sábado, 27 de junho de 2020

A GUERRA NÃO TEM ROSTO DE MULHER, Svetylana Aleksiévitch,


A GUERRA NÃO TEM ROSTO DE MULHER, Svetylana Aleksiévitch, 2016, Companhia das Letras,tradução do russo (Cecília Rosas), 390 páginas, isbn 978-85-359-2743-6


(Preâmbulo)

Livro de autoria da jornalista russa premiada com o Nobel de Literatura de 2015. É extensa e minuciosa reportagem construída com depoimentos de mulheres que lutaram na Segunda Guerra Mundial, em toda a Rússia. E que sobrevieram. A maioria na linha de frente: dirigindo tanques, Snipes laureadas, na infantaria, enfermeiras, médicas, telefonistas, espiãs, engenheiras, seguranças, cozinheiras, costureiras...

Muitas nem voltaram para casa, outras retornaram inválidas, outras traumatizadas. Boa parte retornou com o peito coberta de medalhas pelo heroísmo em campo. E, depois, com a paz, amoleceram o coração e foram mães; tiveram e criaram filhos para repovoar a Rússia devastada.

Os alemães chegaram ao em nossos lares, matando, inclusive os que rendiam. Como suprir as fileiras? As mulheres faziam questão de ir para o front defender a pátria, expulsar os invasores e, depois, devolvê-los à suas casas na Alemanha.

Um exército de saias, espetacular.

A autora fala do caminho percorrido para compor a obra: “Segui a pista da vida interior, fiz anotações na alma. O caminho da alma é mais importante do que o acontecimento. E não foi fácil penetrar em suas almas. Ah minha querida, já se passaram quarenta anos, mas na minha casa você não encontra nada vermelho. Desde a guerra, eu odeio vermelho’”

(Fala das guerreiras)
“Depois da sessão de tiros, fizemos o treinamento de camuflagem. O coronel veio inspecionar e parou sobre um montinho. Não se via nada. As meninas estavam bem escondidas. E aí, o montinho começou, embaixo dele, a implorar: ai, camarada coronel, eu não aguento, o senhor é muito pesado! O montinho era uma menina camuflada.”

“Quem esteve na guerra sabe que um civil se transforma em militar em apenas três dias.”

”Ratos saíam correndo da cidade para o campo antes dos bombardeios; eles farejavam a morte vindo.”.

“Naquela fase da guerra não havia armas suficientes. Davam pra gente duas ou três granadas e nos mandavam para o combate sem metralhadoras; íamos para o combate como quem vai para uma briga com a vizinha. A gente pegava fuzil, na batalha, de algum soldado morto.”

“Passávamos muita fome. Se dormíamos, sonhávamos com comida. Eu sonhava com bisnagas de pão voando sobre mim.”

“Fazia tanto frio que os passarinhos caíam no voo, congelados. Havia um soldado ainda menino que tinha uma lágrima congelada no rosto.”

“Havíamos nos transformado em dois bastões de gelo; não conseguíamos nos mover. Ficámos em pé nos apoiando uma na outra para não cair, para não nos partirmos em pedacinhos.”

“E como pesavam os feridos no inverno! Eles ficaram duros como cadáveres, enganavam a gente como se estivessem mortos.”

“Pergunte para mim o que é felicidade. Eu respondo que talvez seja encontrar entre os mortos, uma pessoa viva.”

 “Ele está morrendo e mesmo assim não acredita que esteja morrendo. E depois de morto, fica no rosto um espanto: é possível que eu tenha morrido?”

“O oficial soviético não podia se entregar ao exército alemão. Se o fizesse, era desertor. Se o libertássemos, seria julgado e condenado.”

“Eu me lembro de um soldado alemão ferido, que agarrava a terra com a mão. Nosso soldado então falou pra ele: não mexa nessa terra que é minha; a sua ficou lá de onde você veio.”

“Todos queríamos viver até a vitória.”

“Somos de uma geração que acreditava que há coisas maiores do que a vida humana.”

“Casa é algo muito maior do que as pessoas que moram dentro, é maior do que a própria casa. É uma coisa. As pessoas precisam ter uma casa...”

“Acabada a guerra, quando cheguei em casa, meu irmão me mostrou minha certidão de óbito. O Exército russo havia me enterrado.”

“Antes da guerra tínhamos tantos rouxinóis! Depois eles sumiram com a terra tão revirada que veio à tona o esterco de nossos avós. Só retornaram muito depois de ararmos a terra mais de umas vez.”

“O amor é o único acontecimento pessoal da guerra. Tudo o mais é coletivo. Até a morte.”

(Conclusão)
Quase um milhão de mulheres russas lutou na Segunda Guerra Mundial. A autora ouviu centenas das que sobreviveram. Trouxe-nos pedaços das almas dessas mulheres que viveram situações extremas no treinamento, nas batalhas, até depois que retornaram para suas casas e famílias destruídas.  

Enfadei-me, algumas vezes. Os casos contados pareciam recorrentes, as mesmas dores sempre.
Mesmo únicos e terríveis para quem morreu ou para quem esteve junto, os casos são dourados por quem conta, amenizados.  A própria personagem (a mulher russa que lutou) não conseguiria recompor os seus casos com todas as cores da dor sentida no passado. Névoas de lirismo, de mágoa, de defesas, de esquecimento desejado já os contaminaram.

Muito menos a jornalista que o ouviu assim; e mais ainda eu, leitor de outro mundo, que nem uma guerra vi..

“A Guerra não rosto de mulher” é um livro que nos faz pensar como a paz precisa ser preservada a qualquer custo.


(Aracaju, 2020jun27, Antônio FJ Saracura)

Um comentário: