quarta-feira, 6 de maio de 2020

DOIS IRMÃOS, Milton Hatoum


DOIS IRMÃOS, Milton Hatoum, Companhia das Letras,2006,páginas 196, isbn 978-85-359-0833-6.


Pareceu-me escrito com desleixo mesmo para criar o clima dessa Manaus da época e que nem sei se ainda não é assim. Ruelas, igarapés entrando pela cidade ou vice-versa, lupanares, pocilgas, cortiços ao fundo de casarões decadentes, esgotos a céu aberto, quartos fedendo a barata... Camelôs, ambulantes e peixeiros aos gritos vendendo sua mercadoria; imigrantes na miséria; índias escravizadas; promiscuidade, idade média...

Uma barafunda mas há lugar de sobra para se viver feliz, basta querer.
O homem se adapta a qualquer merda. Há espaço para a poesia, declamações, bailes, festas de aniversário, namoros, paixões ardentes, jogos de gamão nas calçadas frescas do final de tarde, conquistas, recusas, vida social.


(Os personagens)

O romance gira em torno de uma família oriunda do Líbano que já teve seu passado de riqueza aqui, mas ainda vive com alguma dignidade: Zana e Halim, seus três filhos (Rânia, Omar e Yakud), uma serva índia (Domingas) e mais um quarto membro, que é filho bastardo de um dos filhos (?) com a tal índia. Halim é marido, boêmio, mas responsável; não dispensa o papo com os amigos. Zana – esposa apegada ao marido, uma dona de casa simpática. Omar - apelidado de Caçula, é o vaso torto, mau demais, sem controle e sem barreiras; o irmão bom é seu grande alvo a destruir. Yakud - irmão bom, misterioso, sempre em desvantagem e na busca de uma vingança para equilibrar as forças; tem vida independente. Rânia – moça comum que assume o comércio decadente do pai e o desenvolve a ponto de manter a família na velhice; esnoba os pretendentes. Domingas – Índia comprada de uma escola religiosa para passar a vida cuidando da casa dos Halim e sempre devendo obrigação; sonha com a liberdade que desfrutava quando menina em sua tribo (talvez dizimada). O narrador – filho de Omar ou Yakud com Domingas...

Há outros personagens menos evidentes mas bem caracterizados. O misterioso vendedor de peixe que é um espião de primeira: Adamor, o perna de sapo, o farejador; toda a floresta era do tamanho do quintal lá de casa. O poeta Abas com seus eficazes Gazais. Há outro poeta, Tojal, professor de literatura que é caçado e morto como comunista pelos verdes de 64... Há o indiano vivaldino, Rochiram, talvez um escroque cheio de manhas... ou não.

(O miolo do conflito)

Os dois irmãos (Omar e Yakud) vivem um conflito contínuo, talvez o tenham começado no ventre da mãe, pois são gêmeos. Omar é o provocador. Ainda garoto, rasga o rosto do irmão com um garrafa quebrada e queria rasgar muito mais. A mãe (Zana), como é comum acontecer com as mães, talvez para compensar a ruindade que gerou, protege o mau e faz com que as pessoas (leia-se o leitor) creiam que a culpa é do bom (porque é bom demais).

Omar some nas águas amazônicas, gasta o dinheiro da família e a mãe o procura por não aguentar mais de saudade. Rouba o dinheiro e o passaporte do irmão bom (que progrediu por conta própria em São Paulo), viaja pelo mundo, e retorna ao colo da mãe, que o acarinha. Invade a casa do irmão e desenha figuras obscenas nas fotos sagradas e todos reagem com certa naturalidade, já que é mau mesmo.
Como é bom ser mau neste romance!

(Meio fim)

Há poucas datas de referência, me lembro de uma (1950) em que o irmão bom foi morar em São Paulo. Talvez a década de 1960, porque os verdes tomaram conta de Manaus e vasculharam cada biboca atrás de comunista (corra Tojal!).
Coitados poetas!
O enredo vai ao passado, ao futuro e mistura com o presente que para mim não é tão presente assim. Haja labor para o leitor dar conta.
E há repetecos, mais de mil vezes o irmão mau estraçalha tudo com sua irracionalidade e outras mil, e a mãe se ajoelha a seus pés.
Há lendas pela metade, desperdiçadas; Há costumes do povo amazônico (índios, caboclos, imigrantes) que vão surgindo e se perdem no emaranhado das páginas. É bela a conquista à Zana, ainda mocinha, trabalhando no comércio dos pais, pelos gazais do poeta, Abas comprados por Halim; que não teria, sem os gazais, chance nenhum com a bela comerciante. É contagiante o intenso fogo que lhe queima a carne até os últimos dias, integralmente compartilhado pela esposa. Não há restrição, apenas a natural explosão de corpos acendidos pelo desejo.
E o livro avança cheio de cortes e agregando pontos estranhos. Parei por conta de falas sem dono; avancei na esperança de saber o porquê de uma frase instigante, que nunca soube. Estive prestes a abandonar a leitura, mas persisti, cheguei ao final. Não é um livro que desencante, mas me causou indignação pelos laços soltos espalhados, pela repetição exagerada da ruindade de Omar e da bondade de Yakud.

(Final)

Por fim, é a decadência das famílias antigas e a recuperação de Manaus que entra em uma fase de progresso com Zona Franca (imagino) e a modernização urbana (destruição da cidade flutuante,construção de novos hotéis e alamedas).

Halin morre à toa e, mesmo morto, vem para a companhia de sua fogosa Zana; Rânia (a filha empreendedora) compra uma casa nessa nova Manaus e há indícios de que entrou na roda dos importados e leva a mãe para sua companhia.
E Yakud, que vive em São Paulo há muito, finalmente perpetra sua vingança prometida desde o começo do livro. Mas é uma vingancinha irrisória! O mau (Omar) vai para a cadeia passar dois anos, quando merecia receber perpétua. E agora Rânia (a mãe faleceu) se enche de peninha do irmão que não vale nada.
E Rochiram consegue ficar com o casarão da família em compensação pelos bons serviços recebidos dos irmãos: “Rochiram exigia uma fortuna em troca do que havia pagado a Yakub pela elaboração do projeto do Hotel e a Omar pela comissão na compra do terreno do hotel (177)”. Onde diabos se escondeu, no alinhavo das frases, a justificativa dessa inversão de valores. A família entrega sua velha mansão para compensar o “prejuízo” do indiano, que constrói um palácio para si.
E o autor, que é filho de um dos dois com a índia Diomingas (escrava), em um estupro revelado por ela mesma (“Omar me agarrou com força de homem e nunca me pediu desculpa!”), se faz de desentendido e conclui o livro sem reconhecer o pai. É melhor qualquer dúvida do que verdade que doa. Ele é o único que se mantem na velha mansão, ou melhor em um guarnicho, ao fundo, cuja entrada é um caminho de formiga.

xxx

Depois ganhou o Jabuti com este livro (já havia ganho outro com o romance “Relato de um certo Oriente”). Hoje é acreditado colunista em “O Estado de São Paulo”.
Eu gostei de ter lido “Dois Irmãos” (reclamei porque ainda não estou no estado do romance moderno brasileiro e estava na refrega da leitura).
Poucos livros brasileiros conseguiram ser traduzidos e lidos em outros países. “Dois Irmãos” conseguiu.

(Aracaju, 2020mai06, Antônio FJ Saracura)

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