Acabei de ler ontem à noite, com o
nariz entupido e me pelando de medo do Corona, “Os Desvalidos”, de
Francisco Dantas. Foi uma releitura, que eu devia a mim mesmo, pois, na
primeira vez, pulei trechos, como se um trem pudesse saltar estações para chegar
mais rápido à festa, se estava nela desde a primeira página.
Agora, outra vez, pecador renitente,
também pela cabeça povoada de vírus reais e dos que a fantasia inventa, tão
perigosos quanto, me enganchei nas mudanças de cenário e quase pulo estações na
via-sacra de “O Cordel de Coriolano” (primeira parte do livro). De novo? Seria
diabólico. Então aguentei firme.
Na segunda parte, “Jornada dos Pares
no Aribé”, o livro pegou fogo. Escrita febril. O encadeamento das ideias e dos
fatos arrebata. O leitor é possuído pelo enredo.
Não precisa haver fatos espetaculares
para se ter um grande romance; basta estar perfeitamente escrito, como esse “Os
Desvalidos”. Um incidente secundário, fora da trajetória conhecida do
bandoleiro Lampião, é transformado em epopeia grega...
O bando de Lampião encurralado (como
sempre viveu), espoliado pelos poderosos que o usou e nunca pagou, corrido
pelas "volantes" muito mais sanguinárias, chega às vizinhanças do Aribé,
ao mundo miúdo de Coriolano, o sítio cascalhado com uma estalagem
decadente.
Em noite de insônia, o autor junta o
corcunda tamanqueiro Coriolano (“nem no céu em quero entrar como tamanqueiro”),
o ousado Zerramo (“Esse sim é que é homem de dar fama a cemitério”), o
resignado tio Filipe (cativou o coração da fogosa Maria Melona, que se
aquietou) e outros desvalidos, de um lado... e do outro, Virgulino Ferreira
(sujo, fedido, acossado), coronéis manhosos, volantes impiedosas, miseráveis
cheios de inveja...
O ar seco de uma anunciada última
noite de vida povoa-se de relembranças dolorosas e líricas.
Coriolano quer apenas tocar a pequena
estalagem em paz, que foi o que conseguiu produzir por ele mesmo; Virgulino
quer criar com Santinha os meninos como todo mundo cria. Sonhos parecidos aos
de Zerramo, de tio Filipe, aos nossos, desvalidos também. Também ao sonho da
cangaceira Saitica, que já foi Zé Queixada, indo pra Serra Negra olhar o filho
único, já rapaz feito, que nunca mais pode ver, de sua única barriga, parido já
sem pai para o acarinhar, mas levando jeito dele, a conversa manhosa e
agradadeira. Sonhos justos, simples e naturalmente viáveis em qualquer lugar do
mundo.
E esses dois mundos (Coriolano e
Lampião) se esbarram sob o teto da estalagem com o sol nascendo.
Virgulino Lampião mal guarnecido de
cabras e Coriolano sem qualquer proteção, porque ele, tio Felipe e Zerramo não
são nada diante de um rifle carregado. E uma carga de fogo e chumbo desmancha o
gigante inteligente cheio de estratégias e ousadias, Zerramo. Coriolano,
virou-se num rato e sorrateiro escapa para capoeira, some do Aribé. Tio
Filipe é arrancado da morte por Saitica (Maria Melona, a ex esposa agravada),
que o joga na garupa do cavalo e parte em disparada. Bem à frente, cai nas
garras da impiedosa volante. O filho a espera em vão. E o esperto amansador de
cavalo, o caixeiro viajante vocacionado, tio Filipe, assiste sua Maria sendo
estuprada pelo batalhão de Cachimbos...
Tempos depois, tio Filipe aparece
puxando uma carroça de um fueiro pelas ruas sujas de Rio das Paridas. Coriolano
olha o tio assim, uma sombra de nada... e nem mais tem um fio de pestana para
puxar.
A fortuna dos desvalido é
fortuita. Os que ficam ricos, findam sem nada, como se fosse uma maldição
do destino. Aqui não cabe senhores. Lampião, as tropas volantes, o paisano de
um modo geral. Até os gandolas, como os coronéis que financiam as volantes e
ludibriam os cangaceiros vivem se escondendo com medo da vingança.
O romance encanta pela escrita irretocável. Não me lembro de ter lido textos tão eficazes. Palavras fortes que a pressa dos novos tempos jogou fora ressuscitam desenhando mundos inimagináveis. É uma daquelas obras na qual parece que o autor coloca nela toda sua arte. Tintas nobres. Pincéis finos. Alma lúcida. Melodia, perfume, sabor que saciam...Todos os sentidos se combinam para gerar a sensação de privilégio único, que o leitor, como eu, acha que ganhou.
Não sei de ninguém que escreva sobre
Sergipe (ou não) que chegue perto de Francisco Dantas. Mesmo assim, tem sido
meio despercebido até pelos leitores que ainda há. Se temos todo o ouro do
mundo aqui em casa... Vamos a ele, ler Francisco Dantas!
(Aracaju,
01 Agosto de 2020, extraída do blog: Antônio Saracura Sobre Livros Lidos).
Li na ASL em 2020
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