quinta-feira, 16 de junho de 2022

MEMÓRIAS DE MINHAS PUTAS TRISTES, Gabriel Garcia Marques

 

MEMÓRIAS DE MINHAS PUTAS TRISTES, Gabriel Garcia Marques, Record, 11 edição, 2006, tradução de Eric Nepomuceno, 127 páginas, isbn 85-01-07265-6

 


 

Gabriel Garcia Marques é um dos grandes autores da América Latina. Ganhou o Nobel de Literatura pela sua obra, em 1982, com destaque para “Cem Anos de Solidão”, um livro eterno mais pelo jeito da narrativa e riqueza de aspectos do que pela a espetaculosidade do enredo. Todos falam dele, mesmo os que nem o viram de perto ainda. E falam bem. E merecidamente.

Um livro bem escrito e que conte uma história que encante, dificilmente cai na vala do esquecimento. O cupim não vai sentir o gosto de suas páginas inúteis. Porque não são. Quem o ler, faz comentários positivos e o recomenda aos amigos e até a quem nem conhece. Livros assim espantam o medo maldito que todos (até crianças) têm de livros. Parece-me que têm.

E todos nós merecemos um livro bom. E também merecemos bons filmes, boas músicas, boas telas plásticas... Nenhum cantor reclame de que não tem sucesso se suas canções não tocam a alma do público... Este é o alvo fugidio de todo artista. 

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Nos idos de 1965, por conta da minha atividade jornalística, assinei uma coluna de crítica de cinema no jornal “A Cruzada”, de Aracaju. Eu possuía passe livre nos cinemas da cidade, não perdia um filme. Alguns deles, eu abandonava a sala de projeção antes de acabar, eram ruins demais. Mas os que me sequestravam da poltrona para sua história e magia... Meu Deus! Quando a sessão acabava, eu saía correndo avisar aos amigos (o jornal só saia no domingo). Um filme tão bom não poderia ser exibido para sala vazia! E havia quatro pés de gente para a próxima sessão. Meus amigos  (ou conhecidos) não passavam, àquela hora, em frente ao Pálace, pela rua João Pessoa. E eu ficava relutando em abordar estranhos. Tinha medo de ser chamado de louco, que talvez eu o fosse.  Mas estava em cima da hora da sessão. Parava então o primeiro estranho que ouvia atônito. “Você não pode perder! Venha assistir La belle de Jour (ou Cidadão Kane, ou Lolita, ou Ao Mestre com Carinho, ou por Um Punhado de Dólares), que é bom demais”. O juiz imponente, que saíra do tribunal ainda de toga, me olhava atravessado e se ia a me chamar de “doidinho maluco”.

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Outro dia, passei em frente ao sebo do setor médico e caia chuvinha inesperada. Entrei no sebo e saí, quinze minutos depois (a chuva se fora), com “Memórias de Minhas Putas Tristes” e mais duas brochuras de Agatha Christie, que minha esposa adora.

Acabo de ler as “Memórias de minhas Putas".

O personagem centra é o narrador, escritor de província, que publica crônicas no jornal da cidade. Está fazendo aniversário de 90 anos e resolve passear na fantasia, reviver sua vida de amor livre, comemorar seu aniversário no pecado da luxúria. Telefona à cafetina de outros tempos, Rosa Cabarcas, famosa por pescar belas meninas e as oferecer aos senhores endinheirados e de "bons" costumes. 

Mas o desejo de honrar seu aniversário de noventa anos com uma noite libertina foi tão grande que lhe pareceu um recado do céu. E teme que a velha bombeira (especialista em apagar candeeiros no passado), nunca achará  seu tesouro. 

O telefone toca e ele escuta surpreso a a cafetina aposentada com a voz enferrujada: “Você tem a sorte do demônio. Encontrei uma franguinha melhor do que você queria, mas tem um porém: ela tem quatorze anos... Eu não me importo de trocar fraldas... Mas quem vai cumprir por mim os três anos de cadeia”?

O narrador topa na hora. Morreria na cadeia... Qual a diferença?

“Fui de táxi mas parei no cemitério para não dar bandeira ao taxista como se esse povo pudesse ser ludibriado. Entrei no armazém, sob a saudação de um mulato esquálido que descansava sentado ao portão e deve ter me reconhecido: “Salve, doutor, que tenha uma feliz trepada”.

Rosa estava despachando um cliente quando entrei nas pontas dos pés. Não sei se me desconheceu de verdade ou se fingindo para manter as aparências da mercearia decadente. 

(...)

"A bela infanta Delgadina trabalhava o dia todo apregando botões em uma fábrica de roupas. Cheia de sonhos nem ainda sonhados. De desejos não realizados. Dorme cansada agora ao meu lado. E eu canto  olhando seu corpo branco: “Delgadina, Delgadina, tu serás minha prenda amada. Os que não cantam não podem imaginar o que é a felicidade de cantar. Eu havia achado que morrer de amor não era coisa senão uma licença poética. Mas agora estou morrendo de amor e não trocaria por dinheiro nenhum do mundo as delícias de meu desassossego.

Agora, tudo que tenho gastarei para manter Delgadina para mim. O luxo de uma amante assim novinha, assim platônica, custa caro. 

Nunca deitei com mulher alguma sem pagar; as poucas que não eram do ofício as convenci ou pela razão ou pela força que recebessem meu dinheiro nem que fosse para jogar no lixo. Venderei até as últimas joias da família, que sei valer quase nada, porque minha mãe trocou os diamantes por vidro, e me pediu (eu sempre a acompanhava em menino) para não contar nada a meu pai”.

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“Memórias de minhas putas tristes” é um hino de louvor à vida e ao amor. Da adolescente que dorme diáfana (uma bela adormecida) a espera de seu príncipe encantado. Também do velho jornalista enfadado de tanto escrever resenhas maçantes apenas para preencher espaço no jornal.    

E lhe diz Rosa Cabarcas:  “Ai meu sábio triste. Está bem que você esteja velho, mas não idiota. Esta pobre criatura está zonza de amor por você”.

"O barco fluvial dos correios, atrasado uma semana por causa das secas, entra bramando no canal do porto. Minha casa começa a gozar das cores de uma aurora feliz. É enfim a vida real, com meu coração salvo, e condenado a morrer de bom amor na agonia feliz de qualquer dia depois dos meus cem anos”.

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Não importa o trabalho que deu, o que temos a comemorar é que Gabriel Garcia Marques produziu mais um livro, “Memória de minhas putas tristes”, que encanta e conquista leitores.  Um livro que espanta esse medo de ler que nos habita. Tomara que sim.

Ele e outros de grandes escritores nos abriram um mundo novo, como fez Bill Gates e Paul Allen com os computadores amigáveis e indispensáveis hoje. Ninguém os pedia, mas todos os queríamos sem nem saber. Os que não querem saber de ler livros, jamais os dispensarão após conviverem com um bom livro, como este. 

Dizer ao vento de que aqui  não há leitores é como dizer que ainda não temos irresistíveis  livros.  

 (Por Antônio FJ Saracura, em 16 de junho de 2022)

 Nota:

Por volta de 2000, tive a satisfação de recuperar edições deste jornal (A Cruzada), haviam sido digitalizadas pelo Instituto Histórico de Geográfico de Sergipe. Minhas resenhas ressurgiram vivas.  

 


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