De início, senti o cheiro longe dos descampados e dos personagens de Juan Rulfo. Logo a seguir, o singular perfume do Cabo Josino Viloso (nada a ver com a catinga horrível de seu corpo suado: “Puxa a gola da túnica, assopra nos cabelos da titela; de volta, recebe o bafo morno que fica exalando o fartum ardido em sua cara (página 17)” ficou tão familiar que me deixei embeber e segui em frente na leitura.
Este Cabo da Polícia Baiana é um homem
inseguro (eu também) até ante o conhecido. Ora, todos os urubus cagam em sua
cabeça; ora, São Migué o favorece inesperadamente. Quando vai ser massacrado
pelos malfazejos convictos do antro chamado Alvide, o santo levanta o queixo
deles... A cabeça do Cabo era um malho de pedra maciça cravado nos ombros.
Todos olham e se benzem atrapalhados. Aquele intruso bruto, no jogo de cabeça
domingueiro (similar a luta de carneiros marrentos do Cazaquistão) seria a desgraça dos
adversários. O que não provocaria uma cabeçada dele na boca do rim de um
infeliz. E resolvem recuar. Era a primeira vitória, o início da improvável
amizade, que começa com o respeito (temor).
O Cabo, inconscientemente, cria seus
mundos de sofrimento e de consolo. Sua mente reverte o revés em vitória. Ele
aumenta o poder do inimigo para que a derrota possa ser vista, por ele mesmo,
como até uma pequena vitória. Está fadado ao fracasso, mas surpreende com o
sucesso. Comemora os percalços, banaliza-os. Gaba-se porque não foi recebido à
bala ou à cacetada no povoado (respeito/temor dos moradores). A indiferença dói
mas não tanto. E, em Zeca Papão, que o esnobou, encontra mérito: “parou suas
cobranças para vir falar comigo um tiquinho!”
A revolução de 1964 chegou a Alvide
caçando comunista. O Cabo se borrou de medo. Esse País perde tempo à toa!
Depois, quando os caçadores foram embora, fanfarreou grosso (de longe, óbvio)
esnobando-os.
Lembrei-me de meu avô Totonho Bernardino quando Lampião
levantou o acampamento do riacho das Flechas.
Francisco Dantas, pela boca de um ou de
outro personagem, especialmente pela lógica primitiva e lúcida de Josino
Viloso, vai protestando contra os desmandos do Brasil. Heróis não reconhecidos;
aproveitadores enriquecidos; a imbecilidade pisando na cabeça do mérito. O
trabalho dobrado da polícia, que prende e a justiça solta. As promessas fúteis
dos políticos... E aí, o Cabo entra na variante e distribui empregos fictícios
na Polícia Baiana aos desconfiados paisanos. Quem não deseja um futuro digno
aos filhos?
E Papão (ótimo nome) propõe um negócio de
ouro: em vez de jogar o meliante em um buraco tenebroso (que invenção da gota
serena!), devia cobrar fiança. O Cabo reage, bate pé contra, e pede pra
explicar melhor. E, mais à frente (não sei se pagando royalties à Zeca) pratica
a fiança. Há aqui a aplicação da lei da compensação: se você não me paga um
salário digno, eu arrumo um jeitinho de me recompensar. Ou não?
O que não faz o amor que se revela tardio?
O Cabo mergulhou na cachaça e nas artes,
virou escultor. Os três são sempre bons parceiros (paixão, bebida e artes).
Francisco Dantas constrói uma obra bem
humorada, erudita, digna. Uma obra universal. O gênero picaresco comemora. Há
Cancão de Fogo, Mazaropi, Malazarte, João Grilo... E muito mais. Há espaço de
sobra para boas gargalhadas, para a arte da convivência e para a arte paciente
da negociação. Há o linguajar padronizado impecável e o informal (oral) bruto e
belo. Consagra nossas palavras fortes, que o povo simples usa, e que não fazem
arrodeios. Os dicionaristas têm que as catar para enriquecer seus léxicos
limitados. Estão na urdidura da trama, como fios de ouro entranhados. Penso que
é uma ação corajosa e louvável e marca registrada do mago do Riachão.
Leiam Cabo Josino Viloso (a Estante
Virtual possui vários exemplares à venda).
Leiam a literatura sergipana! (Eu não
podia me deixar de fora).
(Eu vivo no meio intelectual de Sergipe
(academias de letras e encontros literários) desde 2008 quando publiquei Os
Tabaréus do Sitio Saracura. Nesse tempo todo, ninguém me recomendou a leitura
de Cabo Josino Viloso. Sequer falou desse pequeno grande livro que, desde
esse ano (ou um pouco depois) esteve na minha fila de livros a ler e foi
passado pra trás algumas vezes.
Por que será?)
Antônio Saracura, 2020mar26, em Aracaju
(na quarentena do Corona).
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