terça-feira, 4 de agosto de 2020

OS DESVALIDOS, Francisco J.C. Dantas


OS DESVALIDOS, Francisco J.C. Dantas, Alfaguara, 3 edição,2012,250 páginas, isbn 978-85-7962-137-6



Acabei de ler ontem à noite, com o nariz entupido e me pelando de medo do Corona, “Os Desvalidos”, de Francisco Dantas. Foi uma releitura, que eu devia a mim mesmo, pois, na primeira vez, pulei trechos, como se um trem pudesse saltar estações para chegar mais rápido à festa, se estava nela desde a primeira página.

Agora, outra vez, pecador renitente, também pela cabeça povoada de vírus reais e dos que a fantasia inventa, tão perigosos quanto, me enganchei nas mudanças de cenário e quase pulo estações na via-sacra de “O Cordel de Coriolano” (primeira parte do livro). De novo? Seria diabólico. Então aguentei firme.

Na segunda parte, “Jornada dos Pares no Aribé”, o livro pegou fogo. Escrita febril. O encadeamento das ideias e dos fatos arrebata. O leitor é possuído pelo enredo.  

Não precisa haver fatos espetaculares para se ter um grande romance; basta estar perfeitamente escrito, como esse “Os Desvalidos”. Um incidente secundário, fora da trajetória conhecida do bandoleiro Lampião, é transformado em epopeia grega... 

O bando de Lampião encurralado (como sempre viveu), espoliado pelos poderosos que o usou e nunca pagou, corrido pelas "volantes" muito mais sanguinárias, chega às vizinhanças do Aribé, ao mundo miúdo de Coriolano, o sítio cascalhado com uma estalagem decadente.

Em noite de insônia, o autor junta o corcunda tamanqueiro Coriolano (“nem no céu em quero entrar como tamanqueiro”), o ousado Zerramo (“Esse sim é que é homem de dar fama a cemitério”), o resignado tio Filipe (cativou o coração da fogosa Maria Melona, que se aquietou) e outros desvalidos, de um lado... e do outro, Virgulino Ferreira (sujo, fedido, acossado), coronéis manhosos, volantes impiedosas, miseráveis cheios de inveja... 

O ar seco de uma anunciada última noite de vida povoa-se de relembranças dolorosas e líricas. 

Coriolano quer apenas tocar a pequena estalagem em paz, que foi o que conseguiu produzir por ele mesmo; Virgulino quer criar com Santinha os meninos como todo mundo cria. Sonhos parecidos aos de Zerramo, de tio Filipe, aos nossos, desvalidos também. Também ao sonho da cangaceira Saitica, que já foi Zé Queixada, indo pra Serra Negra olhar o filho único, já rapaz feito, que nunca mais pode ver, de sua única barriga, parido já sem pai para o acarinhar, mas levando jeito dele, a conversa manhosa e agradadeira. Sonhos justos, simples e naturalmente viáveis em qualquer lugar do mundo.

E esses dois mundos (Coriolano e Lampião) se esbarram sob o teto da estalagem com o sol nascendo.

Virgulino Lampião mal guarnecido de cabras e Coriolano sem qualquer proteção, porque ele, tio Felipe e Zerramo não são nada diante de um rifle carregado. E uma carga de fogo e chumbo desmancha o gigante inteligente cheio de estratégias e ousadias, Zerramo. Coriolano, virou-se num rato e sorrateiro escapa para capoeira, some do Aribé. Tio Filipe é arrancado da morte por Saitica (Maria Melona, a ex esposa agravada), que o joga na garupa do cavalo e parte em disparada. Bem à frente, cai nas garras da impiedosa volante. O filho a espera em vão. E o esperto amansador de cavalo, o caixeiro viajante vocacionado, tio Filipe, assiste sua Maria sendo estuprada pelo batalhão de Cachimbos... 

Tempos depois, tio Filipe aparece puxando uma carroça de um fueiro pelas ruas sujas de Rio das Paridas. Coriolano olha o tio assim, uma sombra de nada... e nem mais tem um fio de pestana para puxar.

A fortuna dos desvalido é fortuita. Os que ficam ricos, findam sem nada, como se fosse uma maldição do destino. Aqui não cabe senhores. Lampião, as tropas volantes, o paisano de um modo geral. Até os gandolas, como os coronéis que financiam as volantes e ludibriam os cangaceiros vivem se escondendo com medo da vingança.

O romance encanta pela escrita irretocável. Não me lembro de ter lido textos tão eficazes. Palavras fortes que a pressa dos novos tempos jogou fora ressuscitam desenhando mundos inimagináveis. É uma daquelas obras na qual parece que o autor coloca nela toda sua arte. Tintas nobres. Pincéis finos. Alma lúcida. Melodia, perfume, sabor que saciam...Todos os sentidos se combinam para gerar a sensação de privilégio único, que o leitor, como eu, acha que ganhou.

Não sei de ninguém que escreva sobre Sergipe (ou não) que chegue perto de Francisco Dantas. Mesmo assim, tem sido meio despercebido até pelos leitores que ainda há. Se temos todo o ouro do mundo aqui em casa... Vamos a ele, ler Francisco Dantas!

(Aracaju, 01 Agosto de 2020, extraída do blog: Antônio Saracura Sobre Livros Lidos).

Um comentário: