quinta-feira, 14 de abril de 2016

ADEUS MINHA QUERIDA, Raymond Chandler

ADEUS MINHA QUERIDA, Raymond Chandler, Alfaguara, 2016, 310p, isbn 978-85-5652-002-9



Raymond Chandler enfrentou na sua vida literária, ele diz, o mesmo drama que vive cada escritor a cada livro que lança: uma enorme ansiedade para saber o que acharam da obra, e, depois, uma enorme irritação ao ficar sabendo. Não vou me gabar de que isso não aconteceu acontece comigo. Que agonia! Chandler já superou essa fase que não me larga, hoje é uma celebridade mundial.

Essa ADEUS MINHA QUERIDA acontece numa pequena cidade da Califórnia onde a polícia corrupta e os bandidos endinheirados convivem na mais santa paz. Nada fora do padrão!  A trama poderia levar ao desmantelamento de uma quadrinha internacional especializada em roubos de joias raras.  Pensei que fosse. Mas a suposta quadrilha apenas serve, como poderia ser qualquer outra cortina de fumaça, para esconder a identidade de uma dondoca da sociedade. Só no final do livro, é que o leitor saberá com certeza.

É um livro de homens grandes e fortes, desde o detetive Marlowe que tem mais de 1,80 até o vilão romântico, Malloy, o Alce, como um quarteirão de prédios, só para usar uma imagem, o que Chandler faz sempre. Um livro de mulheres vilãs, até a figurante-mocinha quase envereda por esse viés, foi salva por descuido do autor; de policiais corruptos e violentos. De chefes indolentes, não escapando destes sequer Randall, que pareceu o mais empenhado na função de protetor da lei. Um livro que trata de seu personagem principal com extrema malvadeza e benevolência: apanha como massa de bolo, arrisca-se desnecessariamente, bebe como uma pipa e sempre está sóbrio... Malowe apanha quando não precisava e escapa ileso quando deveria apanhar.

E toda vez que Marlowe apanha, entra em delírios, que não revelam nada, apenas toma tempo, quebra o ritmo da história. Como na vez que recebeu a cassetada de Marriott ou em outra, quando o índio fedorento botou-o a nocaute. 

Há personagens mal resolvidos, criados com empenho e depois abandonados. Como a loura espetacular, Anne Riordam. Ela tentou até ser ajudante do detetive mas foi esnobada com ironia e menosprezo. Não entendi. Anne foi essencial à elucidação dos “mistérios” e até salvou “estranhamente” a vida do mocinho. Circulava em brenhas tenebrosas como se apanhando flores. Lembrou-me, de leve Lisbeth Salander, de Stieg Larson. Talvez Anne seja uma perna do romance que o autor esqueceu ou deixou reservada para outra obra.  Acontece.

Marlowe trata a polícia como se ela fosse uma classe inútil. Um tratamento incoerente. Talvez um modismo do romance policial da época.  Eu, no lugar de Nulty, faria Marlowe engolir as “gracinhas” na hora, nem esperaria o final do expediente.

Xxx

Uma técnica que pratico na minha literatura é sustar a narrativa sufocante com fugas rápidas, deleites opostos:  Um trem que passa apitando, um carro que buzina ao longe, um bando de pássaros que retorna ao ninho no entardecer. Isso cria um tempo extra, desconectado do primeiro, possibilitando que o leitor acerte o passo. Também serve para mostrar que o suspense daqui não anula a normalidade do ambiente em volta. A tensão relaxa, e talvez por causa dessa fuga, e retorna depois ainda mais sufocante. Chandler chama isso, em carta posta no Apêndice do livro, de retardamento da ação. E garante (e eu acho que está certo) que essa “divagação” é mais importante para o leitor do que o ápice que se aproxima. Para ele não morrer antes.  Pelos “clipes” que teimavam em escapar da mão, a morte iminente fica até irrelevante para a vítima (página 300).

Chandler gasta um tempo considerável descrevendo seus personagens, mas o faz de maneira ágil: “Ela (Anne Riordan) tinha um rosto bonito, um rosto de que a gente se acostuma a gostar. Um rosto belo, mas não tão belo que você tenha que sair portando um soco-inglês toda vez que levar o rosto para passear.”  Mais à frente, referindo à mesma Anne, diz que ela é daquelas de fazer um bispo quebrar vitral com um pontapé. Para exemplificar. Usa imagens figuradas que, algumas vezes, até cansa: “o cheiro de lanchonete era tão forte que dava para construir uma garagem em cima dele”. “A Palavra ficou pairando no ar, como fumaça num quarto fechado.O rosto de Marriott ficou com a expressão de quem acabou de engolir uma abelha." E o autor saboreia suas imagens... “Ele (Marriott) se livrou dela (da abelha) com algum esforço!”. John Wax tinha olhos pequenos, famintos, de pálpebras pesadas, inquietos como pulgas”.

A escrita de Candler traz o leitor para bem perto dele e do fato: “acendi o cachimbo com todo cuidado. Ela ficou olhando com aprovação. Homens que fumam cachimbo são homens sólidos.  Ela estava prestes a se desapontar muito comigo.”. Mas não aconteceu no livro apesar de anunciada (teria que acontecer, pra que prometer o que não pode dar?).   Como se  a frase fosse de efeito, apenas para embelezar a prosa. 

Há segmentos descritivos aparentemente desnecessários ao andamento da história, mas todos com os ingredientes essenciais ao sucesso literário (mortes, cabeças espatifadas com cérebros expostos, espancamentos, dissimulações, mistérios).  Todo livro policial tem que ter. O leitor embarca e a canoa e pode ser furada. Seriam incoerências se escritas por Saracura. Vejam a injustificável saída de Anne Riordan da sala da sra. Grayle: Anne controlava a cena, estava lá antes, viabilizou a visita de Marlowe. E depois nada acontece de especial entre o detetive e a socialite que justificasse a saída de Anne. E a ida ao navio-cassino, para nada. O perigoso Brunette que não passou de um goiaba, se me permitem chamá-lo assim.  Deu-lhe um branco na maldade.  Foi localizado tão rápido como se ele fosse o único tripulante do navio. O autor talvez estivesse de saco cheio de preliminares: foi direto ao alvo.

Não me conformo com a arriscada ida ao tal navio-cassino. Desnecessária na vida e no romance. O autor jogou um balde de combustível para esquentar o livro que andava meio chocho. E arrisca a vida (não morre, por insondáveis motivos) para entregar um reles bilhete a Malloy, que poderia nem estar lá. É apenas uma boa sequência cinematográfica para encher os olhos apressados. Marlowe poderia mandar o bilhete pelo barqueiro e o objetivo seria alcançado. A saída do navio, na santa paz, é inadmissível também, pelos motivos apresentados. Saiu ileso quando tudo indicava o contrário.

Apesar de tudo que falei, é um bom livro, tanto que corre mundo e vende milhões de exemplares.  João Gama, um intelectual de escol de Sergipe, foi quem me apresentou Raymond Candler, de quem já havia esquecido a fisionomia. Um prazer!

Estou com UMA JANELA PARA A MORTE na fila de leituras.

Há um capítulo que merece destaque especial, irretocável.  É o 22. Narra a entrevista de Marlowe com chefe da polícia de Bay City e a cooptação do sanguinário policial Hemingway.

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