segunda-feira, 10 de agosto de 2020

JUNTA-CADÁVERES, Juan Carlos Onetti

 

JUNTA-CADÁVERES, Juan Carlos Onetti, Planeta Literário, tradução Luiz Reyes, 2009, 349 páginas, Isbn 978-85-7665-452-0

 



Francisco Dantas perguntou-me, no final de junho, se eu já havia lido Onetti. Eu nunca havia lido. Até três meses atrás, nem ouvira falar dele. De uruguaios, que me lembrasse, só lera pouquinho de Eduardo Galeano (As veias abertas da América Latina, comum) e Mário Arregui (Cavalos do Amanhecer, excelente). De Onetti (Juan Carlos) conhecia o que o próprio Francisco Dantas me revelara, em carta,  em março. Uma definição do que seria  “saber escrever”: “Há só um caminho (para saber escrever). E que sempre houve. Que o criador de verdade tenha a força de viver solitário, e olhe dentro de si. Que compreenda que não temos pegadas a seguir, que o caminho haverá de fazê-lo cada um, tenaz e alegremente, cortando a sombra dos montes e os arbustos anões”.

Quem seria esse irmão em pensamento? Aguçara-me todo.

E Dantas respondeu-me catedrático: “um dos melhores escritores que conheço.”

Ante minha infantil sinceridade e catecumenice literária, mandou-me “Junta-cadáveres”, como já fizera, me apresentando ao goiano Carmo Bernardes, este com três livros radicais que li atônito e publiquei resenhas em meu blog “Sobre Livros Lidos”. Quando puder, leia os dois!  

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“Junta-cadáveres” começa com a chegada na estação de trens de Santa Maria (cidade imaginária) de três putas gastas trazidas pelas mãos do velho gigolô, Larsen-Junta-cadáveres, chamado assim porque é especialista em sobras da noite e vive às custas delas.

E se encerra, também na estação de trens, quando as três putas, conformadas, e o gigolô, indignado, vão embora da cidade por ordem expressa do governador.

E nesse meio tempo, o mundo inteiro é recriado com seus pedaços esparsos de gente, lugares e momentos: O jornal El-liberal, a colônia dos suíços, o rio silencioso, a praça da matriz, a casinha recolhida de portas celestes... O doutor Diaz Grey, o poeta Jorge Malabia, o farmacêutico Barthê, o padre Bergner, o velho revisor Lanza, a basca Insurralde cheia de mistérios... As cartas anônimas, a invasão do prostíbulo, a iniciação do adolescente...

Onetti constrói locações, personagens e momentos com soltas pinceladas, como um adendo qualquer. A própria Santa Maria não é articulada, com ruas e praças. São pedaços que o leitor tem que arrumar mentalmente para levantar residências, fixar a igreja, ver o rio passando... O personagem Junta-cadáveres, que mais consome tinta, tem uma história fragmentada. Também os demais, como Lanza, o velho revisor do jornal, que poderia ser o “alter-ego” do narrador/autor e até Jorge Malabia, que o é de verdade...

A narrativa prende por artifícios insólitos, fazendo arrodeios, despertando mundos que o autor (talvez) nem tenha querido despertar. As frases se formam com adjetivos aparentemente mal colocados. Segmentos incoerentes. Sons, seres, ideias misturadas, até inconsistentes. 

O autor não se gasta com descrições óbvias. Deixa saírem palavras, imagens, frases que, a primeira vista, parecem não ter nada a ver com o que quer narrar. E o produto gerado desafia como um painel surrealista. O leitor suspeita que há links por baixo conectados e raciocina. Não se enfada. E descobre então que todo emaranhado de dizeres agregou valor inestimável à descrição.]

 “Aquele sorriso levantava apenas as pontas dos lábios, expressava humildade e bem aventurança, mas não era para mais do que um desenho insignificante, e saltava em minha direção, desde o canto dos lábios e desde o centro, desde o ponto onde o lábio superior e da minha cunhada viúva sobressaía inchado, erguendo-se como de um bebê de peito.”

A morte de Julita é um flash rápido e o leitor constrói mil hipóteses, agonia-se, cria expectativas que podem dar em nada. Os incidentes relacionados consomem apenas meia dúzia de linhas, ficam mais subentendidos e, ao mesmo tempo, plenamente esclarecidos por informações disparadas aleatoriamente.  

O autor mantem Marcos vivo, mesmo hibernado por páginas e páginas, desde que se indigna com o prostíbulo. Quando reaparece durante a campanha de cartas anônimas, nada tem a ver diretamente com elas. E lá no fim do livro, quando toma uma decisão intempestiva de matar gente e invade o prostíbulo de arma em punho, senta-se para conversar socialmente com o judeu que incrimina. E quando o prostíbulo é fechado, Marcos nada tem a ver diretamente com o fato. Sua culpa no cartório é evidente mas não pode ser comprovada para efeito de incriminação.

Por isso tudo (e muito mais) Onetti me parece inexaurível. Pode ser relido e parece outro. Estou sempre retornando páginas para sentir melhor cheiros que só desconfiara que havia. E havia bem mais. É desafio constante a cada página. Eu fico tentando adivinhar, tentando ajuntar os temperos, chegando a meias conclusões, mas sei nunca serão definitivas. É uma escrita que instiga enquanto sacia.

E Francisco Dantas, ante meus espantos, ensina o que eu já deveria saber: “a gente só cresce com os livros que desafiam o nosso entendimento, que excedem a nossa capacidade de interpretação, que são irredutíveis à primeira leitura. E a outras. Qualquer pedagogo nos dirá que "aprender" é lutar com o desconhecido e desbravá-lo.”

Vou usar uma definição para poesia, que me pareceu irmã de meu pensamento, embora não tenha vínculo com o enredo básico do romance em foco. Peguei em uma conversa casual dos dois personagens (Lanza e Jorge), proferida pelo primeiro: 

“Um livro de versos nunca pode ser definitivo no sentido que nos interessa; é sempre um princípio; um caminho que se abre. Porque a poesia é feita com o que nos falta, com o que não temos.” 

A prosa também não?

(por Antônio Saracura, 2020ago09, durante a reclusão pela pandemia do Corona Virus).

 

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