quarta-feira, 25 de março de 2020

COIVARA DA MEMÓRIA, Francisco J. C. Dantas


COIVARA DA MEMÓRIA, Francisco J. C. Dantas, Estação Liberdade (2001, terceira edição),isbn: 85-85865-13-x (9 788585 865139)


COIVARA DA MEMÓRIA, Francisco J. C. Dantas

Por Antônio FJ Saracura *

Sempre folheava livros de Francisco Dantas, lendo pedacinhos aqui e acolá. 

Há cerca de um mês, li inteiro “Caderno de Ruminações” e, agora, criado o gosto, “Coivara da Memória”, livro celebrado por ícones da crítica.

É livro massudo. O fraseado segue um padrão, quase todo do mesmo tamanho. Frases gordas, com gosto de melado de engenho que escorre preguiçoso, já açucarando. Buriladas por ourives suíço (que seja de Itabaiana ou do Riachão). Escovadas com zelo para produzirem um brilho raro. Boa parte dos adjetivos são redondos, fatais, de som fechado (página 214), como mortais tacapes tupinambás.

Após pegar o ritmo da música, o texto escorrega macio, com um rio de planície, enchendo os olhos, e segurando guloso toda a atenção. Mas há momentos que toda aquela água se transforma em um regato cristalino cantando entre pedrinhas gastas do leito apertado. Outros que encachoeira arrastando o que encontra, até o surpreendido leitor.

As reminiscências (a vida pregressa do narrador), bem contadas, vão urdindo um mundo patriarcal violento, glorioso, decadente. É um romance denso que precisa ser estudado devagar, levantada cada palavra, cada entrelinha, examinada a cama, a composição, o efeito devastador de seu uso combinado. Francisco Dantas não precisa de pincéis, ele desenha as imagens com palavras. A um sopro seu, elas ganham vida e transformam a fantasia em realidade e vice-versa. É um mago. Só os magos podem libertar a magia das palavras presas pelo pouco uso ou uso inadequado.    

 “E minha avó, além de cumprir toda as obrigações de dona de casa, era, também, desde a hortelã que amanhava a terra para o cultivo de suas flores, ervas e verduras, até a artesã amestrada, cujas mãos de exímia bordadeira sabia arrematar com perfeição tudo o que produzia de útil para o consumo da gente. Lutava com tudo isso com a intenção de ajudar meu avô, de remediá-lo contra os gastos sem retorno de que ele tanto se queixava à medida que ia ficando mais velho, arrepiado contra o mundo...”(118-119).

Replico para sentirmos o poder da palavra bem usada. Pérolas assim estão espalhadas nas 395 páginas dessa coivara ardente.

“E via os tios aparecerem todas as semanas, obsequiosos, murmurando ou trocando segredinhos entre si, fazendo a ronda de urubus, e volta e meia dirigindo insolências aos que lhes eram desafetos, como se realmente já estivessem empossados do Murituba” (318).

Pessoalmente, fiquei gratificado, inclusive por me ter encontrado no livro com amigos rústicos (palavras e expressões que valem tesouros). Eles povoaram minha infância de poesia e, por motivos de etiqueta e frescura, depois na vida, os releguei a um meio esquecimento: “veio vindo... veio vindo”, “balangar (balangando)”, “aborrecimento medonho”, “embastida”, “ventas canadas de fumaça”, muito azuretado da vida”, “filipa de banana”, “puxar cobra para os pés”, “capotes coloniais”, “desasnara (que eu chamava desarnara)”, “ moças estampadas nas folhinhas (a glória ao adolescente seco)”, “desgramada”, “um homem de dimensões”, “gente posuda”(se afaste de mim!)...

O livro é inesgotável. Cada ideia que brilha é o link para mil outras que o leitor jamais dará conta de mastigar corretamente, a não que releia e releia.

É certo que discuti e briguei com o autor aqui de ali. Mas, ao final, fiz as pazes. E até pedi desculpas, o que foi fácil pela ausência do corpo. Eu é que, agoniado como sou, ainda não tinha alinhado adequadamente minha pisada, certamente me apressei demais.  

Viva o Povo Brasileiro, Sargento Getúlio, Grande Sertão Veredas, Vidas Secas, Coivara da Memória, Quatro Fazendeiros...

Eu queria muito estar nesse meio.

(Aracaju, dezembro de 2012, revista em 2020mar13).

(*) Escritor das Academias Itabaianense e Sergipana de Letras. 

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