quarta-feira, 13 de maio de 2020

JURUBATUBA, Carmo Bernardes


JURUBATUBA, Carmo Bernardes, Biblioteca Clássica Goiana, ICBC, 2206, 296 páginas, Isbn 85-98762-13-x (romance).


Em convivi com Carmo Bernardes (1915-1996), o autor deste livro raro, em algum tempo no sertão de Goiás (possuí um terreno em Planaltina, que ainda hoje tenho a escritura mas a posse é dos invasores). Eu trabalhava em Brasília (1976-1983) e viajava, na minha rede do oitão, com tropas de burro pela escrita de outros goianos de bom calibre, a exemplo de Bernardo Elis (1915-1997). E, vez ou outra, nos finais de semana, visitava meu terreno para sentir a poeira levantada pelos burros passando sob o estalo do relho comprido. Mas nunca encontrei tropa nem tropeiro e muito menos os magos que contavam as epopeias. Comi, entretanto, muita poeira das estradas de barro vermelho sacudidas pelos automóveis ensandecidos. 


Apesar de ter convivido no momento e talvez no espaço, vim conhecer Carmo apenas a semana passada. Um amigo escritor, sabendo que eu sou toupeira (no bom sentido) e removo raízes profundas, mandou-me de presente, esse Jurubatuba e mais dois de memória do mesmo autor com os quais me refestelo agora.

“Jurubatuba” é romance diferente, que encanta e assombra qualquer leitor por mais erudito que seja; também ao tabaréu pouco afeto às letras. É ecumênico. É um livro de escrita rude como é (ou era) o estilo de vida e o falar do Goiás rural de tempos atrás. É um manual de sabedorias bem articuladas, pois o ensinamento é feito quando surge a oportunidade ou a necessidade, dentro do enredo. Sabedorias da natureza (como a ema faz seu ninho simplório e o protege do fogo no cerrado; como o João-de-barro faz o seu: uma cumbuca de argila sem qualquer arejamento; sabedoria dos homens (como a cachaça atua sobre o cérebro; como usar pauzinho para não morder a língua em sono solavancado; como operar um pequeno engenho de rapadura...). E as “sabedorias” do forte para espoliar o fraco, que em todo lugar há de monte.

Nos primeiros capítulos, o vaqueiro andarilho (Ramiro) viaja aparentemente sem destino montado no seu burro Saudoso pelo sertão, sentindo a natureza, pousando em aldeias perdidas ou embaixo de árvores. Uma viagem boa para o leitor, que conhece a ciência do meio, das pessoas e dos bichos a partir das considerações de quem entende. Bate-se com gente suspeita, com gente abestada e com a espevitada Eremita que o fisga.

E pega pouso na fazenda Jurubatura, onde mora Eremita, um fogareiro aceso, mas casada com o dono da fazenda: velhote que vive cuidando de assuntos externos e tem todas as validades vencidas. E, a pedido dela, oferece dinheiro para que o viajante assuma a posição de vaqueiro da fazenda pequena e decadente. Ramiro recusa, reluta, cede. Ninguém responde por si, quando há saia se levantando à vista.  
Começa a lida do dia a dia, fazendo muito mais do que lhe cabe, ensinando o que sabe que é novidade e, talvez por isso, desperta inveja, intriga... Fuxicaria, a despeita, a traição que todo mundo carrega em qualquer classe. “De privação em privação, esse povo da roça chega a um certo grau de baixeza que, daí em diante, não tem mais classificação. Vira bagaço na sociedade, de não restar nem vergonha, nem dignidade, nem nada” (178). E constata  e se indigna com as dores do pequeno agricultor em terra alheia (todas são naquele sertão imenso), pagando meia, tomando pisa, tendo seu racho queimado.  “Desocuparam as roças à muque. A rancharia de um ardeu.” Ou a dor empregado comum  da fazenda (o carreiro, o carapina avulso...), escravo sem voz, explorado, matado na unha, tendo que lamber as botas do algoz.

O autor cria figuras de linguagem que se pode pegar, virar ao avesso, puxar conversa e até briga: "Bastava o olhar fogo de Ermira para me desmantelar a natureza; um enchouriçamento doido me transtornava e, em cada pé de cabelo, erguia um carocinho de excitação, meu corpo virava uma grosa. “

Ramiro endoida de amor. “Vamos embora daqui”. Mas Ermira gruda a boca na carne macia do peito do macho e chupa sem dó; incendeia nas safadezas na rede, mas não larga a pose de fazendeira, as regalias de mulher do senhor. Ramiro sente o perigo que corre e pensa em rejeitar o amor venenoso, mas teme. Uma rainha rejeitada fez a desgraça de José no Egito. A mulher de Putifar.

xxx  

E, por fim (não posso contar o livro todo), de cabeça inchada e montado no burro Saudoso (que sofre do mesmo mal por conta do cavalo cardão, seu amadrinhado, que se foi com Ermira),  segue seu destino, que seria Mato Grosso. Ermira nem se despediu dele, correu atrás de cuidar das heranças e ainda teve o desplante de deixar plantada a suspeita de que fora ele (botou o farmacêutico como tapia besta) que batizara de veneno o comprimido que matou o marido dela. E foi mesmo.

A Jurubatuba fica aos estertores e o Goiás se abre, outra vez, com campos imensos, matas fechadas, águas do Araguaia e de outros mil ribeirões, viajantes de longas distâncias, cidadezinhas modorrentas entupidas de cachorro vadio... E a esperança de uma vida digna para para Ramiro (que deixou dívida a pagar) ou para qualquer outro nesse Brasil imenso, acolhedor e perverso.  

Carmo Bernardes pode até deixar algumas pontas de corda soltas mas você não vai conseguir escapar da sua drama bem urdida, das aulas de sabedorias em cada frase, do ritmo da prosa, da escrita oral do Goiás bruto (e de Itabaiana - Terra Vermelha - também) e das palavras e expressões que Aurélio esnobou, mas têm a magia de se auto explicarem naturalmente.

(Aracaju, 13 de maio de 2020, Antônio Saracura, em plena quarentena do Corona Vírus).

Nenhum comentário:

Postar um comentário