JUNTA-CADÁVERES, Juan Carlos Onetti, Planeta Literário,
tradução Luiz Reyes, 2009, 349 páginas, Isbn 978-85-7665-452-0
Quem seria esse irmão em pensamento? Aguçara-me todo.
E Dantas respondeu-me catedrático: “um dos melhores escritores que conheço.”
Ante minha infantil sinceridade e catecumenice literária,
mandou-me “Junta-cadáveres”, como já fizera, me apresentando ao goiano Carmo
Bernardes, este com três livros radicais que li atônito e publiquei resenhas em
meu blog “Sobre Livros Lidos”. Quando puder, leia os dois!
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“Junta-cadáveres” começa com a chegada na estação de trens de Santa Maria (cidade imaginária) de três putas gastas trazidas pelas mãos do velho gigolô, Larsen-Junta-cadáveres, chamado assim porque é especialista em sobras da noite e vive às custas delas.
E se encerra, também na estação de trens, quando as três
putas, conformadas, e o gigolô, indignado, vão embora da cidade por ordem expressa
do governador.
E nesse meio tempo, o mundo inteiro é recriado com seus
pedaços esparsos de gente, lugares e momentos: O jornal El-liberal, a colônia
dos suíços, o rio silencioso, a praça da matriz, a casinha recolhida de portas
celestes... O doutor Diaz Grey, o poeta Jorge Malabia, o farmacêutico Barthê, o
padre Bergner, o velho revisor Lanza, a basca Insurralde cheia de mistérios... As
cartas anônimas, a invasão do prostíbulo, a iniciação do adolescente...
Onetti constrói locações, personagens e momentos com soltas pinceladas, como um adendo qualquer.
A própria Santa Maria não é articulada, com ruas e praças. São pedaços que o leitor
tem que arrumar mentalmente para levantar residências, fixar a igreja, ver o rio passando... O
personagem Junta-cadáveres, que mais consome tinta, tem uma história
fragmentada. Também os demais, como Lanza, o velho revisor do jornal, que
poderia ser o “alter-ego” do narrador/autor e até Jorge Malabia, que o é de
verdade...
A narrativa prende por artifícios insólitos, fazendo arrodeios, despertando mundos que o autor (talvez) nem tenha querido despertar. As frases se formam com adjetivos aparentemente mal colocados. Segmentos incoerentes. Sons, seres, ideias misturadas, até inconsistentes.
O autor não se gasta com descrições óbvias. Deixa saírem palavras, imagens, frases que, a primeira vista, parecem não ter nada a ver com o que quer narrar. E o produto gerado desafia como um painel surrealista. O leitor suspeita que há links por baixo conectados e raciocina. Não se enfada. E descobre então que todo emaranhado de dizeres agregou valor inestimável à descrição.]
“Aquele
sorriso levantava apenas as pontas dos lábios, expressava humildade e bem
aventurança, mas não era para mais do que um desenho insignificante, e saltava
em minha direção, desde o canto dos lábios e desde o centro, desde o ponto onde
o lábio superior e da minha cunhada viúva sobressaía inchado, erguendo-se como
de um bebê de peito.”
A morte de Julita é um flash rápido e o leitor constrói mil hipóteses,
agonia-se, cria expectativas que podem dar em nada. Os incidentes relacionados consomem
apenas meia dúzia de linhas, ficam mais subentendidos e, ao mesmo tempo,
plenamente esclarecidos por informações disparadas aleatoriamente.
O autor mantem Marcos vivo, mesmo hibernado por páginas e
páginas, desde que se indigna com o prostíbulo. Quando reaparece durante a campanha
de cartas anônimas, nada tem a ver diretamente com elas. E lá no fim do
livro, quando toma uma decisão intempestiva de matar gente e invade o
prostíbulo de arma em punho, senta-se para conversar socialmente com o judeu
que incrimina. E quando o prostíbulo é fechado, Marcos nada tem a ver diretamente
com o fato. Sua culpa no cartório é evidente mas não pode ser comprovada para efeito
de incriminação.
Por isso tudo (e muito mais) Onetti me parece inexaurível. Pode
ser relido e parece outro. Estou sempre retornando páginas para sentir melhor cheiros
que só desconfiara que havia. E havia bem mais. É desafio constante a cada
página. Eu fico tentando adivinhar, tentando ajuntar os temperos, chegando a meias
conclusões, mas sei nunca serão definitivas. É uma escrita que instiga enquanto sacia.
E Francisco Dantas, ante meus espantos, ensina o que eu já
deveria saber: “a gente só cresce com os
livros que desafiam o nosso entendimento, que excedem a nossa capacidade de
interpretação, que são irredutíveis à primeira leitura. E a outras. Qualquer
pedagogo nos dirá que "aprender" é lutar com o desconhecido e
desbravá-lo.”
Vou usar uma definição para poesia, que me pareceu irmã de meu pensamento, embora não tenha vínculo com o enredo básico do romance em foco. Peguei em uma conversa casual dos dois personagens (Lanza e Jorge), proferida pelo primeiro:
“Um livro de versos nunca pode ser definitivo no sentido que nos interessa; é sempre um princípio; um caminho que se abre. Porque a poesia é feita com o que nos falta, com o que não temos.”
A prosa também não?
(por Antônio Saracura, 2020ago09, durante a reclusão pela
pandemia do Corona Virus).
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