quarta-feira, 18 de novembro de 2015

PADE KIBA, Carlos Mendonça

PADE KIBA, Carlos Mendonça, Infographics editora, Aracaju, 2015, 242 páginas, isbn 978-85-68368-46-6


Pode ser a narrativa da vida sacerdotal de Tolentino Kibaliano (popularmente designado de Pade Kiba) ou apenas as travessuras de um par de proeminentes Coleones (atente à origem latina). Em um ou outro, o herói é um sertanejo vingativo, despachado, que mantém um harém de mulheres apaixonadas, um exército de jagunços, um rifle de papo amarelo com uma fileira de balas na agulha e uma língua afiada. Tenório Cavalcante com sua lourdinha e a batina preta. O caboco Capiroba, comedor de gente, pai de meio mundo de novos brasileiros em uma interpretação livre do que narra João Ubaldo Ribeiro (Viva o povo brasileiro). Um novo João Grilo, ou Cancão de Fogo, ou seu Lunga? O quinquagéssimo segundo cavaleiro da Távola Redonda da corte do rei Arthur. Ou mesmo um Lampião criado na imaginação do surpreendente escritor itabaianense. Quem sabe, alguém malandro, desavergonhado, invencível, que os cordelistas podem transformar em um novo herói da nossa literatura brejeira.
O vidente e poeta popular, cego mas não mudo, Zé Mulambo, personagem marcante na obra, toma minha voz e, com sua cantoria, acompanha o Pade Kiba, passo a passo, antecipando os acontecimentos, na galhofa, na ironia:

Agora a coisa danou-se
A peste vai arrufar
O muleque de Pau Grande
Resolveu ir estudar
Pelo qui estou preveno
Vai se tornar revereno
Para vir nos cunfessar.
(página 36, mudança de destino do menino peralta)

Agora a peste fedeu
A égua desimbestou
Mataro o pai do pade
Tudo disassossegou
Num sabe cum quem mexeu
Os istupim sacendeu
E o diabo sacordou
(página 52, o sacerdote abandona o apostolado e retorna ao sertão)

Tamem eu num vi aqui
Seu Domingo o coroné
Cum certeza tá haveno
Arguma coisa quarqué
Na minha primunição
Ta haveno uma armação
E vou lhe dizer qual é.
(página 103, a trama para o assassinato do desafeto)

Pelo que foi apurado
Logo no primeiro plano
O pade vai padecer
Pois o bispo diocesado
Vai lhe incaminhar
Pra ele se explicar
Diante do vaticano
(página 116, perseguição da igreja corrupta ao padre heroi)

Uma égua bunita
Safada e donzela
Bem feita de corpo
no pelo e na sela
Cuma ventania
Quem não gostaria
De samontar nela
(página 117, as trapalhadas entre o Pade e o bispo Dom Pedro Priquita)

Tu é home mas num é,
É home de faz de conta
Só vive de gabulice
De qui faz e qui apronta
Mas nessa vida inteira
Toda sua cumpanheira
Vive lhe butano ponta
(página 148, Difamação ao coronel Teodoro, desafeto do Pade Kiba)

Os fazendeiros ricos e prepotentes armam o pano de fundo de um sertão feudal, com políticos corruptos, votos de cabresto, eleição fraudada, trabalho escravo, pistolagem. Nem tão feudal assim! Lampião e o cangaço vingativo, Antônio Conselheiro e o sonho de uma comunidade igual, a igreja oportunista e interesseira também dão cores às presepadas do padre esperto. E, por conta, Zé Mulambo sai-se com essa trova, que nem chega a declamar:

Essa terra é um problema
Difici de resolver
O homem trabalhadô
Nem arruma o dicumê
Inquanto qui o fazendero
Siafoga no dinheiro
E abusa do puder.

Eu acompanhei (à distância) a criação do livro e a sua anunciação. Por um ano inteiro as redes sociais mostraram um homem de batina preta pulando muros, homiziado atrás de pedras com espingarda apontada ao vazio, gretando fechaduras, arrombando portas, exorcizando endemoniados, jogando baralho, subindo em pau de sebo, confessando pecadoras... E pulando cercas... Quando o livro foi lançado, filas se formaram, todos queriam saber a história anunciada do Pade Kiba. Entrevistado por um “freelancer” do jornal Capital Serrana (que nem chegou a publicar a matéria), o autor falou rateado: “Eu vendo livros porque escrevo o que as pessoas querem ler. Se não queriam, passaram a querer com a propaganda cerrada que fiz. Gastei um dinheirão, mas valeu a pena”. Carlos Mendonça dar-se ao luxo de lançar dois livros no mesmo dia. Junto com O Pade Kiba, lançou “Evolução do comércio de Itabaiana”. Público garantido, como em todos que lançou na curta carreira, desde que fechou sua lojinha de picolés e mudou de profissão, virou escritor. O livro Chico de Miguel possui uma reserva de mercado garantida nos eleitores fieis do lendário político; Mons. Eraldo Barbosa e Padre Manoel Araujo têm a comunidade católica que não vai arriscar o inferno, então compra os livros, até para tê-los em casa, provando a fé. Tenente Gervásio, os militares pagam pelo gosto de ter um herói, mesmo sem guerra nenhuma. E há melhor presente, no dia das mães, do que um livro que as louve? Euclides e Manoel Teles são figuras míticas na região e, como Lampião no Brasil, têm mercado garantido. O caminhoneiro de Itabaiana... Em cada família há um ou dois representantes no ramo e citados nos versos de Carlos, que não tem nada de tolo, como diria Zé Mulambo, acompanhado de sua viola afinada:

O gaguinho iscritor
É bom em prosa e poesia
Cada livro iscrivido
Le aumenta a friquisia
No batido que ele vai
Eu acho que é capaz
Dintrá numa academia

Sobre a escrita simples, sem rebuscamento, às vezes relaxada, com deslizes aqui e acolá, o porta voz, Zé Mulambo, pinicou a viola, trauteou, mas, estranhamente, pegou o saco arreado aos pés, e guardou o instrumento. Balançou a cabeça e foi saindo. Nem se despediu de mim. Para não ficar falando sozinho... toquei no rumo de casa, fui reler algumas passagens que me intrigaram no bom PADE KIBA.


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