AS NEVES DO KILIMANJARO e outros
contos, Ernest Hemingway,2011, Best Bolso, 175 páginas, isbn 978-85-7799-247-8

Há um jeito especial de dizer o que satisfaz, que atende a anseios mesmo que o próprio escritor os tenha criado. Um tema trivial pode gerar um belo texto, um conto ou romance eternos, se bem desenvolvidos.
Hoje assisti na televisão (estava
fugindo dos profetas e dos mensageiros da desgraça) e vi-me no topo do
Kilimanjaro, em companhia de um pequeno grupo, duas crianças e um guia que os
conduzia e explicava: A neve do Kilimanjaro está se acabando ano a ano. Mas ela
não se liquefaz, gerando nascentes, rios. Vaporiza-se. O processo é chamado de sublimação.
Uma bela palavra! Daqui a pouco não haverá mais nada, até que
uma próxima Era do Gelo a recomponha, sabe-se lá quando.
Harry sublimou como a neve no
teto gelado da África. Virou vapor, pois seu corpo podre jazia na tenda, com
uma perna estendida para fora do leito, pendida sobre o chão.
Devido ao documentário da
televisão e ao conto de Hemingway, as
neves do Kilamanjaro são o passo além, onde apenas o espírito sublimado pode habitar,
é a outra dimensão da existência, a duvidosa. Na minha mente perturbada.
Foi esta a primeira vez que li
este conto tão popular, até virou filme que também não devo ter assistido. Se
não, a imagem persistiria indelével. É
assim mesmo que se morre! No instante
passageiro. A realidade dilui-se em fantasia e voamos leves para o realizar
nossos projetos adiados, que todos se tornam milagrosamente possíveis. A dor cessa, o avião que nos carrega faz um
voo tranquilo até penetrar em uma zona de turbulência: nuvens pesadas, apreensão, incerteza. Súbito,
a claridade imensa das geleiras do Kilimanjaro ao sol.
Um conto de nada que, ao final,
na última página, surpreende radicalmente. E sublimamos como Harry, com as
neves do teto da África. Eu sublimei.
Cinquenta Mil narra uma pre luta
e a própria; nada de extraordinário, a não ser o trivial que jamais se apagará da
mente do leitor. A Denúncia, a História Natural dos Mortos, a Véspera da Batalha,
Em Outro País, Os Pistoleiros, O Lutador e, especialmente, A Mãe do Bichona,
são narrativas aparentemente tolas, mas que agradam e marcam, são escritas com as
palavras adequadas, o tema é lúcido e único.
A Capital do Mundo traz um
narrador pródigo, cria um ambiente para encaixar uma brincadeira de mau-gosto
que redunda numa morte absurda, até inverossímil, se fosse escrita por outro,
não por Hemingway. Depois da Tempestade são conjecturas sobre
incidentes irrelevantes, como o canivete cortando o músculo. É pouco? Ou os gregos, que sempre chegam primeiro. “Pode
ser também que tenham perdido o leme...”. Levou-me a um “poderia ser também”, que
relutei, mas findei colocando no final do conto “Responso de Santo Antônio” que
está no meu último livro publicado, Os Ferreiros. Vocês já leram? Não deixem de
fazê-lo.
O mistério da boa escrita passa pela
simplicidade, eu penso. Muitos autores
matam seus romances, seus contos, suas crônicas, suas poesias porque inventam
artifícios acadêmicos, burilam tanto a pedra que gastam a preciosidade. Como é
difícil ser espontâneo? Ir direto à artéria femoral.
Dias atrás, eu não mandei um conto à
uma coletânea, a coordenação definia: “Não aceitamos narrativas”. Fiquei indignado. O que são os textos de Ernest Hemingway, que ganhou o prêmio
Nobel de literatura pelo conjunto da obra, senão narrativas? Narrativas ao
correr da pena, simples narrativas. Espetaculares porque são assim.
Nenhum comentário:
Postar um comentário