sexta-feira, 10 de abril de 2020

FORÇA DA NOVA (RELEMBRANÇAS), Carmo Bernardes



FORÇA DA NOVA (RELEMBRANÇAS), Carmo Bernardes,1. Edição,1981, Secretaria de Educação do Estado de Goiás, 168 páginas, sem isbn.

(Estou corrigindo lapsos que só aparecem quando a resenha é publicada).  


Um intelectual de projeção mundial, que lê o que escrevo (ai! ai! ai!), mandou-me, de presente, no começo da semana, um pacote com quatro livros, entre os quais, três de Carmo Bernardes, autor de Goiás, de quem nunca ouvira falar. Por que teria?


Vou me ater a um dos livros (Força da Nova Relembranças) de Carmo Bernardes, pois ao abri-lo, grudou em mim e nem tive tempo de arrumar uma sacola de viagem.

“Dois Irmãos’, de Milton Hatoum, que estava lendo, congelou na página 46, e talvez demore para voltar à temperatura normal, se voltar.

A escrita desse Carmo (que nome mais estranho!) é bruta, na linguagem falada do povo, com a imensa riqueza de vocábulos in natura, de imagens que dispensam explicações e transporta o leitor para o mundo descrito e, desde o primeiro momento, o integra como se dele o fosse desde que nasceu. Aconteceu comigo. Terra Vermelha de minha infância é, sem tirar nem por, este brasilzão interiorano de Minas e de Goiás, começo do século, aonde perambula e anota tudo o moleque doentio (como eu),Carmo Bernardes:

“O gado Paranã, só gado arisco, criado na largueza; maior parte não tinha custeio nenhum de curral, salitrava nos barreiros. Na formação das boiadas, a bem dizer, tinha que pegar um a um no laço, deixar dias e mais dias no curral, sem comer, esbrebejando. Boi quando é assim, brabo demais como aqueles, depois de reunidos em manada não desapartam. Quanto mais braba é a rês mais no meio dos outros ela quer ficar, de forma que aquelas boiadas pareciam uma tacha de melado fervendo, o bolo andando em roda, nenhum aceitando ficar de fora, e tinha que ser tocada assim, embolada... O ponteiro ia adiante para maloca não encompridar, porque se encompridasse muito aí era perigoso esfiapar, estourar, levar o diabo. Dava de acontecer isto alguma vez: boiada esfarelar no mundo, voltar tudo para as suas querências, e aí tinha que tornar a pegar no laço, reunir de novo os talhões. Só depois de sair fora, com três ou quatro dias de marcha, é que os bichos iam se entregado, caindo na realidade.”

Para entender o sentido dos termos e dos ditos, só pelo ritmo da prosa, pelo contexto, pelo encaixe nas imagens que a mente do leitor vai criando dinamicamente. Relaxe que as luzes irão se acender, especialmente se você (o leitor) foi constituído pelo traçado genético das três raças (africano, ameríndio e europeu). Eu sou e quase todos nós.

A leitura ressoa como uma melodia, que foi me envolvendo e, daí a pouco, eu estava batendo compasso com o pé nervoso, cadenciado e constante. Seria um hictus que extravasou as fronteiros e dominou o mundo?

E comecei a perceber que eu não lia somente, recitava (ora em voz alta, ora baixinho), como se estivesse em um palco, cada poema que o mago goiano despejava à minha frente. A força das palavras reveladas era tamanho que furava a barreira da leitura silenciosa na qual apenas o pensamento participa, tomando conta de todos os sentidos, contaminando o povo daqui de casa, da vizinhança, rompendo divisas.

Se precisava ir a sentina (todos precisam), ia com o livro aberto na mão, abaixava as calças com a outra, no maior cuidado para não mijar os cós. Sentava a bunda na tampa fria, que se transformava no trono pra leitura. Dali, só me levantava quando minha esposa passava no corredor e perguntava se eu estava entupido, pois já havia meia hora que entrara na casinha e, lá da sala, ela presta atenção a tudo, não escutou nenhuma descarga dada. E, implicante, rasca (tá ficando ousada), já retornando para não perdera meada da sua série na Tv, que eu lavasse o pingolin (devido ao tamanhinho) e o fifó para não ajuntar frieira.

Então, já quase meia-noite dessa terça-feira, dia 07 de abril, após seis horas de êxtase, pois iniciei à tardinha a ler de “Força da Nova”, meus olhos pinicavam dez vezes mais do que uma hora antes, quando começaram a dar sinal de luz. Os termos e os ditos que eu pegava no livro, na maior secura, agora, vinham inteiros, até certo ponto, e se desmanchavam antes de alcançar minha mente; as letras vazavam para um lado e outro e eu precisava bater os olhos, cada vez mais, para reorganizá-las de novo. Vi que não havia jeito a dar a não ser largar o livro no chão, marcar a página (era a 94), fechar os olhos que já estavam entregues. E agarrar o sono.

E agarrei junto um sonho que me acompanhou até de manhãzinha, quando o sol, que já é costume dele, me esquentou o couro, entrando pela janela sem cortinas.

“E no sonho, eu me gabava para mim mesmo, porque conseguia, logo depois de meia dúzia de páginas lidas, entender a ciência da leitura desse Carmo infernal. Certo que venho também do mato e boa parte dos termos e dos ditos eram parentes ou pareceres de minha vida. E calcado nesse parentesco, os outros que nunca ouvira na vida, entravam no meu sentido por conta da música que o escritor assobiava ao fundo, ou mesmo pelo desenrolar da novela, que não há como escapar pois o cabra usa visgo de jaca ou sei lá o quê. Mesmo se viesse o cão no lugar de um anjo, eu, afiado como estava, entendia, na hora, que aquele cão era bonzinho. E, ainda no sonho, eu saía da Terra Vermelha e das Flechas, e já estava na Fazenda Poção ou nos alagados de Formosa, montado no cavalinho que meu avô me deu e que causou aquela inveja danada em meu primo Zé Carlos de tio Chico.
Sonho é danado, se coliga com a fantasia e nos leva para onde quer. E o meu cavalinho, empolgado com o cheiro do lugar, foi saltar uma poça, até pequena, que era uma lagoinha disfarçada, e escorregou na beirada da banda de lá, me derrubando dentro da água escura com ele por cima. Saímos os dois como pintos molhados e, fora, senti um volume no bolso da bunda que não me lembrava que houvesse antes; era um trairão, de quase três quilos, como os que pegara de anzol em uma noite, na qual fui com uns amigos doidos, pescar na lagoa Formosa, que fica no município de Planaltina, perto de Brasília, onde então eu trabalhava. Nem me lembro mais o que fiz com aquela traíra, pois, logo eu estava andando naquelas terras baixas, moles e malcheirosas, que chamam de Pântanos Mortos e que deram um tremendo sufoco em Frodo e em sua comitiva, mal guiados pela safado Gollun, em busca do magma do vulcão da Perdição, onde jogariam o anel do poder maldito. Era um descampado a perder de vista, uma macega rala atoladeira. E aí me deu um começo de colerina. Tive que correr pra detrás de um cupinzeiro meão, que só me cobriu metade das popas. Mesmo assim, abaixei as calças e, quando ia me desafogar, acordei. Ainda consegui segurar o tiro disparado que já esfumaçara. Por pouco, não desgraço a rede branca que fora lavada nem havia uma semana. Minha esposa seria capaz de botar no grupo de wsap da família esse inominável vacilo de minhas pregas tidas como respeitáveis.”

xxx

Cuidei de fazer minhas obrigações matinais, tomei café, enrolei aqui e ali e, manhoso, cheguei ao meu canto de leitura. Carmo Bernandes nem respondeu ao meu cumprimento. Mergulhei no livro e fui misturado, de novo, com as terras do Goiás e seu povo bruto, com a doida professora ensinadeira de bruguelo de papagaio a falar... Hei, peraí! Eu nunca li, acho, esse Carmo, antes de ontem, mas a história da professora de papagaio me parece familiar. E peraí, de novo! Essas terras alagadas, com lagoas escondidas que estavam em meu sonho da noite, agora aparecem vívidas nas páginas que eu ainda não havia lido, engolindo inteiros landis derrubados, botando pra fora Brasília, que é minha terra também. Só se, no sonho, eu avancei na leitura, e até pesquei aquele trairão que só agora o avô Pernagrossa pegou uma enfieira. Talvez se explique pela embalagem na qual eu vinha o dia todo e até meia noite. Assim, não há trem que consiga parar.

Xxx

É todo o livro desse jeito, ângulo de sucupira, não há como desperdiçar nada. Se fosse para citar todas as passagens geniais, o livro inteiro mudaria para essa resenha. Seria melhor comprar um exemplar (tem na Estante Virtual) para cada leitor. E não adianta você correr ao dicionário, pelo mesmo motivo. Os termos e os ditos brutos estão espalhados à sua frente em profusão e nenhum dicionário do mundo mostrará dez por cento. A leitura não andaria e o leitor teria que, talvez, dar um pulo no sertão de Goiás, perguntar o sentido a algum tabaréu, pois o autor já faleceu há mais de 20 anos (1996).
Outra coisa, para encerrar finalmente (ai, meu deus, me encolha um pouco!), Carmo Bernardes é um artista da palavra e senhor absoluto da ciência da escrita. Escreve essa língua oral, cheia de símbolos e poderes misteriosos, como ele mesmo diz: "A (minha) frase sai (só sai se for) quente da boca do povo e incorporando as sutilezas das palavras  e o valor das entonações e sotaques". 
Algo que me lembra Juan Rulfo (autor mexicano), "obcecado pelo corte, pelo polimento final, pelo secar de um texto até reduzi-lo à mais rigorosa exatidão".
Vale a pena o artista pintar uma obra dessa e ser ignorado (até menosprezado) pelo mundo?

(Aracaju, 2010 abril 09, Antônio Saracura)



ANEXO

Força da nova (Diário da Leitura)

(Página 16) – crianças que se arrastam torcendo o corpo com as popas no chão frio e outras que vão de quatro com tupi ao vento.
(Página 19) – Quando a primeira guerra findou veio mais miséria, a febre espanhola “dessa epidemia morreu tanta gente que em alguns lugares, cidades e vilas, não ficou uma vivalma, que fosse, para sepultar os mortos... a urubusama chegou a destelhar casas e houve casos de comer mesmo os cadáveres”. O autor vai soltando sabedorias como fatos assim e da ciência do povo. E dá a entender que sabe muito, a linguagem bruta é porque é a única que lhe arranca da memória essa escrita mágica.
(Página 20) – Explica a medida do Jacá que era usada nos sertões de Minas e que hoje ninguém mais sabe o que é. Mesma coisa para medidas do milho (atilho, mão) que ainda se usa na feira de Itabaiana.
(Página 21 e outras) – Menino não entra na conversa de mais velhos. Se insiste, o adulto o espanta e pode até mandar “acolá, atrás da horta, ver se estou lá”. Eu fui algumas vezes.
(Página 15 e outras) – os ditos e os termos menosprezados pelos dicionaristas aparecem a cada momento com todo seu poder: Mequetrefe, popas, tupi, alqueive (terra que se deixa descansar), Chernoviz (livro com nomes de remédios para a doença), insofros, pinchos, “tomara eu ver” (ameaça da mãe, que também era da minha), tribusânia, mantiqueira (tocaia de matar gente), ganzepe, finiscote, mocorongo... esse aí vai voar na seca (os urubus vão comer),
- E alguns termos eruditos até demais, que o autor lança mão para explicar as ciências: farândola (grupo de maltrapilhos), Azêmola (cavalo velho e estropiado), ridicar (negar, ser avarento), colerina (forma benigna do cólera morbo, que mata), esfíncteres (anéis de músculo que controlam a abertura orifícios no corpo da gente).

(Página 23) – Cada lugar tinha sua parteira, o capador de porca, o benzedor de cobra, o rezador de terço, o encanador de osso quebrado, e assim por diante.
(Página 27) – os quartos de dormir nas casas dos sítios eram furnas escuras, fediam a mofo, os donos só entravam lá na hora de dormir. Também nos povoados de Itabaiana, haja visto o quarto de Madrinha Santinha, que a gente usou para criar preá da índia, quando meu avô faleceu.
(Página 30) – as coisas grandes do tempo de criança, quando a gente vira adulto elas ficam pequeninas. Como o corredor lá de casa, onde eu corria com medo de Santa Luzia e nunca chegava ao fim.
(Página 32) – Mais sabedorias: cobra só ataca se houver espaço para ela dar o bote. A jararaca é a mais mordedeira, porque consegue dar bote em qualquer cantinho. O boi que ganha a briga fica dócil, amigável, e o que perde fica uma fera, bate até na sombra. Roubar rês da estrada que sempre acompanha a boiada que passa, tangendo-a para dentro. A arte de pegar passarinho com laço de pena de ema. Armação de arapucas para pegar animais. O uso do pequi, do coco-xodó para fazer sabão. Ensinar boi comer sal. A noite é feita para o desfruto dos pagãos. A onça e o gato têm medo de fogo, porque as meninas dos olhos deles se abrem muito rápido e ofuscam. Como capar uma porca. Todo gato com três cores é fêmea. Como caçar Emas (que absurdo) para fazer espanador. Erva medicinal só nasce em terrenos fracos. Quando menino aprende a dar em nó no cordão, pode meter a taca nele. Até o bicho pagão repudia a caridade (vaca bater após ser desatolada). Se um pai não bate o filho quando é preciso, quem vai bater depois é o mundo, que é impiedoso. Vassourinhas amarradas no caminho (brincadeira de mau gosto que eu fiz muito). Bacia de lavar pés é indispensável na casa de mineiro do mato.
(Página 93) – autor sai da história e explica a função do historiador, E se explica, porque escreve como escreve. A força das palavras brutas. “A prosa só sai de mim assim”. E revela seu desconforto em participar da sociedade moderna, das festas, prefere o isolamento (143).
(Página 163) - os encontros com a coluna Prestes (João Alberto, barbudos de lenço vermelho amarrado ao pescoço). Há sempre presentinhos de história e de ciência aqui e acolá, provando que homem (povo) algum é uma ilha.
Ufa!
(Aracaju, 2010 abril 09, Antônio Saracura)


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