quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

AS CONCHAS NÃO FALAM, Taylane Cruz

 

AS CONCHAS NÃO FALAM, Taylane Cruz,Harper Collins,Rio de Janeiro, 2024, 160p, isbn 978-6506-005-022-8

 

Saramago afirma que “em literatura e arte, nenhuma obra tira o lugar da outra. Elas convivem lado a lado. Não é porque foi escrito “Dom Quixote” ou “Ulisses” que outras obras não precisam existir[1].



Arte sempre será benvinda, nunca há suficiente, eu que depreendo. Sempre haverá lugar garantido para Taylane e para todos nós. Devemos estar abertos para aplaudir “As Conchas não Falam” (como faço aqui agora) como o cordel do poeta de feira escrito na língua bruta da roça.

Taylane Cruz é escritora consagrada e hoje pertence ao time de uma das maiores editoras do mundo, a Harper-collins, que publica Tolkien. Ela está no palco desde 2015, apesar de parecer uma garotinha, com o lançamento de “Aula de dança e outros contos(2015)”, seguido por: “A pele das coisas (2018)”, “O sol dos dias (2020)”, “Para hora do coração na mão (2022)”, “Menina de Fogo (2023)’ e este, "As conchas não falam (2024)”. 

Alguns eu li um pouquinho e outros, integralmente. E gostei de cada frase: bem tratada e bem urdida.

Na cerimônia de lançamento de "As conchas não falam", um fã, dramaticamente, leu o último conto do livro (Irmãs). Eu estava sentado na cadeira detrás. As páginas do livro se acabaram à minha vista, mas o fã levantava a mão arfante e trazia mais uma nova página. E eu comemorava, o conto se autocriava para me satisfazer.

Em casa (porque já ouvira no dia do lançamento) pensei em apenas beliscar, mas ele se grudou em mim, dizendo sem dizer o que iria acontecer. Ao final, em vez de passar páginas que não haviam, fiquei matutando, como sempre acontece quando sou atingido pelo inusitado, desdobrando a trama, percorrendo caminhos secretos, visitando mundos criados na hora.  

Por que diabos nenhuma das cartas foi lida (ou levada a sério) se foram enviadas até para Deus? Mas, a decisão tomada,  “deixei só nossa mãe e nossa avó nos flagrar, usei a mim mesmo como isca...”. me arrepiou e não seria o que eu faria (sou um personagem apenas).

Taylane é boa bordadeira. Manuseia mil novelos coloridos, enfia agulha, pega-a pelo tato por baixo do badoque e a manda de volta. Repete e repete a função com segura calma. E dessa labuta, brotam: a avó cúmplice, a cachorrinha “roubada”, o tio vilão, o pai com seu avião de sonhos e outros inesquecíveis momentos.  

Ora as linhas se engrolam ou deixam um espaço maior. O leitor se preocupa à toa. A tecedeira apenas cria uma elevação ou uma depressão na geografia de seu bordado. E nesta azáfama de furos e linhas trespassando, imagens ganham vida ou são incógnitas figuras a decifrar, como se a bordadeira fosse uma poderosa feiticeira: o amor que se regenera como o rabo das lagartixas e as memórias que saíam como cobras de dentro das rachaduras das paredes. Ou então, quando ele me roubou de casa como se eu fosse um chapéu ou quando puxava nossos cabelos com tanta força que parecia arrancar raízes da terra. Não é fácil ver seus olhos assim fechados como dois buracos onde guarda um segredo. Mas, nos satisfaz sair gritando pela pracinha ao flagrar os meninos batendo punheta no fundo da igreja.

Não há como mostrar o que cada conto revela, o que um livro contém, a não ser que o replique inteiro e, mesmo assim, com minguada chance de sucesso. A literatura cria em cada célula, infinitas e insondáveis camadas a decifrar. E eu, aqui, sou somente o arauto que grita ao vento que chegou um novo rei para governar ou um novo bandoleiro para atribular. Que está disponível nas livrarias o novo livro de Taylane Cruz para ser lido.  

 

(Por Antonio FJ Saracura, em Aracaju, 02 de janeiro de 2024).

 

 

 

 

 

 



[1] Do livro “Conversas inéditas: José e Pilar”, de Miguel Gonçalves Mendes, citado no artigo “Confissões” inserido no “Livro sobre Livros (Escritos  Diversos, volume 5)", de Enéas Athanázio.

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