quarta-feira, 25 de março de 2020

UMA JORNADA COMO TANTAS, Francisco Dantas,


UMA JORNADA COMO TANTAS, Francisco Dantas, 2019, Alfaguara, 239 página, isbn 978-85-5652-093-7.

É a narração de uma viagem entre um povoado (Borda da Mata) e a cidade que o detém (Rio-das-Paridas). Menos de quatro léguas. Em um carro de boi e numa época de intensa chuva (meio do inverno). Assim, a estrada é um atoleiro sem fim. Levando uma mulher, à morte, com um menino enganchado no útero, que as parteiras do povoado não deram jeito. A esperança é que se chegue à tempo de transportá-la à maternidade da capital (Aracaju) em uma ambulância que há no posto médico do Rio-das-Paridas.

O autor é um dos grandes romancistas da língua portuguesa. Autor de clássicos como Coivara da Memória e os Desvalidos... Detentor de prêmios, entre os quais: o Internacional da União Latina de Literaturas Românticas (2000, em, Palermo/ Itália).

E não deixa por menos. Esmiunça o carro de boi, disseca desde o carreiro até canto dolente do eixo de baraúna nos cocões de sucupira. As pessoas de uma sociedade perdida no fim do mundo com seus caprichos, manias, jeito de ser, sabedorias. A solidariedade e a discriminação política, econômica, geográfica. Os equipamentos que suportam esse povo desprezado.

Inicialmente, me causou espanto Madrinha, às êtas, com um filho encalacrado imerso numa hemorragia sem tamanho, embarcar em um carro de bois, trem lento demais e sem molejo nenhum.

Os fios do telégrafo passavam por cima do povoado mas nem desciam para ouvir a dor dos moradores. Todos esperavam que a parteira Sinhá Amália desatasse o nó e, quando entregou os pontos, não havia mais tempo demandar Valdomiro montado em Castainho buscar socorro. Seriam três viagens. Por que não se pegou um carro de feira ou a marinete fantasma? A chuva que já vinha caindo há dias, desmanchou as estradas, isolou a comunidade.

Sobrou o carro de bois do enigmático Zé Carreiro: “O mundo pode desabar a sua volta desde que não afete a pachorra de seus bois”. Fiquei fã.

Teodoro é o pai do menino enganchado. Um gigante fragilizado. Ruivo como um irlandês e inventivo como um judeu na Matapoã. Carpina, marceneiro, escultor. “Cavacos e lascas menores avoam aleatoriamente e zunem no ar parado... O fio do machado abre uma boca funda que fere até o âmago”. Delícias que só um bom doceiro consegue cozer.

Encontrei velhos amigos (palavras e expressões, como em Coivara da Memória), alguns desinibidos e cheios de graça; outros, eu sabia que eram amigos, mas não atinava onde os vira na vida. Tive que ir ao dicionário. Eles me contaram histórias de um tempo junto. E mais outros que eu sentia que eram amigos, pelo som, pelo jeitão, mas, mesmo depois de vasculhar os léxicos, não achei nada que os ligasse formalmente a mim. Adotei-os e os guardei no mesmo compartimento dos demais amigos: “Numa boa, caindo pelas tabelas, não se manca, ferrado, bungada, gastura, quinto dos infernos, ofendido de cobra, cortado, maninho, punir por ela, quebrar a frieza, filho da mãe...”

Há trechos do livro que o leitor não respira, arrebatado. Eu tenho o fôlego curto pela idade e por sequelas de remédios errados que tomei, corri risco sério de vida. Mas morreria feliz, iria para o Reino Celeste que tia Amália não se cansa de encomendar.

“De repente, escutamos o estrépito de um animal a galopar em nossa retaguarda... Era Saturnino, envolto em um capote colonial, salpicado de lama, e amontoado numa burra alazã, Medalha.”

Eu saltei da rede (onde lia o livro) para ver de perto. Abri a boca, meu ar sumiu.

“Ele salta da burra, endireita os óculos que lhe dançam na cara, com uma haste mais curta remendada a arame, mal amarrado sobre as orelhas. Os vidrinhos das lentes sujos demais.”

Isso é ouro puro em pó, que entope o nariz do cristão.

O carro de boi é engolido pela cratera alagada na vereda das matas do Balbino. Não pode retornar, fazer curva ou seguir frente. Atolado até a tampa. O velho Saturnino exige o impossível. O embate entre o forte e o fraco. Medição de força. Há um momento em que o poder (força maior de Saturnino) não manda mesmo. Como o silêncio é potente! E Zé Carreiro, com uma reza primitiva, faz o improvável milagre.

E a boiada de nelore investe contra os bois de carro (Página 155). Que ciúme besta! Meu sangue parou. Esturros viajam pelo vento, desafiadores. E o rei vem balançando a toalha para briga. Zé Carreiro com uma vara de ferrão não é nada. Mas ele sabe falar a língua dos brutos. Tiro o chapéu e abano meu rosto em busca de ar.

Finalmente o Rio-das-Paridas (meio do capitulo 23). Saturnino (sempre com os óculos lêfos e embaçados) entrega a rédea da burra a Valdomiro e corre ao posto médico, adiantar o socorro à Madrinha.

Até o último parágrafo do livro (vinte e três páginas cheias) meus pulmões retrancaram. Não ia perder nem um suspiro do triller. Ô Canutinho filho de uma puta! É como qualquer um que tem o poder, desde o rei, ao mendigo de rua. Mas a prepotência desse prefeito nojento ultrapassou as raias do impossível. Se Medalha não lhe tivesse comido um naco do braço (foi pouco) eu, mesmo como leitor, lhe faria uma desfeita qualquer. Até Valdomiro, menino frouxo, que só vai prestar para ser padre ou professor, ensaia uma brabeza, que dá em nada.

E aparece Teodoro (São Jorge, Gandalf e Aragon, em uma só pessoa) como o cavaleiro salvador, “cortando” o cavalo de Manuelzinho do Salgado. A Ambulância sem chave (escondida pelo prefeito), sem o cabo de bateria e o platinado (idem) é transformada em um bola de lata.

E passa roncando, à frente do posto, o jipe de um exausto fazendeiro retornado da roça. Aracaju é longe mas o céu ainda é mais.

Eu não morri sufocado, mas Teodoro vai sofrer o diabo no próximo romance da série; talvez ele morra.

(Aracaju, 21 de março de 2020, Antônio Saracura)

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