ADEUS MINHA QUERIDA, Raymond
Chandler, Alfaguara, 2016, 310p, isbn 978-85-5652-002-9
Raymond Chandler enfrentou na sua
vida literária, ele diz, o mesmo drama que vive cada escritor a cada livro que
lança: uma enorme ansiedade para saber o que acharam da obra, e, depois, uma
enorme irritação ao ficar sabendo. Não vou me gabar de que isso não aconteceu acontece comigo. Que agonia! Chandler já superou essa fase que não me larga, hoje é uma celebridade mundial.
Essa ADEUS
MINHA QUERIDA acontece numa pequena cidade da Califórnia onde a polícia corrupta
e os bandidos endinheirados convivem na mais santa paz. Nada fora do padrão! A trama poderia levar ao desmantelamento de
uma quadrinha internacional especializada em roubos de joias raras. Pensei que fosse. Mas a suposta quadrilha
apenas serve, como poderia ser qualquer outra cortina de fumaça, para esconder
a identidade de uma dondoca da sociedade. Só no final do livro, é que o leitor saberá com certeza.
É um livro de
homens grandes e fortes, desde o detetive Marlowe que tem mais de 1,80 até o
vilão romântico, Malloy, o Alce, como um quarteirão de prédios, só para usar uma
imagem, o que Chandler faz sempre. Um livro de mulheres vilãs, até a
figurante-mocinha quase envereda por esse viés, foi salva por descuido do autor;
de policiais corruptos e violentos. De chefes indolentes, não escapando destes sequer
Randall, que pareceu o mais empenhado na função de protetor da lei. Um livro que trata de seu personagem principal com extrema malvadeza e benevolência: apanha como massa de bolo, arrisca-se desnecessariamente, bebe como uma
pipa e sempre está sóbrio... Malowe apanha quando não precisava e escapa ileso quando deveria apanhar.
E toda vez que Marlowe apanha, entra em delírios, que não revelam nada, apenas toma tempo, quebra o ritmo da história. Como na vez que recebeu a cassetada de Marriott ou em outra, quando o índio fedorento botou-o a nocaute.
E toda vez que Marlowe apanha, entra em delírios, que não revelam nada, apenas toma tempo, quebra o ritmo da história. Como na vez que recebeu a cassetada de Marriott ou em outra, quando o índio fedorento botou-o a nocaute.
Há personagens mal resolvidos, criados
com empenho e depois abandonados. Como a loura espetacular, Anne Riordam. Ela
tentou até ser ajudante do detetive mas foi esnobada com ironia e menosprezo.
Não entendi. Anne foi essencial à elucidação dos “mistérios” e até salvou
“estranhamente” a vida do mocinho. Circulava em brenhas tenebrosas como se
apanhando flores. Lembrou-me, de leve Lisbeth Salander, de Stieg Larson. Talvez Anne seja uma perna do romance que o autor esqueceu ou deixou reservada para
outra obra. Acontece.
Marlowe trata a polícia como se ela fosse uma classe inútil. Um tratamento incoerente. Talvez
um modismo do romance policial da época. Eu, no lugar de Nulty, faria Marlowe engolir
as “gracinhas” na hora, nem esperaria o final do expediente.
Xxx
Uma técnica que pratico na minha
literatura é sustar a narrativa sufocante com fugas rápidas, deleites opostos: Um trem que passa apitando, um carro que
buzina ao longe, um bando de pássaros que retorna ao ninho no entardecer. Isso
cria um tempo extra, desconectado do primeiro, possibilitando que o leitor
acerte o passo. Também serve para mostrar que o suspense daqui não anula a
normalidade do ambiente em volta. A tensão relaxa, e talvez por causa dessa fuga,
e retorna depois ainda mais sufocante. Chandler chama isso, em carta posta no
Apêndice do livro, de retardamento da ação. E garante (e eu acho que está
certo) que essa “divagação” é mais importante para o leitor do que o ápice que se
aproxima. Para ele não morrer antes. Pelos
“clipes” que teimavam em escapar da mão, a morte iminente fica até irrelevante para
a vítima (página 300).
Chandler gasta um tempo
considerável descrevendo seus personagens, mas o faz de maneira ágil: “Ela (Anne
Riordan) tinha um rosto bonito, um rosto de que a gente se acostuma a gostar.
Um rosto belo, mas não tão belo que você tenha que sair portando um soco-inglês
toda vez que levar o rosto para passear.”
Mais à frente, referindo à mesma Anne, diz que ela é daquelas de fazer
um bispo quebrar vitral com um pontapé. Para exemplificar. Usa imagens
figuradas que, algumas vezes, até cansa: “o cheiro de lanchonete era tão forte
que dava para construir uma garagem em cima dele”. “A Palavra ficou pairando no
ar, como fumaça num quarto fechado.O rosto de Marriott ficou com a expressão
de quem acabou de engolir uma abelha." E o autor saboreia suas imagens... “Ele
(Marriott) se livrou dela (da abelha) com algum esforço!”. John Wax tinha olhos
pequenos, famintos, de pálpebras pesadas, inquietos como pulgas”.
A escrita de Candler traz o
leitor para bem perto dele e do fato: “acendi o cachimbo com todo cuidado. Ela
ficou olhando com aprovação. Homens que fumam cachimbo são homens sólidos. Ela estava prestes a se desapontar muito
comigo.”. Mas não aconteceu no livro apesar de anunciada (teria que acontecer,
pra que prometer o que não pode dar?).
Como se a frase fosse de efeito,
apenas para embelezar a prosa.
Há segmentos
descritivos aparentemente desnecessários ao andamento da história, mas todos
com os ingredientes essenciais ao sucesso literário (mortes, cabeças
espatifadas com cérebros expostos, espancamentos, dissimulações,
mistérios). Todo livro policial tem que
ter. O leitor embarca e a canoa e pode ser furada. Seriam incoerências se
escritas por Saracura. Vejam a injustificável saída de Anne Riordan da sala da
sra. Grayle: Anne controlava a cena, estava lá antes, viabilizou a visita de
Marlowe. E depois nada acontece de especial entre o detetive e a socialite que
justificasse a saída de Anne. E a ida ao navio-cassino, para nada. O perigoso Brunette
que não passou de um goiaba, se me permitem chamá-lo assim. Deu-lhe um branco na maldade. Foi localizado tão rápido como se ele fosse o
único tripulante do navio. O autor talvez estivesse de saco cheio de
preliminares: foi direto ao alvo.
Não me
conformo com a arriscada ida ao tal navio-cassino. Desnecessária na vida e no
romance. O autor jogou um balde de combustível para esquentar o livro que
andava meio chocho. E arrisca a vida (não morre, por insondáveis motivos) para entregar
um reles bilhete a Malloy, que poderia nem estar lá. É apenas uma boa sequência
cinematográfica para encher os olhos apressados. Marlowe poderia mandar o
bilhete pelo barqueiro e o objetivo seria alcançado. A saída do navio, na santa
paz, é inadmissível também, pelos motivos apresentados. Saiu ileso quando tudo
indicava o contrário.
Apesar de tudo que falei, é um
bom livro, tanto que corre mundo e vende milhões de exemplares. João Gama, um intelectual de escol de
Sergipe, foi quem me apresentou Raymond Candler, de quem já havia esquecido a
fisionomia. Um prazer!
Estou com UMA JANELA PARA A MORTE
na fila de leituras.
Há um capítulo que merece
destaque especial, irretocável. É o 22.
Narra a entrevista de Marlowe com chefe da polícia de Bay City e a cooptação do
sanguinário policial Hemingway.
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