quarta-feira, 18 de novembro de 2020

HISTÓRIA DE MINHA INFÂNCIA, Gilberto Amado

 

HISTÓRIA DE MINHA INFÂNCIA, Gilberto Amado, ISBN: 978-85-87110-01-15,205p, Editora: UFS

 


 Se eu tivesse tido a ventura de ter lido este livro antes de escrever “Os Tabaréus do Sítio Saracura” certamente meu livro seria diferente. Quantas passagens eliminei por achá-las por demais irrelevantes? Quantas outras deixei de fora, apenas porque não as soube concluir com alguma pompa? Mas na “História de Minha Infância” elas estão lá fazendo o livro de Gilberto Amado muito mais natural e belo. Não que meu livro não seja natural ou belo (kkk). É que poderia ser muito mais. Nunca no nível espetacular de Gilberto Amado, pois beira o inatingível. Mas muito mais perto, para o bem da literatura sergipana, que precisa.

 Não se pode dissecar um grande livro, pois certamente ocuparia mais páginas do que o texto original.

 Então selecionei algumas passagens de “A História de Minha Infância” e difundi-las na internet (grupo “Itabaiana Grande”, do facebook), brincando com seus membros, e que abaixo as repito.

Aqui como lá não aponto a página do livro onde aparecem. Acho que seria necessário, pois em qualquer página que se obra de Gilberto se encontra construções e ideias tão belas quanto.

 "Essa fauna antediluviana, esses matusaléns, esses macróbios sadios, formidáveis troncos de onde procedo, estacam-se linheiros como colunas antigas na minha evocação. Colossos alegres que morrem brincando e só morrem porque jeito não há, pois se jeito houvera não morreriam".

"Atraído pelo trotear dos cavalos, o dono assomou à porta. Meu pai, que já tinha ali pernoitado, disse ao apear-se: "Prepare duas camas". E gracejou: "Tem muita pulga, Severo?" O tabaréu, alto, seco, respondeu com a maior sinceridade: "Qual o quê, Coroné...percevejo não deixa...". Eu não sabia que percevejo comia pulgas, nunca soube e nunca perguntei. Mas valia a pena, concluí para mim, passar a noite no hotel de Barracão só para ouvir um dito deste. Meu pai e eu rebentamos numa risada gostosa que deve ter ficado dentro de nós, pois o sono foi bom e acordamos alegres".

 ‎"Em Campos, mulher falava, discutia, dava opinião como homem, fumava até charuto, o que me causou espanto. A explicação que me veio depois, ao rever os fatos, é a seguinte: os maridos sertanejos viviam nos comboios pelo fundo da Bahia, em Minas Gerais, pelo São Francisco acima, longos meses ausentes. As mulheres é que ficavam no comércio, comprando e vendendo, mantendo a freguesia, dirigindo, tomando resoluções, assumindo responsabilidades; desenvolviam-se, em consequência, extraordinariamente. O fenômeno ocorreu na França no tempo das Cruzadas e na Polônia nos séculos XVII e XVIII..."

"Pedimos-lhes foices e começamos a derrubar as socas de senhorzinho (canavial velho assim chamado). Que festa! Eu mal podia com minha foice. Mas como desejava ver calo, empola de cabo de foice me pipocar nas palmas da mão! Súbito, soltei um grito. Zebelô disparou estrada afora. Minha perna esquerda era um rio de sangue. O tarugo tinha me passado a foice. Carregaram-me para o cavalo. Em casa, seu Alexandre empalideceu. Maria dos Passos saiu da solenidade, começou a gritar. Puseram compressas. A ferida abeiçara-se em duas dobras feias, o osso fora golpeado fundo."

"Outra maravilha para mim era a visão do canavial apendoado, as flechas fremindo na luz. Também o milharal me impressionava com o festão das suas palhas estrídulas, o milharal em terreno seco, o canavial à beira do rio. Por cima do milharal passa a frota de periquitos na sua algazarra verde; de dentro do canavial, ensopado na terra gorda, sobe o canto triste da saracura invisível, música da tarde."

 

"Assisti também em Itaporanga à passagem de Canário Pardo (João Canário de Itabaiana também anotado por Carvalho Deda em Brefáias e Burundangas), rapsodo popular do sertão. Cego como Homero, fazia-se acompanhar por mulheres bonitas, três ou quatro, de cabelos soltos, encarregadas de angariar as contribuições dos ouvintes. Sentado num toro de pau, reunia muita gente. No seu canto, acompanhado por um crequeché, fazia o histórico dos incidentes políticos e sociais das localidades. Balançava o corpo, levava à altura do ouvido o crequeché, e começava:

Vadeia Canário Pardo/

Dentro de Itabaianinha/

Seis meis não canta galo/

Quatro não canta galinha/

Nem cego pede esmola/

Nem aleijado caminha"


Quando este livro apareceu em 1954, a crítica o acolheu efusivamente. Posteriormente, quando seu autor foi recebido na Academia Brasileira de Letras por Alceu Amoroso Lima, este qualificou Gilberto Amado como o maior dos nossos memorialistas. Mas, em todas as suas produções evocativas subsequentes, o autor não conseguiu manter a naturalidade e a beleza das páginas de “História de Minha Infância”.

Precisamos escrever mais sobre nossos grandes livros? É uma injustiça "História de Minha de Minha Infância" ser  tão pouco citado/lido/comentado/louvado até aqui. 

É uma obra prima da literatura brasileira. E fala de nossa gente sergipana. 

(por Antônio FJ Saracura, Aracaju, 290 de maio de 2016, recuperada em novembro de 2020)

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