sábado, 28 de março de 2020

CABO JOSINO VILOSO, Francisco J. C. Dantas


CABO JOSINO VILOSO, Francisco J. C. Dantas, Planeta,2005, 150 páginas, isbn 978-857-76-650-676 (85-7665-067-3)


De início, senti o cheiro longe dos descampados e dos personagens de Juan Rulfo. Logo a seguir, o singular perfume do Cabo Josino Viloso (nada a ver com a catinga horrível de seu corpo suado: “Puxa a gola da túnica, assopra nos cabelos da titela; de volta, recebe o bafo morno que fica exalando o fartum ardido em sua cara (página 17)” ficou tão familiar que me deixei embeber e segui em frente na leitura.

 

Este Cabo da Polícia Baiana é um homem inseguro (eu também) até ante o conhecido. Ora, todos os urubus cagam em sua cabeça; ora, São Migué o favorece inesperadamente. Quando vai ser massacrado pelos malfazejos convictos do antro chamado Alvide, o santo levanta o queixo deles... A cabeça do Cabo era um malho de pedra maciça cravado nos ombros. Todos olham e se benzem atrapalhados. Aquele intruso bruto, no jogo de cabeça domingueiro (similar a luta de carneiros marrentos do Cazaquistão) seria a desgraça dos adversários. O que não provocaria uma cabeçada dele na boca do rim de um infeliz. E resolvem recuar. Era a primeira vitória, o início da improvável amizade, que começa com o respeito (temor).

 

O Cabo, inconscientemente, cria seus mundos de sofrimento e de consolo. Sua mente reverte o revés em vitória. Ele aumenta o poder do inimigo para que a derrota possa ser vista, por ele mesmo, como até uma pequena vitória. Está fadado ao fracasso, mas surpreende com o sucesso. Comemora os percalços, banaliza-os. Gaba-se porque não foi recebido à bala ou à cacetada no povoado (respeito/temor dos moradores). A indiferença dói mas não tanto. E, em Zeca Papão, que o esnobou, encontra mérito: “parou suas cobranças para vir falar comigo um tiquinho!”

 

A revolução de 1964 chegou a Alvide caçando comunista. O Cabo se borrou de medo. Esse País perde tempo à toa! Depois, quando os caçadores foram embora, fanfarreou grosso (de longe, óbvio) esnobando-os.

Lembrei-me de  meu avô Totonho Bernardino quando Lampião levantou o acampamento do riacho das Flechas.

 

Francisco Dantas, pela boca de um ou de outro personagem, especialmente pela lógica primitiva e lúcida de Josino Viloso, vai protestando contra os desmandos do Brasil. Heróis não reconhecidos; aproveitadores enriquecidos; a imbecilidade pisando na cabeça do mérito. O trabalho dobrado da polícia, que prende e a justiça solta. As promessas fúteis dos políticos... E aí, o Cabo entra na variante e distribui empregos fictícios na Polícia Baiana aos desconfiados paisanos. Quem não deseja um futuro digno aos filhos?

 

E Papão (ótimo nome) propõe um negócio de ouro: em vez de jogar o meliante em um buraco tenebroso (que invenção da gota serena!), devia cobrar fiança. O Cabo reage, bate pé contra, e pede pra explicar melhor. E, mais à frente (não sei se pagando royalties à Zeca) pratica a fiança. Há aqui a aplicação da lei da compensação: se você não me paga um salário digno, eu arrumo um jeitinho de me recompensar. Ou não?

 

O que não faz o amor que se revela tardio?

O Cabo mergulhou na cachaça e nas artes, virou escultor. Os três são sempre bons parceiros (paixão, bebida e artes).

 

Francisco Dantas constrói uma obra bem humorada, erudita, digna. Uma obra universal. O gênero picaresco comemora. Há Cancão de Fogo, Mazaropi, Malazarte, João Grilo... E muito mais. Há espaço de sobra para boas gargalhadas, para a arte da convivência e para a arte paciente da negociação. Há o linguajar padronizado impecável e o informal (oral) bruto e belo. Consagra nossas palavras fortes, que o povo simples usa, e que não fazem arrodeios. Os dicionaristas têm que as catar para enriquecer seus léxicos limitados. Estão na urdidura da trama, como fios de ouro entranhados. Penso que é uma ação corajosa e louvável e marca registrada do mago do Riachão.

 

Leiam Cabo Josino Viloso (a Estante Virtual possui vários exemplares à venda).

 

Leiam a literatura sergipana! (Eu não podia me deixar de fora).

 

(Eu vivo no meio intelectual de Sergipe (academias de letras e encontros literários) desde 2008 quando publiquei Os Tabaréus do Sitio Saracura. Nesse tempo todo, ninguém me recomendou a leitura de Cabo Josino Viloso.  Sequer falou desse pequeno grande livro que, desde esse ano (ou um pouco depois) esteve  na minha fila de livros a ler e foi passado pra trás algumas vezes.

Por que será?)

 

 

Antônio Saracura, 2020mar26, em Aracaju (na quarentena do Corona).

 

 

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                            





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