sábado, 29 de agosto de 2020

CARTAS D'ALÉM-MAR, Epistolário de Dom Luciano Duarte

 

CARTAS D'ALÉM-MAR, Epistolário de Dom Luciano Duarte, Ana Maria Fonseca Medina (organizadora), Edise, 2020, 497 páginas, isbn 978-855-317-8698.

 


Não são cartas apenas...

São diários de viagem, são ensaios de filosofia, são reflexões, são trechos da história universal... São pérolas literárias com a escrita objetiva, útil, articulada, lógica, própria do intelectual Luciano Cabral Duarte, seminarista, padre, bispo, arcebispo e imortal da Academia Sergipana de Letras. Um dos grandes sergipanos em todos os tempos.

E eu tive a glória de conviver momentos rápidos mas que me marcaram a vida de cidadão e de escritor com o seminarista Luciano Cabral Duarte. Por volta de 1958, quando cheguei ao seminário, fui encarregado de organizar a grande biblioteca que estava jogada. Foi meu batismo de fogo com a literatura religiosa e mundana. Prateleiras cheias de livros com o nome do seminarista Luciano Cabral. Clássicos da literatura.  Santo Tomás de Aquino, Eça de Queiroz, Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco e muitos outros. Li-os com voracidade. Bebi da mesma água mas tão sofregamente que quase toda entornou, escorreu pelos cantos da boca.

“Cartas de Além Mar” é o epistolário do Padre Luciano Cabral Duarte, no período de 1954 a 1957 quando fez, na Sorbonne, em Paris, o doutorando em filosofia. Nem todas as cartas escritas estão no livro, algumas tratavam de assuntos muito particulares e foram eliminadas. As que estão revelam  ricas impressões de um viajante culto e curioso. São um guia para quem pretende ir à Europa, como eu. Se Luciano planeja visitar o Vale do Loire, descreve tecnicamente seus castelos espetaculares, impregnando-nos da mesma tentação irresistível. E na visita real, leva-nos junto, como um guia perspicaz que nos faz viver o encantamento presencial. Então, talvez eu nem precise ir mais, como pretendia cinco linhas acima.  Se Luciano está em Toledo, rememora a velha cidade que foi sede dos reis de Espanha no tempo dos Godos e Visigodos (séculos 7 e 8); se está em Jerusalém, percorre os caminhos do velho testamento com seus reis e profetas; se passa em Copenhaque, relembra a epopeia dos navegadores Vikings que desceram das terras geladas e invadiram a Inglaterra e a Normandia no século X.

Mesmo distante, Luciano comenta o que acontece no seu País, no seu Estado, em Aracaju, em Boquim. A tramas e descaminhos da política; os dramas e efemérides da família; as festas, as fofocas, os eventos. O jornal “A Cruzada” chega toda semana junto com revistas, com os calhamaços do leste, com as cartas de retorno.

As notas ao rodapé vão dando conta de elucidar situações que parecem estranhas para estranhos ao dia a dia da família Cabral e ao círculo de amizades, às citações de passagens. Aquele Olavinho... quem seria mesmo, no meio de tantos? E Antônio Cabral? E o pregador Lacordaire?

A primeira carta é datada em 01 de setembro de 1954 quando o autor está em Niterói pronto para embarcar para a Europa. Doze dias de mar silencioso e profundo nas mãos de Deus e se equilibrando em um caixote de madeira e ferro. E vem a segunda e a terceira, do bordo do navio Charles Tellier, de Las Palmas e de Lisboa. Está chegando. E, muitas cartas de Paris, e de várias cidades da Europa, de outras partes em volta, aonde o padre arguto estendeu-se em busca de sabedorias. E vem última carta, também de Paris, em 10 de dezembro de 1957. Retorna ao Brasil, coberto de louros pelo sucesso absoluto na avaliação dos doutores da Sorbonne.

Os destinatários foram: a irmã Carminha, que foi guardiã zelosa; o pai, a mãe, os amigos mais chegados. Padre Luciano pedia-lhes que guardassem as cartas pois precisaria delas (como precisou para escrever Europa Ver e Olhar, imagino) pois não dispunha de tempo para registrar, em paralelo, relatos de seu dia a dia.

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Todos os seminaristas estavam sentados, em uma quinta-feira à noitinha, no espaço de lazer que servia de plateia de teatro do velho seminário da rua Dom José Thomaz, 194. Alguns impaciantes, outros ansiosos, uns calados outros na anarquia simulada.

Chegou o conferencista, Dom Luciano Cabral Duarte. Acontecia em 1960 ou 1961.

O reitor levantou o braço e o silêncio se instalou por meio minuto. Dom Luciano abriu a boca e todos nós embarcamos numa viagem vertiginosa por um mundo novo, de fantasia. Pela Europa que seria muito depois da Bahia. Uma hora inteira, e eu de fôlego preso, correndo Roma, Lisboa, de Paris, que eu não sabia que existiam assim. De boca aberta, puxado pela mão do padre Luciano. Versalhes, Notre Dame, Louvre, Fontainebleu. Castelos, Catedrais, museus, alamedas, torres... Era o lançamento do livro “Europa, Ver e Olhar”.

Peguei um empréstimo com Paulo de Figueiredo e comprei um exemplar para mim. Quando a saudade da Terra Vermelha me apertava eu ia para a Europa passear.

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Além das cartas, o padre Luciano mandou, semanalmente,  artigos e reportagens (como a peregrinação a Palestina) para serem publicadas semanalmente no jornal “A Cruzada”. Sempre manteve viva a voz católica do jornalismo sergipano, de que foi seu timoneiro e o projetou no mundo. (Anos depois, seria, por conta de jornais de renome, enviado especial para cobertura do Concílio Vaticano II e para o Congresso Internacional Eucarístico de Bombaim). 

Em 1966, eu era o redator-chefe do jornal “A Cruzada”. Está no Expediente, no livro “Meninos que não Queriam ser Padres” e nos arquivos do Instituto \histórico e Geográfico de Sergipe. Risco, sufoco e mágicas. Como imprimir a edição da semana se o papel acabara na anterior? E o chumbo? E a linotipos engripada? E a caixa de tipos empastelada? E também o artigo da última página que não chegara para fechar o jornal?

As oficinas e a redação eram na rua Propriá, mas as decisões maiores eram na rua Santo Amaro, para onde eu corria, buscar a orientação abalizada ou a matéria de valia.

“Sente e espere um pouquinho”.

O padre, na escrivaninha, abria a máquina de datilografia. Os espíritos santos desciam e se transformavam em letras debulhadas, em palavras e frases que se espichavam no papel e se moldavam em ideias que encantariam os leitores na segunda-feira de manhã e pelo futuro sem fim.

O padre jornalista puxava a folha do carro, cutucava com a caneta aqui e ali e me entrega a matéria de fundo da semana.

“Cartas de Além Mar”, como as outras obras que saem do labor intenso e profissional de Ana Medina (Cartas de Hermes Fontes, Efemérides de Epifânio Dórea, Vida e obra de Mário Cabral... são sacrários da memória de nossos gênios. Pelo menos essa (memória) não se perderá. É "Trilhando Memórias" que Ana vai revelando e preservando tesouros. Este está contido em um alentado volume de 496 páginas, bem editado (pena que não tem cadernos costurados), adornado por capas marcantes. O conteúdo é ouro puro.

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Bons tempos estes em que as pessoas escreviam cartas, se estavam longe dos seus. E louvável proceder de quem as recebia e as guardava com cuidado. Graças a Dom Luciano e sua irmã Carminha (também aos demais destinatários) temos essa fortuna que é o livro “Cartas de Além Mar, Epistolário de Dom Luciano Duarte”, que Ana Maria Fonseca Medina nos oferece.

(Por Antônio FJ Saracura, em 2020ago28).

Observação:

O livro está a venda na Lojinha “Mister Grão”, na galeria do fundo do G Barbosa da Francisco Porto, por 60,00, onde comprei. Se ainda não acabou. Também na Escariz, na Rádio Cultura, na Sacristia da Igreja de Jesus Ressuscitado.  

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