaianense e Sergipana de Letras.
Apresentada na ASL em 2020
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